Tenho cultivado o hábito de observar as similaridades entre os movimentos das espécies na natureza e os movimentos da nossa espécie onde quer que a gente vá. Um hábito recentemente impulsionado como ouvinte da incrível série de podcasts Vinte Mil Léguas Submarinas, realizada pela revista Quatro Cinco Um. Ouvindo navego nas águas, nos caminhos e nos pensamentos trilhados por Charles Darwin. Foi daí que puxei o paralelo para escrever este artigo e falar sobre formação leitora, bibliotecas e sobre as políticas públicas que podem e devem garanti-las e devem ser acessadas e demandadas por nós.

A origem das espécies através da seleção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela sobrevivência” é o título completo do livro que, quando publicado, cerca de 20 anos após a viagem do Beagle, revolucionaria a forma como pensamos a origem da vida na Terra. Na viagem, aprendi, Darwin levou consigo sua biblioteca particular: 245 livros. Ele soube como conciliar acessar a vida direto da fonte e ir às fontes escritas para acessar o conhecimento produzido até então. Como escreveu Isaac Newton, uns dois séculos antes de Darwin: “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes”.

A seleção natural, que ocorre a partir da pré-existência de variabilidades genéticas intrínsecas em indivíduos de uma mesma espécie, que eventualmente são mais favoráveis para fazer frente às demandas ocasionais do ambiente, é a “chave do tamanho” dos achados da teoria formulada por Darwin. No livro – que comecei a ler – Darwin descreve em minúcias sobre: “…as inúmeras espécies deste planeta se têm modificado no sentido de atingir a perfeição estrutural e a co-adaptação que merecidamente suscitam a nossa admiração”. Este “trabalho” orquestrado na natureza é lento, muito lento, leva milhões de anos, é praticamente invisível e silencioso.

Onde quero chegar com este preâmbulo? Quero chamar a atenção para o fato de que nós, seres humanos, somos feitos de uma tênue costura entre biologia/natureza e cultura. E que precisamos aprofundar e aguçar nosso olhar e nosso pensamento para daí extrair algumas reflexões e mesmo lições que podemos e devemos colocar em prática para plantar e deitar profundas e fecundas raízes na arte de formar leitoras e leitores competentes e sensíveis. 

Lembram da frase da neurocientista Suzana Herculano: nascemos aptos para quase tudo e bons em quase nada? Pois é, e se tem algo para o quê sequer estamos naturalmente programadas(os) é para… ler.  Tratei sobre isso no artigo publicado aqui na Biblioo, Devo a leitora que seu às pessoas que me indicaram livros e leituras. “A invenção da escrita é muito recente para que nosso genoma a ela se tenha adaptado. No decurso de centenas de milhares de anos que acompanharam a longa caminhada da espécie, nosso cérebro se adaptou à linguagem e à socialização – mas não à leitura, que não data senão de alguns milhares de anos”.

Então, para dar conta desta tarefa, várias áreas do cérebro precisam entrar em ação para que possamos ler. A entrada da informação é visual. Utilizando uma tecnologia ancestral, o cérebro, podemos nos tornar aptos, mas não naturalmente capazes, de decifrar uma tecnologia nova, a escrita.

Evolução do alfabeto.

Veja na imagem acima a derivação do alfabeto até as letras que nos são tão familiares. Os grafemas, como são denominados, tiveram como ponto de partida imagens que eram familiares ao cérebro humano, imagens disponíveis na natureza e interações humanas. E graças à sua engenhosa plasticidade o cérebro foi envolvendo outras áreas para atender a uma nova demanda humana. Após o conhecimento visual, a leitura caminha para as outras áreas associadas à linguagem. “As redes da linguagem oral, em grande parte, vão servir também para a leitura, mas será preciso uma adaptação que só o ambiente pode estimular”.

Pois bem, aprender a ler requer: tempo, um longo processo de envolvimento com a linguagem que se inicia no útero materno – somos, primeiro, leitoras(es) de ouvir; aprender a ler requer educador(a) leitor(a) envolvido(a) na oferta de livros e leituras; aprender a ler requer ambiência e ambientes educativos. Estas são as sementes estratégicas na construção de cultura leitora.

