George Simmel se coloca como um pensador que antecipou a questão da tecnologia e da tecnicidade como ponto fecundo para a modernidade, sobretudo porque erigiu em toda a sua obra uma teoria da cultura. Para tanto, ao investigar o fenômeno tecnológico, utilizou-se de percepções pioneiras, tais como o ceticismo à ideologia do progresso, à alienação, ao cientificismo, ao historicismo, como as formas de reificação. Simmel conjugou as análises filosóficas e sociológicas aos problemas tecnológicos, pois reconheceu a tecnologia como parte integrante da cultura moderna. Para José Luís Garcia “é certo que pode ser objetado que Simmel não dedicou um estudo particular à questão da tecnologia, mas os desenvolvimentos e as implicações da ciência e da tecnicidade moderna têm uma presença importante em muitos dos seus trabalhos centrais, na medida em que a compreendeu como parte integrante e característica da cultura moderna que se expande para esfera da religião e da arte, da vida urbana e da economia.”

Simmel é considerado um pensador interdisciplinar, sobretudo porque adentrou por temas que eram considerados fluidos e não passíveis de aprofundamentos, por vários pensadores da época, não porque não eram importantes, mas, talvez não seriam controláveis para o modo de pensamento científico do século XIX. A interação e a intersubjetividade incluída na obra deste pensador está fundamentada na idéia de movimento que revela o fragmento, a pluralidade e a imprevisibilidade. João Carlos Tedesco afirma que “[…] por isso seu panteísmo estético como episteme, no qual se entende que cada ponto, cada fragmento superficial e fugaz é passível de significado estético absoluto, de compreender o sentido total, os traços significativos, do fragmento à totalidade.”

A valorização destes aspectos aproxima Simmel de Walter Benjamin. Talvez por este último ter sido aluno de Simmel, foi um dos que proporcionou a Benjamin o contato com uma episteme organizada em torno de metáforas. Assim, tanto para um, quanto para outro, a alienação tem profunda relação com a cultura. Memória e Modernidade possuem em comum o fato da redução de valores tradicionais e a geração de descontinuidades recorrentes, resultando nestes autores a noção de tempo perdido e nostalgia que aparece, particularmente, em Simmel, quando este estuda a Metrópole e a Monetarização interferindo na vida mental, nos modos de existir do homem moderno. Como bem constata João Carlos Tedesco “[…] os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicação que faz o indivíduo de preservar a autonomia e a individualidade de sua existência em face das esmagadoras forças sociais da herança histórica da cultura externa e da técnica da vida.”

George Simmel, Walter Benjamin e a alienação cultural

Com mais de cem anos de existência o cinema é um dos artefatos culturais que disseminam, simultaneamente, subjetividades hegemônicas e de resistência. Não podemos nos referir a ele como elemento artístico, puramente, pois está condicionado aos interesses da indústria do entretenimento que controla e operacionaliza toda a cadeia produtiva dos elementos e etapas da produção cinematográfica. O filme é uma criação da coletividade e para a coletividade. Sua reprodutibilidade técnica está relacionada/subordinada à própria produção. Esta autoriza a difusão em massa para que o produto possa chegar às massas e seja passível economicamente de ser consumido. Porém, faz-se necessário apontar as diversas experiências conhecidas como “cinema de autor”, “cinema autoral”. São aquelas em que o diretor/roteirista e/ou diretor e roteirista expressam suas ideias a partir do uso de linguagens que experienciam novos rumos estéticos e que não estão, necessariamente, a serviço dos produtores e distribuidores que lucram com este mercado; ou, até mesmo, em adesão a governos e às subjetividades em movimento que surgem das relações de poder.

O cinema como partícipe da indústria cultural

Sabemos, portanto, que não se pode dizer que não haja interferências, seja de indivíduos, instituições, seja de corporações na obra de qualquer autor. Este, por sua vez, é parte integrante da engrenagem social e sua produção artística é atravessada pela maquínica capitalística ou do poder. Afinal, o cinema como partícipe da indústria cultural, sempre esteve intimamente relacionado com a cultura de massas. Walter Benjamin no ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica lembra que “no interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência.” O que há de fato é a possibilidade de expressão do cinema como arte, nas diversas fases históricas existentes, em conjunturas diversas no tempo e no espaço. Esta possibilidade de expressão não se realiza sem disputas, consensos e dissensos.

