Mercedes Ferreira Galvão
MERCEDES FERREIRA GALVÃO (Codinomes “Renata” e “Cecília”). Confessa que em 1968 participou de passeatas estudantis; que um elemento subversivo lhe deu para ler diversos livros de conteúdo marxista, tendo-os aceito; que em 1970 ingressou nas fileiras da OCML-PO; que a sua célula era a C-30; que era encarregada de guardar e organizar a Biblioteca da organização; que as reuniões da célula C-10, a qual também pertenceu, eram realizadas em sua residência, sita a Travessa Prof. Antonio Borges,6; que os livros encontrados em sua residência constituía a biblioteca da organização; que efetivamente militou na OCML-PO; que a linha política da OCML-PO era a propagação do marxismo no meio operário; que não se arrependeu de ter pertencido à OCML-PO e nem tampouco pensou em abandonar a sua organização, por estar de acordo com seus ideais.
Impõe-se a condenação de acordo com o artigo 14 da Lei de Segurança Nacional.
Sentença proferida em 9 de julho de 1973
Em sua edição de nove de agosto de 1972, o Jornal do Brasil noticiava o desmantelamento de uma instituição subversiva localizada em Salvador. Tratava-se da Organização de Combate Marxista-Leninista, Política Operária. Conhecida pela sigla OCML-PO, formada por setores politizados da juventude e intelectuais que repudiavam a política de alianças com a burguesia nacional e o imperialismo e propunha uma reforma socialista pela formação de quadros de operários.
Ainda segundo o jornal carioca, oito líderes da organização foram detidos durante a bem-sucedida Operação Cairu – em tupi, árvores de folha escuras. Os registros da 6ª Região Militar do Exército apresentam uma cifra maior de presos para averiguação, 21 ao todo, sendo 18 homens e três mulheres, de professores a estudantes secundaristas. Dentre os oito líderes subversivos havia uma jovem bibliotecária. Tratava-se de Mercedes Ferreira Galvão, 28 anos, solteira, natural de Ilhéus (BA). Filha de um comerciante e de uma dona de casa, Mercedes, logo após concluir o ginasial e o colegial no Instituto Municipal de Educação de Ilhéus, foi aprovada no vestibular para o curso de Biblioteconomia da Universidade Federal da Bahia. Ainda caloura, afetada pelo clima de resistência contra o regime militar que embalava a comunidade acadêmica, participou das passeatas estudantis de 1968, contrárias ao Ato Institucional Número Cinco (AI-5), emitido pelo então Presidente Costa e Silva. Tal ato, o mais duro dentre os dezessetes decretados nos anos que se seguiram ao golpe de Estado de 1964, resultou na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, em intervenções ordenadas pelo presidente nos municípios e estados, na suspensão de quaisquer garantias constitucionais, na ilegalidade das reuniões políticas não autorizadas pela polícia, e na censura prévia de música, cinema, teatro e televisão. Presa, ao ser interrogada sobre sua presença em tais atos, informou, serenamente, que estava ali como “massa”. Esta primeira experiência de se congregar com tanta gente pelas ruas da capital baiana lhe permitiu constatar que os seus sonhos juvenis eram compartilhados. Foi nas vielas, subidas e descidas de Salvador que Mercedes despertou a consciência social, abandonando de vez, a condição de mera espectadora de seu infortúnio e do povo brasileiro. Sua primeira ação foi não se deixar contaminar pela apatia política que reinava entre os estudantes de Biblioteconomia. Assim, formalizou, já no ano seguinte, sua candidatura única ao cargo de presidente do diretório acadêmico do curso de Biblioteconomia. Como esperado de uma mulher destemida, declarou aos militares, sem ruborizar, que nesta época não se envolvia em política.