Lembra um pouco acima no texto quando falei que a “chave do tamanho” da seleção natural é uma dada variabilidade genética que viabiliza que alguns seres sejam mais bem sucedidos do que outros? Touché! Eis a “variabilidade genética”, no caso “variabilidade cultural”, que num determinado ambiente – casa, escola, biblioteca – a torna a pessoa exitosa na arte de atrair e engajar crianças, jovens e adultos na construção de uma cultura leitora sensível e competente: a presença de profissionais (professoras(es), bibliotecárias(os), mediadoras(es) de leitura) com formação leitora robusta, convictas(os) da potência do texto escrito, aptas(os) a planejar e implementar leituras significativas e ações leitoras diversificadas!

Olhei de perto o resultado da questão “conhecimento sobre a presença de bibliotecas no bairro ou cidade” trazido pela 5ª Edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, onde se vê uma abrupta queda de 55% para 47% com relação a bibliotecas públicas – levando em conta as duas últimas pesquisas – e a irrisória alteração no caso de biblioteca comunitária, de 15% para 14%. Suspeitei um palpite e fui perguntar pra Bel Santos Mayer, que coordena o trabalho potente e gigante realizado pelas bibliotecas comunitárias da rede Literasampa. Ela escreveu pra mim: “Temos investido na leitura coletiva, na permanência dos encontros, na ampliação de repertório com a oferta de textos que desafiam, na escuta, no diálogo, no registro do percurso leitor”.

Existência de bibliotecas. Fonte: Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil.

Perguntei pra Bel se poderia falar com jovens que leem na rede Literasampa e  marquei uma prosa via Zoom com Maria Eduarda, Alef, Ingrid, Sara e Renata. Ouvi o que suspeitava. Quando perguntei o que fazia com que tivessem interesse em frequentar a biblioteca disseram: acolhimento. A presença de alguém que recepciona, que indica leituras, que propõe rodas de conversa sobre leituras, em redes de escuta, espaços de fala, tudo que dá sentido ao ato de ler. Cada qual veio com uma condição leitora diferenciada: “gostava mas não ia atrás”, “ler era um bicho de sete cabeças”, “já lia e gostava”, “lia por obrigação”. Eu poderia escrever e escrever sobre o comportamento leitor que têm hoje, mas ao invés disso convido você a saber de fonte direta, ouvindo este podcast onde conversam sobre a leitura do livro de José Saramago “Ensaio sobre a Cegueira”.

O que as bibliotecas comunitárias têm, assim como deve ocorrer em honrosas e raras bibliotecas públicas e em escolas, é a presença de um(a) leitor(a) que recepciona, conduz, apoia, propõe leituras, diálogos, escutas. Ou seja, um ser humano com uma “variabilidade cultural”, que no caso é ser leitora(or) – fazendo o paralelo com a variabilidade genética como exposta em “A Origem das Espécies” por Darwin – , o que permite que tenha êxito na ação que realiza – formar leitoras(es) – a despeito do desafio do tempo histórico – marcado pela intensa presença da internet e redes sociais, entre outros – e do ambiente social e geográfico no qual está inserida(o) – baixo índice de letramento, baixo ou nenhum acesso aos bens culturais, entre outros.

O que as bibliotecas comunitárias promovem para quem as frequenta devido à presença de um ser humano com a “variabilidade cultural” ser leitora(leitor) convicta(o) da potência do texto escrito, assim como deve ocorrer em honrosas e raras bibliotecas públicas e em escolas, é a boa experiência de sentir-se desafiada(o) nas leituras e gostar, de ter seu pensamento valorizado,  de ter a oportunidade de aprofundar  o conhecimento verticalmente, para muito além de surfar na superfície das ideias, fincando profundas e fecundas raízes na arte de aprender, aprender a aprender, sentir-se parte e responsável na aventura humana na Terra, mergulhar fundo no mundo do conhecimento e emergir afetada(o) porque “a necessidade de saber e o espírito criador são inerentes a todos”, como dizia Bartolomeu.

Logo, para formar leitor(as)es é condição sine qua non ser leitor(a) convicto(a) da potência do texto escrito, para promover “engajamento em práticas de leitura de textos literários e de expressão cultural que instigam a indagação, a criatividade e o protagonismo”, como diz o Prof. Percival Leme Britto. É promover conversa, diálogo, entre passado, presente e futuro, entre o aqui e o logo ali e o mais adiante, é preciso apoio firme e amoroso na condução dessa jornada. Para a formação leitora vale a máxima que ouvimos nos aviões: em caso de despressurização coloque primeiro a máscara em você. Ou seja, é preciso ser o que pretende semear no mundo leitora/leitor se pretende formar leitoras(es), como nos ensinou Cora Coralina: 

Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.                               O saber se aprende com mestres e livros.

