Quando os ventos sopram ao nosso favor e o mundo nos sorri radiante e solícito, fica fácil ser gentil, empático, paciente, respeitoso e dotado de compaixão. Como cantava Alexandre Magno, o Chorão de nossos saudosos anos 2000: “Um homem quando está em paz não quer guerra com ninguém”.

A frase, por sinal, está na música “Só os loucos sabem”, da banda Charlie Brown Jr. É de lá que ela vem (uma lembrança a quem ribomba a frase fora de seu real contexto pois, certamente, o desconhece. E não dá os créditos devidos, claro).

Mas e quando não há um ambiente favorável para o florescimento de nossas melhores qualidades? O que fazer? E se somos rejeitados quando oferecemos uma mão amiga ou ignorados quando sorrimos e damos um “bom dia, boa tarde e boa noite” ressonantes?

A vida atomizada, individualizada e pulverizada pelas redes sociais nos deixa alheios ao sincero convívio humano. Dos vilarejos de 1.000 habitantes às megalópoles de mais de 12 milhões de cabeças humanas, todos corremos o risco da solidão e do esquecimento. Nas grandes cidades, essa alternativa se torna quase uma constante.

Associada ao sentimento de “cada um cuide do que é seu”, a sensação de união, gentileza, cordialidade e afeto fica reduzida aos pequenos empreendimentos e interesses individuais. O resultado disso está na aridez das relações – principalmente aquelas fugidias, efêmeras, conexões que costumo chamar de “relações de um segundo só”.

Esbarramos em desconhecidos sem dizer “desculpe” ou “com licença”; atropelamos idosos com nossos passos rápidos e resmungos bufantes quando queremos caminhar na rua, estamos com pressa infinita e temos que esperar os “velhos passarem”; brigamos como felinos enjaulados quando usurpam nossos lugares nas filas; desviamos o olhar de meninos de rua e pessoas em situação de vulnerabilidade; tratamos colegas hierarquicamente inferiores sem qualquer educação ou deferência; usamos de nossa força e poder para subjugar e controlar; mentimos, enganamos, perseguimos, plagiamos, fofocamos, invejamos… A lista é grande.

Quando tudo está florido, uma cópia de Valhala, é fácil ser como o Profeta Gentileza. Mas o desafio da vida, talvez, é continuar com o encanto e a empatia pulsantes quando somos compelidos a deixar o nosso corpo e nos tornarmos como o super-herói dos quadrinhos e cinema, o incrível Hulk. É uma tarefa difícil e que exige muito de nós. E uma experiência que decidi arriscar depois de ver meus nervos entrarem em colapso por conta de situações caóticas da urbe.

Certo dia, acordei decidida a manter a boa educação e o contentamento independente de qualquer coisa. Fui matando no peito, sem método algum. Apenas queria provar para mim mesma que é possível não ser totalmente influenciado pelo meio. Comecei disparando sinceros cumprimentos diurnos a todos com quem falava.

Alguns respondiam de bom grado, outros viraram o rosto. Há aqueles que se aborreceram com tal disposição. Depois decidi ceder o meu lugar na fila para idosos ou pessoas com alguma dificuldade de locomoção. Eu estava em uma loja de departamento quando tentei dar o lugar para uma senhora. Rispidamente, ela se vira e diz:

– Senhora está no céu. Pode ir que eu não quero lugar privilegiado não.

Ainda no mesmo dia, um ônibus e uma limousine, em momentos diferentes, passam pela rua e me encharcam de água. Era um dia chuvoso, é preciso dizer. Ainda mergulhada nessa disposição experimental, descubro que um de meus trabalhos foi plagiado e que outro foi barrado sem motivo aparente.

Recebo o troco de uma funcionária da padaria quase como uma atleta de tênis, tentando agarrá-lo da queda – tal foi a virulência da entrega. Descobri que a caixa d’água do prédio não está sendo limpa regularmente, que as taxas da prefeitura aumentaram (seguro contra incêndio e IPTU, por exemplo); que não me devolveram R$ 5,00 reais de troco (e eu sequer notei).