Foi no último ano da graduação que Mercedes conheceu Clovis, “rapaz de estatura mediana, moreno claro, compleição física média, com cerca de vinte e quatro anos, cabelos pretos”, personagem que terá papel importante em sua trajetória. O primeiro bate-papo travado no bandejão da universidade gerou enorme empatia, e acabou se desdobrando em tantos outros encontros. Inicialmente a dupla de jovens discutia o que Mercedes, em interrogatório policial, definiu como “problemas gerais”. Entretanto, não demorou para que Clóvis oferecesse à futura bibliotecária alguns exemplares do jornal Política Operária. A partir de então, os interlóquios secretos se remeterão aos textos marxistas, culminando no convite para Mercedes participar de um pequeno grupo destinado a ler e discutir livros subversivos, o qual foi prontamente aceito pela moça.
Na companhia do estudante de engenharia apelidado Vieira, curtia as praias de Salvador para discutir o conteúdo dos livros fornecidos pelo próprio Clóvis. Sob o hálito fresco do Atlântico, se deixava inebriar com o que vai lhe sendo delicadamente desnudado, passando a dividir com os dois companheiros suas inquietações mais íntimas. Vai percebendo, paulatinamente, que sua vida e a dos outros são artefatos humanos, entendendo, por certo, a frase de Marx e Engels: “Os homens modificados são, portanto, produto de outras circunstâncias e de uma educação modificada.” Mercedes tinha pressa em se mudar. Além dos livros tomados de empréstimo, passou a adquirir, sofregamente, obras nas livrarias da cidade. Diante do inspetor da Polícia Federal, se recorda do título de dois deles: “História da Riqueza do Homem”, do escritor socialista norteamericano Leo Huberman, best seller no país; e “Princípios Fundamentais da Filosofia”, de Georges Politzer, Guy Besse e Maurice Caveing, que o apresenta tanto enquanto método de reflexão sobre a realidade, como instrumento para a sua transformação.
Fascinada pela ideia de transformar a palavra lida em justiça social, foi convidada por Clovis, juntamente com Vieira, a ingressarem na organização. Os olhos da dupla brilharam. Era agosto ou setembro de 1970. Assim, já no início da primavera, os neófitos passaram a compor uma célula, a C-30, juntamente com dois outros jovens. Mercedes, em interrogatório, mencionou a presença da socióloga Karla, cujo nome de batismo era Vânia, uma antiga colega de pensionato. Recentemente, Mercedes admitiu ter inventado a colega para estancar a empreitada militar em desbaratar a organização no Sul.
Apesar do brio, a C-30, encarregada do setor estudantil, nada conseguiu realizar “em virtude do nível político ser bastante baixo”, segundo confissão da própria Mercedes. Após algum tempo, houve uma defecção generalizada na célula, deixando Mercedes sozinha, o que fez ser realocada para a C-10, responsável pelo setor interno. Tal célula se ocupava de distribuir documentos entre os membros da organização. Em seu tempo livre, Mercedes e os outros dois companheiros se devotavam ao estudo e a discussão dos livros. Os acalorados debates políticos ocorriam em seu próprio apartamento, na Travessa Professor Antônio Borges, número 6. Era também em sua residência que Mercedes organizava e mantinha segura a explosiva biblioteca da organização. Perseverante, Mercedes presenciou, com certa desolação, companheiros desertarem, reduzindo a organização da Bahia a um mísero núcleo. Recentemente contratada pela Universidade Católica de Salvador, não demorou a ser presa.
Recaiu sobre ela a acusação de ser uma das principais líderes do núcleo subversivo baiano. A influência da bibliotecária graduada pela Universidade Federal da Bahia, apelidada na organização de Cecília ou Renata, estaria comprovada por sua incumbência de efetivar um dos principais objetivos do Partido, a saber, a formação de seus quadros. Mercedes, desde o ingresso na organização, se colocou como ponte entre os livros e os militantes. Ela estava convencida de que a revolução só se concretizaria com uma formação programática e permanente de seus membros. Embora os autos processuais não tragam o rol dos livros por ela escondidos, o colegiado militar faz questão de conceituá-los como “livros clássicos do marxismo”, tornando Mercedes uma figura incontestavelmente perigosa. Nos interrogatórios dos demais subversivos constam algumas das tais obras nocivas: Inflação, arma dos ricos, de Fausto Cupertino; Petróleo, apesar de Mr. Link, de Tácito Freitas; Uma blusa no cais, de Reginaldo Guimarães; Quem matou Kennedy, de Nestor Werneck Sodré; Contribuição à história: das lutas operárias do Brasil, de Hermínio Linhares; Carreirista da Traição, de Epitácio Caio.
