Helen Thein é bibliotecária, pesquisadora e mestre pela Universidade Humboldt, na Alemanha, com a dissertação “Bibliotecas memoriais: a fim de definir um tipo de biblioteca”. Esta dissertação foi a base da pesquisa para desenvolvimento do meu projeto, pois traz uma ótima síntese sobre o universo dos memoriais na Alemanha, e outros pontos fundamentais, a partir da perspectiva especializada da biblioteconomia.

Em mais uma parceria com a Biblioo, ela me respondeu algumas questões fundamentais sobre esse tipo específico de coleções, e também sobre a cultura de memória, as características dos profissionais que atuam nessas unidades e qual o nosso papel na proteção de ambientes saudáveis e democráticos nas bibliotecas. A entrevista na íntegra você pode acompanhar no canal Bibliotecas em Memoriais, no YouTube.

Os memoriais se baseiam nas características especiais de autenticidade, museologia e educação para a memória como fundamentais. Para você, qual é a definição de uma biblioteca considerada como biblioteca de memorial?

De acordo com esses três pontos chamados por musealidade, autenticidade e pedagogia memorial. Esses três termos são muito importantes. A questão que se destaca é saber se os destaques devem sempre estar relacionados à autenticidade.

Por exemplo, no caso da Arbeitsgemeinschaft der Gedenkstättenbibliotheken (AGGB) [Grupo de Trabalho de Bibliotecas Memoriais] antes de qualquer coisa, nem mesmo a metade das bibliotecas que a compõem existem em locais de memória autênticos. No entanto, eu as entendo como bibliotecas memoriais, a partir do que elas são como um grupo de trabalho, e com o significado contrário, de que a autenticidade não é necessária.

Mas, naturalmente a autenticidade está lá, se você olhar e “ok” onde estamos na biblioteca, e temos também o acervo. Então, a partir dos mínimos acervos nesses locais forem naturalmente autênticos se, por exemplo, houver um testemunho dado, ou simplesmente um depoimento ou documento que é reimpresso…. A partir disso, eu acho que o mais importante em uma biblioteca memorial são destacadamente o acervo e a missão.

E a missão é possível de ser determinada a partir de qual instituição de suporte à qual esta biblioteca está afiliada, porque muito raramente é somente ela em si mesma. Ao contrário, a maioria dos acervos são de propriedades de uma instituição, uma associação, uma fundação, um museu, uma universidade, uma instituição de pesquisa ou, na prática, um memorial.

E depois, naturalmente, a questão: o que as bibliotecas fazem? O que as bibliotecas memoriais em si fazem? Em minha experiência, eu tinha conectado algumas instituições. Isto é: bibliotecas memoriais já existem, algo que eu também sinalizei em minha dissertação, como parte também de uma missão de educação política. Acho isso muito entusiasmante, porque é isso que a sociedade passou a entender.

Você acha que existem diferenças entre uma biblioteca memorial e bibliotecas de outros tipos? Quais dessas diferenças você poderia destacar?

Bem, a biblioteconomia, ou a comunidade bibliotecária, é muito diversa. Entendo, que a pergunta é: qual tipo de comparação é possível? E talvez as bibliotecas memoriais quisessem se limitar a serem em primeira instância apenas como uma biblioteca especial.

E a questão de como uma biblioteca memorial se diferencia de outras bibliotecas especiais? Bibliotecas especiais são geralmente as bibliotecas que possuem coleções especiais, mas também têm solicitações como coleções especiais, assim como as bibliotecas memoriais. Mas, frequentemente elas são acessadas por uma clientela especializada, e somente para visitas, com consulta e sem empréstimo.

Eu, por exemplo, trabalho em uma biblioteca científica especializada em pesquisa histórica contemporânea. Isso significa que eu trabalho em um instituto de pesquisa e a biblioteca foi utilizada em 99% pelos historiadores que trabalham neste instituto. Nós temos uma clientela muito pequena de historiadores amadores que vêm a esta biblioteca, ou de estudantes que escrevem suas teses de mestrado ou de bacharelado, e para isso utilizam nosso acervo constantemente.

