Uma Biblioteca Popular Modelo[1]
Louis Leroy, em “Le Charivari”, 5 agosto de 1867.
O conselho municipal de Cornillard-les-Nèfles reuniu-se após a missa para deliberar sobre a escolha das obras destinadas a formar a mente e o coração dos habitantes da comunidade.
O Prefeito. – Senhores do conselho, fomos convidados pelo bispo e pelo Governador a tomar o maior cuidado na composição de nossa biblioteca popular. Vamos cuidar disso, é tudo o que estou dizendo.
O 1º Conselheiro. – Senhores, se há um livro que é louvável e virtuoso entre todos os outros, é, certamente, Paulo e Virginia[2], por isso tenho a honra de propor sua aquisição ao conselho. (Os membros do grupo clerical batem na mesa com violência.) Como! minha proposta pareceria subversiva?
O tesoureiro da fábrica. – No mais alto grau! Eu gostaria de Faublas[3] tanto quanto (murmúrio leve). Pelo menos com este você sabe com quem está lidando, enquanto que, com os dois amantes da Ile-de-France, a galanteria assume a máscara da inocência para melhor perverter os corações.
O conselheiro. – Ah! você exagera.
O tesoureiro. – Estou exagerando! Mas você esqueceu esse episódio no naufrágio quando um grande diabo de um marinheiro ousou aparecer sem o menor traje diante de Virginia?
O conselheiro (gentilmente). – Mas foi para salvar sua vida, carregando-a nos braços dele através das ondas furiosas.
O Tesoureiro. – Em seus braços! Vocês ouvem isso, senhores, em seus braços! Uma donzela pura nos braços de um homem sem roupa!
O conselheiro. – Além disso, Virgínia recusa sua oferta.
O Tesoureiro – O que sempre me surpreendeu de uma garota tão comprometida; sim, repito, terrivelmente comprometido por seu Sr. Paulo! E seria em um país de fábricas que você gostaria de dar tal exemplo aos jovens de ambos os sexos?
O Prefeito – Coloco em votação a compra de Paulo e Virgínia.
(Uma grande maioria votou contra o trabalho imoral de Bernardin de Saint-Pierre).
O conselheiro, timidamente. – Eu acho… eu acho… eu acho que Robinson Crusoé poderia ganhar alguns votos.
O tesoureiro. – E depois de Robinson, a Guerre des Dieux[4], certo?
O conselheiro. – Ah, que ideia!
O Tesoureiro. – Você finge não saber que Daniel Defoe era um protestante.
O conselheiro. – Isso é motivo para recusar sua obra-prima?
O Tesoureiro. – Ah! Se isso não for suficiente para você, o que você precisa então?
O prefeito, vindo em auxílio de seu conselheiro – Este Robinson não está sempre sozinho em sua ilha?
O tesoureiro, ironicamente. – Até “Sexta-feira” chegar.
O prefeito. – É verdade, eu o tinha esquecido. Não vamos mais falar de Robinson, cavalheiros; mas não creio que possa haver qualquer objeção à compra da Moralidade em Ação[5].
O tesoureiro (azedamente). – Você acha que sim?
O Prefeito. – Senhor!
O Tesoureiro. – Mas este livro está cheio de belas linhas emprestadas dos gregos e romanos.
O prefeito. – Bem?
O tesoureiro. – Pagãos, idólatras, pessoas que adoravam Vênus de todas as formas!
O Prefeito. – Ah! desde que eles adorassem as formas de Vênus… Vamos então seguir em frente.
Uma voz. – Estelle e Némorin?
O Tesoureiro, indignado. – Invoco o membro que ousou fazer tal proposta para se apresentar… (Silêncio geral.) Não se tem a coragem da própria torpeza!
O Prefeito. – O que você acha de Berquin?
O tesoureiro. – Berquin foi um contemporâneo de Voltaire!
O prefeito. – Ah, maldição! O que diria M. Lacaze!
O conselheiro. – Eu me curvo, ao mesmo tempo em que chamo a atenção do conselho para o fato de que não estamos decidindo nada. Vejamos, a Geografia[6] do Abbé Gaultier?
O tesoureiro. – Então você quer realmente incutir nos habitantes de Cornillard-les-Nèfles o gosto pelo absentismo?
O conselheiro. – Com geografia?
O tesoureiro. – Isso não encoraja as viagens?
O prefeito. – É óbvio.
O conselheiro. – Bem, um tratado sobre astronomia de algum tipo?
O tesoureiro. – Para endeusar Galileu e provar que Joshua[7] está errado mais uma vez, sem dúvida?
O conselheiro. – Eu juro que não tinha intenção de ser desagradável para Joshua!
O tesoureiro. – Não parece ser assim.
O Prefeito. – Bem, esquecemos a Gramática[8] de Lhomond. Coloco isso à votação.
O resultado da apuração dos votos é dez votos a favor e onze votos contra.
O Prefeito. – Lhomond é rejeitado; é singular.
O tesoureiro. -Há ainda mais livros em nossa biblioteca popular do que ela precisa.
O conselheiro: Mas quais? Nós rejeitamos tudo.
O Tesoureiro – Não é o número que faz o mérito de uma biblioteca, é a escolha; e nossos eleitores poderão aproveitá-la sem nosso medo que percam sua piedosa e santa ignorância!
Sobre Louis Leroy
Louis Leroy (1812-1885) foi um pintor, dramaturgo e crítico de arte francês. Leroy escrevia com frequência para o jornal francês Le Charivari, com tom de humor e ironia . É atribuído ao artista a expressão “impressionista”, pela crítica negativa a à obra “Impression, soleil levant” de Claude Monet, que por sua vez, tornou-se representante do movimento artístico “impressionismo”.
Leia mais em:
LEROY, L. Une bibliothèque populaire modèle. Le Charivari, 5 août 1867. https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k30664118/f2.item . Acesso em: 21 jul. 2022.
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BRIQUET DE LEMOS, A. A. Qual a importância da censura nas bibliotecas brasileiras. CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO, 10. 1979. Anais… FEBAB: Curitiba, 1979. Disponível em: http://repositorio.febab.org.br/items/show/2038 . Acesso em 20 jul. 2022.
IFLA. IFLA Statement on Censorship. Haia: IFLA, 2019. Disponível em: https://cdn.ifla.org/wp-content/uploads/files/assets/faife/statements/ifla_statement_on_censorship.pdf . Acesso em: 31 jul. 2022.
RENKL, M. In Tennessee, the ‘Maus’ Controversy Is the Least of Our Worries. The New York Times, 07 feb., 2022. Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/02/07/opinion/culture/maus-tennessee-book-bans.html . Acesso em: 28 jul. 2022.
[1] Disponível em: LEROY, L. Une bibliothèque populaire modèle. Le Charivari, 5 août 1867. https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k30664118/f2.item . Acesso em: 21 jul. 2022.
[2] Ver: “Paul et Virginie”, de Bernardin de Saint-Pierre
[3] Ver: “Les Amours du chevalier de Faublas”, de Jean-Baptiste Louvet de Couvray
[4] Ver: “Guerre des Dieux anciens et modernes”, de Évariste de Parny
[5] Ver: “La morale en action”, de Arnaud Berquin
[6] Ver: “Leçons de géographie”, de Louis Gaultier.
[7] Variação para “Jesus” ou “Deus é salvação”.
[8] Ver: “Élémens de la grammaire française” de Charles François Lhomond.