Seja na tentativa de cumprir à risca com o que dispõe o regramento institucional, seja por desconhecimento da legislação brasileira, seja por falta de autonomia para agir de modo diferente, alguns bibliotecários acabam, ocasionalmente, aplicando a multa financeira por atraso na devolução do material da biblioteca de forma desarrazoada e desproporcional ao usuário, levando este último a buscar os seus direitos junto ao PROCON ou, até mesmo, no Poder Judiciário.

Neste texto, busca-se demonstrar a necessidade, ratificada com a publicação da Resolução do Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB) nº 207/2018, de se observar, no âmbito das bibliotecas, o que dispõe o ordenamento jurídico brasileiro sobre o contrato ali firmado, quando do empréstimo do material do acervo.[1] Para tanto, será analisado o que dispõe o Código Civil sobre a “cláusula penal” (nome jurídico dado, dentre outros institutos, à multa) e o tratamento a ela conferido; o enriquecimento ilícito; o contrato de comodato (o qual se aplica no âmbito das bibliotecas, na efetivação do empréstimo domiciliar); e a boa-fé objetiva (dever anexo de qualquer relação contratual).

Conjugada às análises dos dispositivos legais, serão citadas jurisprudências (entendimentos firmados pelos Tribunais do Poder Judiciário) das suas aplicações no âmbito de conflitos envolvendo bibliotecas e seus usuários. Por fim, pretende-se concluir qual é a forma mais adequada para a aplicação da multa financeira de acordo com o que dispõe o ordenamento jurídico brasileiro, de forma a minimizar os conflitos entre a biblioteca e o seu usuário.

O artigo 412 do Código Civil brasileiro (CC), no capítulo que versa sobre a cláusula penal, enuncia que “o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.” Esse artigo expressamente diz que não se pode exigir o pagamento de um valor, a título de cláusula penal (multa), que supere o valor da obrigação principal. Em outras palavras: se o usuário efetua o empréstimo de um livro que custa no mercado R$ 100,00, não pode o bibliotecário exigir dele, quando da devolução do material, após a data limite estipulada, um valor de multa maior do que o de R$ 100,00, sob pena de estar a instituição em que a biblioteca é vinculada se enriquecendo ilicitamente.

O artigo 884, também do Código Civil, define que enriquece de maneira ilícita “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem […]”. Tal tipo de enriquecimento é repudiado pelo ordenamento jurídico brasileiro e, portanto, indefensável. No site JusBrasil, portal voltado para o compartilhamento de informações jurídicas, é possível encontrar algumas sentenças judiciais referentes a impasses envolvendo bibliotecas universitárias e usuários sobre a cobrança de multas abusivas. Em tais sentenças, os artigos supramencionados foram evocados em defesa dos usuários, conforme se observa a seguir:

[…] a ré foi aluna da instituição, e por conta dessa qualidade fez empréstimo de um livro junto à biblioteca em 13 de outubro de 2010, com previsão de entrega para o dia 20 do mesmo mês, o que não ocorreu. Postulou a condenação da ré na entrega da obra literária indicada na inicial, bem como no pagamento de multa incidente por dia de atraso no valor de R$ 2,00, no montante de R$ 1.090,00. O valor da multa não pode exceder o da obrigação principal, nos termos do artigo 412 do Código Civil. […] Diga-se que a obra intelectual em comento é bem fungível e de fácil aquisição no comércio, de valor médio, como visto, de R$ 47,61. […] a apelada [a instituição a qual a biblioteca é vinculada] queria que se desse vida a uma obrigação absolutamente desproporcional e por isso tal pretensão não poderia prevalecer […] Não poderia porque acarretaria o enriquecimento sem causa que não pode ser prestigiado, por implicar grave subversão à ordem social vigente e por causar aquele sentimento de repulsa, de intolerância que faz o cidadão descrer da Justiça e da Democracia. […] Assim sendo, no limite da insurgência recursal manifestada pela Defensoria Pública, a hipótese é de redução e limitação da multa para o valor de R$ 47,61, correspondente ao preço do livro indicado na inicial. (SÃO PAULO, 2017, p. 2 et seq., grifo nosso).

A sentença abaixo trata da limitação imposta pelo artigo 412 do Código Civil no que se refere à cobrança de multa e diz ainda sobre a instituição poder cobrar do usuário a devolução do livro emprestado (ou o valor correspondente atual – se o usuário tiver perdido o livro) mais a multa limitada ao valor do livro:

A respeitável sentença reconheceu a obrigação da ré no tocante à devolução das obras, impondo-lhe o pagamento da quantia de R$. 92,91, acolhendo parcialmente o pedido de pagamento de multa em idêntico montante, nos termos do artigo 412 do Código Civil. A recorrente insiste no pagamento da multa pelo valor pleiteado, ou seja, de R$. 8.448,00. Sem razão, contudo. […] Na hipótese, os livros foram retirados pela demandada em junho de 2006 e, em maio de 2010, a apelante vem reclamar o cumprimento da obrigação quanto à devolução e, cumulativamente, o pagamento da multa. Se os livros não foram devolvidos, à apelante assiste apenas o direito de pleitear a sua devolução, mas a multa não pode, efetivamente, exceder o valor da obrigação principal. Se as obras foram orçadas em R$. 92,91, resta evidente que, sob tal título, é inexigível o pagamento da quantia superior. (SÃO PAULO, 2011, p. 2 et seq., grifo nosso).