Mas, evidentemente, é definido de forma bastante clara. Já na biblioteca memorial isso é um pouco diferente. As instituições as quais as bibliotecas são subordinadas não possuem um quadro profissional expandido. A biblioteca memorial realmente funciona a partir de e para o público. As aquisições desses acervos, a sua salvaguarda, a sistematização e a experiência acumulada são para o público. Ou, se olharmos ao nosso redor, o conceito de sítio de memória, por vezes é muito limitado e, diga-se, apenas para os lugares autênticos.

Por exemplo, os memoriais dos campos de concentração. E eu olho para um memorial e “ok”, eu, quando chegar lá, eu encontraria pessoas que eu poderia perguntar sobre a história daquele local?  Seria ideal que eu conseguisse, pois aquele que me guiaria através destes memoriais me explicaria tudo… mas quando não existe esse guia no momento, é a biblioteca que está aberta ao público.

A grande maioria das bibliotecas memoriais são de  livre acesso. Isso significa que eu posso ir lá, o horário de abertura está claro, então eu simplesmente vou lá, não tenho que me registrar, não tenho que pagar nada por isso, e lá há alguém que pode me ajudar. 

Isso significa que, em grande medida, as bibliotecas memoriais têm um pouco do que normalmente era somente relacionado a biblioteca pública, ou seja, mantêm-na assim para se tornarem uma comunidade, e estão abertas às pessoas que entram e querem fazer pesquisas, querem falar com as pessoas, procuram um lugar para trocas de ideias.

E isso é normal, o que talvez distingue especialmente este tipo de bibliotecas memoriais especiais de outras, poder-se-ia facilmente comparar as [bibliotecas] memoriais com as bibliotecas de museus.

Por exemplo, assim como o museu postal, podem haver vários tipos de listas de selos, e lá é uma biblioteca especial – se pode então encontrar lá a literatura especial, mas esta não é uma biblioteca memorial, o que se está a procura lá é completamente diferente.

E evidentemente há o fato de que as bibliotecas em memoriais têm uma missão de formação política. Estes são, em sua maioria, permanentes, relacionados ao nacional-socialismo ou à ditadura na RDA [República Democrática da Alemanha] ou ao extermínio dos Sinti e dos Roma. Uma vez que estes são tão frequentes, os próprios …. não são tópicos bonitos, não são tópicos que se possa esquivar, são muitas das vezes tópicos muito delicados, às vezes muito difíceis, comoventes, e que se deve ser capaz de suportar.

E para os bibliotecários isso significa, naturalmente, que eles têm que dar suporte aos usuários que entram na instituição. E os bibliotecários são vistos pelas pessoas como o especialista no assunto, o que não é a realidade, e eles têm que suportar isso e depois falar repetidamente sobre assassinato e espancamento até a morte, e talvez, por outro lado, com pessoas que perderam suas famílias no Holocausto ou que perderam suas famílias, ou que os familiares foram perpetradores.

E isso é normal, algo que em bibliotecas em museus não tinha. Foi algo que ficou claro para mim quando comecei a escrever o meu trabalho.

Na sua opinião, qual é a responsabilidade/contribuição das bibliotecas memoriais na cultura de memória? O que fazem os atores na cultura da memória?

Eu realizei um grande número de entrevistas para este trabalho e me deparei com um fenômeno que é em grande parte um fenômeno de biblioteca. Se você perguntar aos bibliotecários “o que você realmente faz durante todo o seu dia?” Ou se você quiser elogiá-los por algo que eles prepararam tão bem que você pode achá-lo bom, então eles sempre dizem: “Eu estou apenas fazendo meu trabalho”. Em outras palavras, os bibliotecários não se veem de modo algum como atores, ou que o que eles fazem é uma conquista intelectual.