A Sabedoria, com o corriqueiro, com a vida e com os humildes.

O que importa na vida não é o ponto de partida, mas a caminhada.     Caminhando e semeando, sempre se terá o que colher.

Como sociedade, estamos prestando um mal serviço para a formação leitora de crianças e jovens ao desconsiderar este fato e junto descartar o que sequer temos em sua plenitude: boas e pulsantes bibliotecas! Sem jamais de fato termos usufruído plena e democraticamente destes ambientes vibrantes em sua potência máxima, como as bibliotecas comunitárias têm demonstrado, nós as consideramos anacrônicas, dispensáveis, desimportantes. Atuamos desconsiderando o desafio implicado na construção de uma cultura leitora, como falei acima (nosso cérebro não está naturalmente programado para ler); desconsiderando que a cultura escrita e a leitura atravessam tudo o que fazemos e somos, que o texto escrito é a matéria que contém toda a produção imaterial concebida e a conceber pelo ser humano desde os primórdios, que guarda o sentido, o propósito, a poética, os assombros, os medos, os sonhos, o tudo que faz de nós demasiadamente humanos. E que a este patrimônio deve ter direito garantido às atuais e futuras gerações, para que dela sintam-se e façam parte. E possam retirar a vida da via funcionária e besta que coisifica pessoas e humaniza as coisas. 

Bora, então, arregaçar as mangas para reivindicar formação leitora adequada para quem está e estará com mãos e coração nesta missão no miudinho dos dias de crianças e jovens, como escrevi neste artigo Em que creem os que não leem, e assegurar que políticas públicas e recursos públicos estejam mobilizados em prol de bibliotecas que promovam leituras significativas e encontros leitores em todos os cantos do País. Bibliotecas em rede – públicas, comunitárias e em escolas –, compondo juntas, somando, multiplicando leituras e leitoras(es) é o que precisamos. Não podemos nos dar ao luxo de deixar passar mais um dia sequer sem buscar assegurar que assim sejam, amém!

Como? A boa notícia é que você não está só nesta jornada. Veja:

  • Converse com deputadas(os) e vereadoras(es) e peça para que incluam na Lei Orçamentária (LOA) para 2021 recursos para bibliotecas, cujo prazo de aprovação vai até 31 de dezembro. Além de ter o poder de alterar o que está no orçamento, (as)os vereadoras(es)/deputadas(os) têm recursos para alocar em projetos com os quais simpatizam: são as chamadas emendas – propostas de alteração do projeto de lei quando há discordância com a proposta de orçamento enviada pelo(a) prefeito(a)/governador(a). 
  • Conheça o Passo a Passo que orienta como constituir um grupo e quais ações podem ser realizadas para interagir com escolas e o poder público em prol de bibliotecas, e o Guia sobre como implantar e manter bibliotecas com recursos públicos, que informa sobre as fontes de recursos públicos existentes que podem ser acessadas para a implantação de bibliotecas em escolas, e chama a atenção para a importância em incluir a criação e manutenção delas no orçamento do município. Estes materiais foram produzidos pela Campanha Eu Quero Minha Biblioteca, que desde 2012 atua pela universalização de bibliotecas em escola;

“Ao se replicarem, os seres vivos, através de mutações que ocorrem em seus genomas, podem dar origem a variedades que, confrontadas com o ambiente, reproduzem-se com mais eficiência, tornam-se mais numerosas do que o tipo original, que pode eventualmente se extinguir”. Este é um trecho do prefácio da “Autobiografia” de Charles Darwin – que estou lendo -, escrita por Ricardo Ferreira, pernambucano, químico e físico, presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Nesta premissa reside a expectativa que partilho aqui neste artigo com você, porque ao mudarmos um comportamento partindo de uma potente “variabilidade cultural”, criada na interação entre seres humanos no ambiente, podemos estar rompendo definitivamente os grilhões que tem condenado milhares de seres humanos à fome da palavra e, consequentemente, à fome de vida: um cenário que, mais do que definitivamente, queremos ver extinto do mundo.

Eu escolhi atuar pelo pleno acesso à cultura escrita e o direito inalienável à literatura como constituintes da garantia dos direitos humanos, porque estou convencida de que é condição sine qua non para que possamos de verdade evoluir para sermos uma espécie mais capaz naquilo que nos falta, como disse Betinho:

“O que nos falta é a capacidade de traduzir em     proposta aquilo que ilumina a nossa inteligência e mobiliza nossos corações: a construção de um novo mundo.”

Bora?!

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