Coluna de Ana Paula Lisboa em O Globo

Kelly é dez anos mais nova que minha mãe, Kátia, e enquanto aos 25 minha mãe estava casada, minha tia desde os 15 circulava nos bailes da cidade. Chegava a ficar uma semana sumida, fazia minha avó arrancar os cabelos, depois ligava pra minha mãe, se desculpava, dizia estar bem e que apareceria em breve. Quando aparecia, contava histórias épicas de bailes funk, de garotos e meninas, de roupas da Cyclone, de andanças de trem e ônibus. Eu, pequena e atenta aos detalhes, certa de que repetiria cada aventura quando crescesse.

Um pouco mais crescida, quando íamos visitá-la, eu me agarrava a um caderno que minha tia Kelly possuía. Nas páginas, dezenas de letras de funk dos MC’s famosos na época, versos enormes que ela ouvia na rádio e transcrevia. Kelly me ensinou a gostar de funk, mas, para o bem da minha mãe, eu cresci minimamente ajuizada.

Percebo que, desde o caderno da minha tia, existia um claro desejo no funk de dizer de onde veio. Cantar os bailes, as favelas, os clubes. Ostentar seu território, mesmo que ele seja o mais pobre da região dos mais pobres.

Quando ouvi “Baile de favela” nas primeiras vezes — o clipe tem mais de 90 milhões de visualizações, e umas 117 são minhas —, me lembrei das vezes em que ouvia Racionais MC’s e cantava a Zona Leste de São Paulo como se fosse minha. Onde mais eu ouviria o nome das favelas de Eliza Maria, as Casinhas, o Hebron, a Marcone, a São Rafael? MC João passa por Roberto Carlos — “ela veio quente, hoje eu tô fervendo” — e, nos segundos finais do clipe, canta-se o refrão a capela, me deixando sempre arrepiada. O funk é uma máquina de produzir hinos, parecido com a música gospel, e cantar “Baile de favela” é tão gostoso quanto cantar “eu só quero é ser feliz”.

Em 2009, a Alerj aprovou a lei que transformou o funk em patrimônio cultural, mas nem por isso ele se tornou menos proibido. O projeto das UPPs, que tentou trazer mais segurança para a cidade, elegeu o ritmo como o vilão. E mesmo com dois editais da Secretaria Estadual de Cultura premiando criações artísticas diretamente ligadas ao funk, ele ainda é tratado como caso de polícia. Projetos que ganharam os ditos editais, mesmo premiados pelo estado, precisaram negociar com a polícia para acontecer em territórios populares.

É importante deixar claro que vivo o funk como ouvinte, consumidora e fã. Não produzo, não vivo as tretas do dia a dia, não sei de um bando de coisas. Mas sei de uma: o funk sempre se reinventa quando a gente acha que nada mais pode acontecer. A mais recente reinvenção é a volta dos bailes de favela. No Rio, tenho a honra de estar por perto (perto mesmo!), a uns 300 metros: o baile da Nova Holanda é o maior e o melhor baile dessa cidade.

É decisivo contar que a favela da Nova Holanda se formou nos anos 1960, a partir do contexto das remoções de outras favelas. Originalmente foi criada para ser um Centro de Habitação Provisório, os favelados removidos da Zona Sul aprenderiam hábitos de higiene, novas formas de relacionamento social e convivência comunitária (pasmem!). A disposição para a luta por direitos e a formação de instituições e sujeitos dispostos a militar por uma outra perspectiva de favela vem desde essa época. Viver na Nova Holanda não é para fracos.

Num território em que cada centímetro é disputado, uma comunidade conseguir reunir jovens de toda a cidade é um mérito. Jovens lindos, corpos pretos dançantes, não para uma plateia, mas para eles mesmos. Eu sempre fico arrepiada.

Só mesmo a experiência empírica neste caso faz entender. Então, usufrua do meu “quase manual” de baile de favela. Afinal, de que me adiantaria escrever essa coluna se não fosse para colocar o baile da Nova Holanda nas páginas da Cultura?

• Esteja preparado: o baile acontece todos os sábados! Portanto, tire um dia para ouvir MC TH, MC Rodsone, MC Priscila.

• Sobre a chegada: a Nova Holanda fica na borda da Avenida Brasil, passarela 9, Rua Teixeira Ribeiro. Na entrada, não sorria! Faça cara de quem vem toda semana.

• O tarde é sempre cedo: quanto mais tarde, mais “embrazado”.

• Dê um rolé: não fique só na entrada, porque o baile ocupa a rua toda. Vá até o fim da rua por dentro do baile (uns 600 metros). E, na dúvida, entre no trenzinho.

• Fique o máximo de tempo em frente ao paredão de som: baile que é baile tem grave batendo no peito e vibrando o corpo.

• Esqueça seu olhar antropológico e seu dedo acusador em casa.

• Respeita as minas: não importa o tamanho do short, da saia ou do vestido, nunca a toque! Se ela te quiser, você vai saber.

• Como em qualquer lugar com muita gente, proteja seus pertences. É um baile, você não precisa levar nada além de suas chaves, seu celular e dinheiro.

• Não tire fotos. Não faça selfie.

• Por volta das 2h da manhã, não se surpreenda ao ouvir falar de Jesus. Há grupos de evangelismo que distribuem impressos e fazem orações. Por mais de 15 minutos não se ouve funk nas caixas, somente os testemunhos dos homens de Deus que não estão ali para “acabar com o seu divertimento”, como eles mesmos deixam claro.

Porque até Jesus vai ao Baile da Nova Holanda.

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