Se você olhar o que os bibliotecários fazem em bibliotecas memoriais, por exemplo, como preservar, apoiar o conhecimento e a lembrança, o arquivo de testemunhas contemporâneas e a preservação de forma correta. Mas também o conhecimento, o confronto com ele. Eles sistematizam, e preparam esse material. E em seguida eles se colocam à disposição do público. E frequentemente oferecem seu trabalho sobre a educação política, eles oferecem seus cursos.

Eles são as pessoas a serem contatadas se alguém vier e disser “Eu estou procurando literatura, pois o meu avô estava envolvido nesse período, mas eu não sei o que ele fez. Você pode me ajudar? Vocês são os profissionais para auxiliar na obtenção das informações?” Ou vocês dão cursos ou colocam para outros cursos que acontecem neste memorial, a literatura à disposição?”

Por assim dizer, as bibliotecas sustentam a cultura da memória. Acho que isso já é uma tarefa muito importante em um nível puramente organizacional, muito importante, a primeira é uma tarefa básica da biblioteca, que na verdade faz parte das bibliotecas memoriais. Não se trata simplesmente de uma coleção de livros, mas de uma coleção de livros que um bibliotecário preparou.

Também na biblioteca memorial, esta missão educacional se soma à tarefa de estar à disposição do público como pessoa de contato e, em seguida, atuar de fato ali com seu engajamento, com sua atitude e com seu conhecimento. Afinal, eles não são a prateleira em que os livros são colocados, mas são as pessoas de contato, porque trabalham com esses materiais e interagem com as pessoas que querem usá-los.

A este respeito, e as bibliotecas e os bibliotecários são necessariamente atores da cultura de memória.

Achei muito interessante quando você argumenta em seu artigo, “Uma pequena pedra no catálogo”, que o conhecimento sobre um evento histórico e as reflexões geradas a partir dele são trabalhadas fora da linguagem. Entendi isso como uma nova forma de conhecer e processar a memória do texto. Você poderia falar mais sobre a cultura da escrita e sua contribuição para a cultura da memória?

A cultura da memória tem diferentes níveis e meios. E especialmente agora o olhar se volta para as bibliotecas memoriais. Muitas vezes existem simplesmente monumentos ou maneiras diferentes e tentativas de tornar tangível o que aconteceu ali. E eu acho que é muito bom. Há monumentos e esculturas impressionantes que são muito comoventes emocionalmente. E há também, por exemplo, filmes documentários que tentam explicar o que aconteceu ali. Anteontem mesmo eu vi o filme de Resnais, o “Noite e Neblina”, que é muito, muito impressionante.

O que eu vejo quando ando ao longo dos trilhos de trem e as trilhas que hoje estão cobertas de grama nesses terrenos? O que eu vejo quando entro em um barracão e as pessoas não estão mais deitadas lá. É também no nível textual que se explica ou se pode explicar o que realmente aconteceu ali, é também porque a língua, o idioma, o texto me contam essa história.

Eu também preciso da mediação para que isto me seja explicado, e porque, ao pensar, que se opera a linguagem e os reflexos. Eu preciso da linguagem para poder pensar. E é por isso que os textos deixados para trás, tanto os documentos dos sobreviventes, quanto os dos perpetradores são tão importantes.

E este é o ponto onde eu apresento a tese de que as próprias bibliotecas podem ser memoriais, porque elas têm estes textos colecionados nelas. E eu posso entrar ali e posso lê-los e praticamente entrar em uma comunicação com os textos dos sobreviventes, mesmo que eles não estejam mais ali. Eu acredito nisso. Embora seja algo que mobilize a emoção, não é suficiente apenas erguer-se um memorial.