Após três meses detida no Quartel da Amaralina, lhe foi permitido esperar a sentença em liberdade. Denunciada pelo Ministério Público Militar, juntamente com outros companheiros, como incursa no art. 43 do Decreto-Lei 898/69 – “tentar reorganizar de fato ou de direito, ainda que sob falso nome ou forma simulada, partido político ou associação, dissolvidos por fôrça de disposição legal ou de decisão judicial” –, Mercedes acaba sendo condenada pela Auditoria da 6ª Circunscrição Judiciária Militar, em 9 de julho de 1973, a uma pena de dois anos de reclusão, como incursa no art. 14 do mesmo Decreto-Lei – “formar, filia-se ou manter associação de qualquer titulo, comitê, entidade de classe ou agrupamento que, sob a orientação ou com o auxílio de govêrno estrangeiro ou organização internacional, exerça atividades prejudiciais ou perigosas à Segurança Nacional.” O Conselho Permanente de Justiça justificou a reclassificação nos seguintes termos: “Dessarte [sic], é patente o enquadramento dos mesmos no art. 14 da LSN, porquanto a OCML-PO é uma organização criada por elementos adeptos de doutrina marxista-leninista, que objetivam a tomada do poder pela força, para a implantação de regime socialista no país. Essa organização, todavia, não foi dissolvida por lei ou decisão judicial de modo a ser reorganizada como quer a art. 43 da LSN.”
Porém, como deixar evidente para as famílias de bem que aquele diminuto grupo juvenil era, com efeito, uma organização extremamente perigosa? Surpreendentemente o argumento principal recaiu sobre o acervo bibliográfico descoberto. Assim consta na sentença: “As apreensões de livros e impressos da organização, em número bastante elevado, encontrados nas residências de alguns dos apontados não permite divagações nem dúvidas sobre serem esses acusados elementos integrantes da OCML-PO, bem como os demais por eles apontados.”
Boa parte dos livros hediondos estava sob os cuidados de Mercedes. Assim, os títulos flagrados em sua residência, tecnicamente ordenados e disponíveis para acesso aos militantes, a converteu numa bibliotecária subversiva, perpetradora e facilitadora da prática de crimes contra a segurança nacional. Condenada, Mercedes ficará na Casa de Detenção do Estado da Bahia. A partir do dia 16 de fevereiro de 1974, lhe é concedido o benefício de sair do cárcere, quinzenalmente, todos os sábados. Em 31 de maio de 1974, finalmente, lhe é concedido o benefício de livramento condicional.
Contudo, o suplício das grades jamais refreou os ímpetos de liberdade da bibliotecária. Em 1980, a ex-presidiária foi vista frequentando um curso de guerrilha na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. No ano seguinte, agora filiada ao recém-criado Partido dos Trabalhadores, a bibliotecária atrai a atenção dos militares com sua presença no Curso Beta. Situado no Largo de Roma, da Cidade Baixa de Salvador, e funcionando em um edifício do Círculo Operário Cristão, o Beta oferecia aos interessados cursos de 1º e de 2º graus, supletivo e pré-vestibular. Apesar do “nada consta” na Junta Comercial, o tal curso foi “fichado”, sob a alegação de que “nas salas de aula do referido estabelecimento de ensino, acima do quadro-negro, são vistos artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem”. Conversa fiada, segundo declarou Mercedes em conversa recente. O que ela fez foi se mudar para o Rio, casar-se e continuar atuando no subúrbio de Duque de Caxias na formação política de operários até o fim da organização.
Em 2004, Mercedes Ferreira Galvão foi anistiada, recebendo reparação econômica em caráter indenizatório pela violência com que foi tratada pelo Estado brasileiro por ter ousado militar em favor da liberdade e da igualdade.