Há também os esbarrões e caras amarradas no metrô, negando qualquer aproximação ou tentativa de bate-papo. E, como cereja do bolo, uma resposta grosseira de um órgão que recebe doações – mas que não aparece no dia e na hora acordados.

Tudo isso e mais um pouco me descabelou. Como viver e querer o bem quando tudo conspira contra? Por que agir como monge zen ou andarilho franciscano em um mundo que renega o afeto? Mergulhada nesses pensamentos sombrios, deixei de lado a tentativa de ser gentil, não importando a quem ou sob qualquer circunstância.

Então, em uma sequência de momentos místicos e mágicos, eu vi a luz do crepúsculo tocando as folhas de uma grande árvore localizada nas proximidades do estádio do Maracanã. Senti o vento agradável e as batidas leves da água nas pedras, em uma região calma e serena da Baía de Guanabara (poluída demais, para a tristeza geral, mas dona de uma beleza incrível).

Ouvi o sorriso de duas crianças que brincavam alegremente na rua, entre produtos estendidos no chão e um zilhão de vendedores ambulantes. Fui presenteada por uma menina de cinco anos de idade com um sincero “obrigada, moça! Como estou feliz!”, por dar um presentinho simples que comprei especialmente para ela. Senti o aroma delicioso do café com leite observando o sol nascer entre as nuvens.

Vi o pôr-do-sol beijando as serras de Petrópolis e quase não acreditei em tanta beleza. Fui ajudada na rua por um completo desconhecido, quando precisei de informações precisas sobre a localização de determinado lugar. Um beija-flor veio pousar na minha janela e saiu logo que viu o corre-corre dos meus gatos. Acordo e olho para a foto dos meus pais, da minha irmã e do meu marido, ao lado de minha cama, e encontro consolo no mundo.

Lembro dos tempos felizes nas praias e colônias de feiras do litoral piauiense (quantas saudades!) e das inúmeras alegrias que tive; ouço a história de vida de uma idosa na estação do metrô; fico sabendo da conquista pessoal e profissional de amigos queridos; abro o meu livro preferido e leio até pegar no sono; vejo o carinho entre os cachorros de um morador de rua; fico hipnotizada pelos olhos de um gato que subiu no alto de uma árvore; sinto o cheiro de chuva; vejo pessoas doando alimentos na madrugada fria, com riscos à segurança pessoal; acompanho uma enfermeira tirando sorrisos e felicidades de crianças com doenças severas…

Tudo isso também aconteceu nos dias em que achei que não fui bem recebida nas minhas intenções, onde o ego falou mais alto e a necessidade imperiosa da reciprocidade ditou as normas.

Minha arrogância egoica caiu por terra. E então consegui prestar atenção nas palavras do monge vietnamita Thich Nhat Hanh: “A vontade de perdoar não é suficiente. Mesmo que você queira perdoar, você não consegue. Apenas a verdadeira compreensão pode trazer o perdão. E esse tipo de compreensão é possível apenas quando você vê o sofrimento (do outro)”. Reli o fabuloso “A Christmas Carol” (Um Conto de Natal), de Charles Dickens, e percebi quantas vezes eu fui Ebenezer Scrooge.

Contemplei o quadro “Recado Difícil” (1895), de Almeida Júnior, que faz parte da coleção do Museu Nacional de Belas Artes, e vi o rosto de muitas crianças ali, no rosto daquele menino que precisava falar algo, mas não sabia como.

O que desejo para este Natal e recomeço de ciclo é que o encanto da vida, da alma e do coração sem aversões ou apegos desproporcionais encontre espaço em nossas vidas turbulentas. E que, acima de tudo, saibamos colocar para nadar a nossa gentileza – ainda que seja contra a correnteza.

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