Assim, para que a biblioteca possa requerer do usuário, de forma inquestionável, o pagamento de uma multa decorrente da sua demora em retornar o material para o acervo, deve a instituição agir com respeito à boa-fé objetiva. A boa-fé objetiva se trata de um princípio do direito, expresso em artigos tanto do Código Civil, quanto do Código de Defesa do Consumidor (CDC). O artigo 422 do CC diz que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” Já o inciso III do artigo 4º do CDC enuncia a boa-fé objetiva como a base nas relações entre consumidores e fornecedores.

Entende-se, portanto, que a boa-fé é um princípio reitor de qualquer relação contratual. No âmbito da biblioteca, nota-se ser evidente a existência de um contrato. Isso porque, quando o usuário empresta com a biblioteca, está contratando um serviço fornecido por ela, realizando o que é chamado no direito de contrato de comodato[2]. Logo, a prestação desse serviço implica no cumprimento de direitos e deveres postos em contrato, tanto por parte do usuário, quanto por parte da biblioteca.  

Pautar as próprias ações na boa-fé objetiva significa agir sem a intenção de causar prejuízo a um terceiro. Nesse sentido, tão logo a biblioteca perceba que o usuário se encontra em situação de inadimplência, por lealdade contratual, precisa o bibliotecário notificar o usuário o quanto antes acerca da sua condição de inadimplente, reduzindo com isso o seu prejuízo ao mínimo possível.

Cuidados necessários

Importante também no que toca à exigência do pagamento de uma multa financeira é a biblioteca se cercar de cuidados, registrando os empréstimos efetuados. Para o cumprimento dessa finalidade, é fundamental a confecção de documentos onde se possa verificar, de forma inequívoca, a assinatura do usuário, evitando assim a situação embaraçosa de ter que comprovar o empréstimo diante daquele usuário que, com segurança, nega tê-lo efetuado.

Comprovações produzidas unilateralmente, ou seja, por só uma parte, quando não realizadas por um agente público em uma instituição pública, não são aceitas pelo poder judiciário como comprovação hábil do empréstimo. Esse posicionamento pode ser verificado abaixo, em trecho de uma outra decisão judicial proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

A sentença julgou improcedentes os pedidos em razão de a autora não ter comprovado o fato constitutivo do seu direito, ou seja, não demonstrou o empréstimo do livro ao réu, ônus que a ela cabia. […] Com efeito, não se há que reformar a sentença de primeiro grau, pois os documentos que instruem a inicial não são suficientes para demonstrar o empréstimo, apesar de ter ficado comprovado que o réu frequentou curso superior na instituição de ensino autora. O documento de fls. 41 foi produzido unilateralmente e é apócrifo. Não há nele assinatura do réu, não podendo, assim, produzir prova contra ele, representando mera impressão de tela de computador, que, não sendo emitida por agente público, não possui o atributo de fé pública. Além disso, se fosse conferida eficácia probatória a tal documento, o réu seria obrigado a comprovar fato negativo, ou seja, que não alugou o livro, o que dificultaria sua defesa, violando o disposto no artigo 6º, inciso VIII, do CDC. (SÃO PAULO, 2014, p. 3 et seq., grifo nosso).

A partir do exposto na última citação, pode-se inferir três conclusões: 1) a faculdade não conseguiu demonstrar que a biblioteca emprestou o livro ao usuário e, por consequência, foi-lhe negado o direito de cobrar o suposto livro emprestado e qualquer multa por atraso na devolução deste; 2) o judiciário não obriga um usuário a provar que não emprestou o livro, pelo contrário, é da biblioteca a obrigação de provar que o usuário o fez; 3) tentar comprovar um empréstimo juntando aos autos de um processo uma cópia de tela do sistema da biblioteca, por exemplo, não será suficiente para convencer o juiz de que o usuário pegou emprestado, de fato, aquele material.

Portanto, fica claro que o que a biblioteca pode pleitear, quando o usuário atrasa a devolução do livro emprestado e é devidamente notificado desse atraso, é o retorno do mesmo ao acervo da instituição de ensino ou, caso o usuário o tenha perdido, a compra por ele de um novo livro para compensar da perda a biblioteca, e ainda um valor de multa, referente aos dias em que o usuário esteve em atraso com a devolução do livro, que não pode extrapolar o valor do livro orçado no mercado para aquisição.

E, por fim, o óbvio, mas não menos importante: a biblioteca, antes de cobrar a devolução do livro, precisa ter a certeza de que possui a comprovação de que o empréstimo foi realmente feito pelo usuário.

[1] Na Resolução do Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB) nº 207/2018, publicada no Diário Oficial da União (DOU), na data de 09/11/2018, a qual aprova o Código de Ética e Deontologia do Bibliotecário brasileiro, lê-se no art. 6º, § 3º, alínea d, que o bibliotecário deve em relação aos usuários observar, dentre outras, a seguinte norma de conduta: “assumir responsabilidades pelas informações fornecidas, de acordo com os preceitos do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor e da Lei de Acesso à informação vigentes” (BRASIL, 2018, não paginado, grifo nosso).

[2] O artigo 579 do CC aponta que o comodato “é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis” ou seja: coisas que não podem ser substituidas por outras da mesma espécie. Como é o caso dos livros emprestados pela biblioteca. Por exemplo: um usuário que pega emprestado o livro “Senhora” de José de Alencar não pode devolver o livro “O Alienista” de Machado de Assis.

* O presente artigo é um capítulo do trabalho de conclusão de curso (TCC) “A sanção por atraso em bibliotecas universitárias: um estudo de caso da Biblioteca Central da Universidade Federal Rural de Pernambuco (BC-UFRPE)”, apresentado à Universidade Salgado de Oliveira (polo Uberlândia), em 2018.

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