Por Rayanderson Guerra de O Globo
O cheiro da água salgada, dos caranguejos frescos e do mangue ainda estão vivos na memória de Luciana de Jesus, de 45 anos, e Richardson Correia, de 40. Quando a maré subia na Baía de Guanabara, na altura de Jardim Gramacho, há três décadas, o mergulho e a corrida à procura de tainhas e pitus eram garantidos. O lixão chegou, a área foi aterrada e as brincadeiras mudaram. Na porta de casa, Richardson, mais conhecido como Kiko, hoje mostra o local de sua infância, a rampinha cheia de entulho e sujeira, ainda da época em que “o aterro alimentava os catadores”. O lixo, acumulado por anos a fio, agora vai dar espaço a livros, na primeira biblioteca da comunidade, que é uma iniciativa dos moradores, em parceria com a ONG Teto.
A população se uniu a voluntários para cavar os pilares do novo espaço, que terá 36 metros quadrados. A construção, iniciada há três semanas, ocorre sempre aos fins de semana, e a previsão é que em um mês os primeiros livros ocupem as prateleiras.
Construída com painéis de madeira pré-fabricados, o espaço vai atender crianças e adultos de toda a região, principalmente os moradores da parte mais pobre de Jardim Gramacho, onde o saneamento básico e a água potável continuam sendo uma realidade ainda distante.
— É uma melhoria principalmente para os meus filhos. A verdade é que Jardim Gramacho não tem nada. Na biblioteca vão poder ler, estudar — explica Kiko, que vive na comunidade há 40 anos e faz parte do grupo que participou da discussão sobre o espaço. — A população está se unindo para a construção. O pessoal do Teto ajuda, mas, se as pessoas fossem ainda mais unidas, já estaríamos com a biblioteca de pé.
No sábado passado, a chuva fina, a ventania e a lama que escorre e ocupa as ruas não impediu mais um dia de trabalho na obra. Debaixo d’água, cavadeiras e alavancas não pararam.
Luciana mora em Jardim Gramacho há 33 anos. Ela parou os estudos ainda criança e, agora, divide as noites entre os cuidados com os filhos, a casa e a sala de aula. Ela conta que voltou a estudar há dois anos. Está no 7º ano e a biblioteca deve se tornar sua segunda casa.
— Eu, que estudo à noite, gostaria de fazer um trabalho da escola e não tenho como, não existe um lugar para pesquisar em livros — conta.
ÁREA NÃO FOI REURBANIZADA
O projeto foi desenvolvido em reuniões com líderes comunitários, moradores e voluntários, que identificavam as necessidades da população e possíveis soluções. A educação foi um dos pontos prioritários, e a biblioteca uma consequência.
Quando o aterro foi desativado em 2012, a promessa era reurbanizar o bairro. Quatro anos e meio depois, as obras ainda não saíram do papel. O Instituto Estadual do Ambiente (Inea) concluiu um projeto de urbanismo e infraestrutura, ao custo de R$ 1,7 milhão, mas, segundo a Secretaria estadual do Ambiente, por conta da crise, o governo não tem como tocar este e outros projetos.