Trata-se, então, de colocar em discussão as subjetividades expostas pelo cinema cujo alcance perpassa décadas e países. Tanto como tentativa de criação autoral como coletiva, a obra cinematográfica, o produto final que é o filme traz em todas as etapas de criação modos de subjetivação. Rejeitando a noção de subjetividade como sinonímia de identidade e personalidade, apresentadas de forma dualística (exterior versus interior) carregada pela idéia de verdade, a subjetividade pode ser pensada como formações provisórias de sentidos que se misturam em infindáveis arranjos. Leila Machado concebe os modos de subjetivação como históricos, todavia esta relação é de processualidade. Para esta autora “os modos de subjetivação referem-se à própria força das transformações, ao devir, o intempestivo, aos processos de dissolução das formas dadas e cristalizadas, uma espécie de movimento “instituinte” que, ao se instituir, ao configurar um território, assumiria uma dada forma-subjetividade”.

O que é desvelado nesta passagem é o antigo modo de se pensar a vida de forma polarizada, binária, maniqueísta e que escolhe um dos extremos para coroá-lo com a verdade. A noção de subjetividade, assim entendida, põe em reclusão as subjetividades sob o prisma da esfera privada, do auto-conhecimento (interioridade), do intimismo característico dos discursos burgueses.

Para pensar esta trama é preciso compreender que nós, as instituições, o sistema econômico somos formas que geram, criam sentidos específicos para todas as redes de relação em todos os âmbitos da existência. Nossas nomeações, filiações, gostos, desejos, rejeições e aprovações passam por esta rede de significações que são alteradas pelo jogo de forças existentes no meio social.

Esta perspectiva redimensiona o conceito de poder, deslocando-o de um lugar central, de uma persona detentora do mais absoluto designo. Ele torna-se um exercício, uma relação afastada de qualquer polarização, pois se trata de usos e práticas. Desse modo ocupamos tanto as práticas de dominação quanto de resistências, todas anônimas e movediças. Nossa época engendra expressões que constituí aquilo que chamamos indivíduo, individualidade, homem, mulher, criança, família. Quando acreditamos nestas categorizações, estamos, nada mais do que, enxergando através das lentes de uma época, assim como faz o cinema através da narrativa das estórias contadas pela imagem.

Fahrenheit 451

A Obra Fahrenheit 451de Ray Bradbury, publicada em 1953, período que converge com o auge do Macartismo, foi de início uma produção que se voltou para a crítica daquilo que o autor entendia por uma sociedade desfuncionalizada, cuja característica principal era o individualismo e ausência de vida criativa. Escrito e dirigido por François Truffautt em 1966, o filme homômimo à obra nos apresenta o caráter de vazio das existências que não passam mais pelo aprendizado a partir da experiência. A proibição a qualquer forma de leitura foi uma crítica contundente a televisão na década de 60. Naquele momento, acreditava-se no predomínio de um suporte sobre o outro e o fascínio que causava a difusão da imagem em detrimento da leitura. Sabe-se, hoje, que os suportes podem coexistir, inclusive, para estimular e divulgar obras literárias. O filme de Truffaut apresenta uma atmosfera em que os indivíduos, esvaziados de sentido para sua relação com a vida e com o mundo são suscetíveis a aprendizados mecânicos e desprovidos de criação e interação.

A atrofia da experiência, entendida por Benjamin como a capacidade de narrar a vida através da memória constituída por uma narrativa coletiva e social, vista em Fahrenheit 451, simbolizada pela metáfora do fogo que destrói livros, aí está a função da memória que é anulada em substituição da presentificação que fragmenta as relações sociais e afetivas mais profundas. O esvaziamento do indivíduo e da sociedade faz parte da dinâmica do poder que se apresenta como totalitário. Este exercício do poder gera a melancolia vista em todos os personagens do filmes, com exceção de Clarice, cuja disposição e dinamismo contagia completamente o bombeiro Montag. A incapacidade de narrar suas próprias experiências é fruto da interferência da transformação do mundo pela tecnologia que o Capitalismo conformou em diversas fases históricas. Para ir de encontro a solidão e a melancolia, os habitantes que resistiram ao modo de vida da maioria, resolverão, através da leitura, incorporar as narrativas dos romances, que para eles eram mais significativos, a tal ponto de cada indivíduo representar uma obra e incorporá-la como seu próprio “eu”.

A discussão em torno da tecnologia no filme, ancorada na teoria social de Simmel contribui para que compreendamos que os aparatos tecnológicos são permeados pelas relações de poder subjacentes nas correlações de forças que compõem a sociedade. Simmel percebeu que era importante introduzir a dimensão metafísica, psicológica e cultural junto às análises do Materialismo Histórico.

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