Eu estava grávida há alguns anos, e vivi algo muito impactante. Há uma cultura de memória muito fragmentada para ser vista e experimentada em um memorial. Mas, eu pensei comigo mesmo, se eu não soubesse o que aconteceu lá, não saberia o que um monumento para crianças com brinquedos quebrados e parecendo triste significaria. Eu não saberia exatamente o que significava se não soubesse a história por trás disso.

E é por isso que eu acho que é necessário ter ambos, é necessário o toque emocional, através de monumentos e esculturas através da arte. Acho isso realmente importante. Mas também precisa de conhecimento de base, por assim dizer, através dos fatos, através da preservação dos textos e da reflexão sobre o processamento científico e o que é preservado.

Qual é a finalidade da rede AGGB para você? Que tipo de apoio concreto a rede oferece a seus membros?

Existem muitas finalidades diferentes, mas eu gostaria, antes de tudo, de me concentrar nas duas áreas de apoio profissional, e o outro é algo como o apoio humano. O apoio profissional para isto tem que ser deixado claro. E muitos financiadores não se dão conta de que nesses memoriais, muitas das suas bibliotecas memoriais são muito pequenas.

Elas têm muito pouco pessoal. Às vezes é apenas contratado por meia jornada de trabalho, e muitas das vezes esse pessoal não é especializado.

Em outras palavras, são pessoas que, por idealismo ou mesmo numa base voluntária, tentam estabelecer estas bibliotecas como bibliotecas memoriais. Exemplo de pessoas que nunca aprenderam a catalogar na vida, não sabem como utilizar bancos de dados, e alguns deles nunca ouviram falar em alguma sistematização. E nesse caso, o grupo da AGGB oferece apoio profissional. E é de fato um apoio para as pessoas que cuidam da biblioteca memorial em suas instituições.

Nela, você encontrará apoio rápido e concreto. E eles não se reúnem apenas uma vez por ano, mas também é um grupo estabelecido de trabalho informal, onde podem escrever uns aos outros, fazer perguntas muito específicas e obter respostas relativamente rápidas. E estas podem ser entendidas como apoio concreto.

Por exemplo, se agora eu tenho dinheiro. Eu posso adquirir um sistema de biblioteca para minha instituição. Qual é o melhor para as minhas necessidades? Vocês, como comunidade, poderiam me dar uma dica?

É ótimo que isso exista. E aqui mencionei apenas exemplos em nível puramente técnico. O próximo nível é a visibilidade, por fazerem as ações juntos. E, o último nível e tipo de apoio é o intercâmbio com colegas, e isso realmente não deve ser subestimado. Como disse anteriormente, as bibliotecas são frequentemente o primeiro ou pelo menos o segundo ponto de contato para os visitantes de sítios memoriais ou mesmo instituições de pesquisa.

E neste ponto, esse grupo de trabalho realmente dá muito apoio. Que eles tentem desenvolver estratégias para lidar com tais questões, por um lado, mas, claro, também com a carga emocional que significa trabalhar permanentemente com um assunto tão terrível. O que significa receber livros sobre este assunto todos os dias. Incluir um livro em um catálogo não significa apenas que o livro é verde ou azul, mas que eu abro esse livro. Eu coloco o título no catálogo, folheio-o, descubro-o.

Quais são os principais tópicos do livro, para se chegar a uma palavra-chave? Eu leio sobre assassinato, homicídio involuntário, coisas horríveis todos os dias. E nesta reunião eu poderia simplesmente trocar pessoas umas com as outras, os bibliotecários uns com os outros. E isso ajuda a falar sobre isso, mas também, além disso, talvez para desenvolver estratégias ou realmente para ver se você não consegue algo como uma supervisão de apoio psicológico quando isso não é mais possível. Quando você já não aguenta mais emocionalmente.

E então todos os colegas, com quem falei durante minha dissertação, disseram como é útil que eles tenham esta rede, que é uma rede muito informal. E isso é totalmente importante. Por exemplo, é uma rede onde você não tem que pagar uma taxa de associação. Por ser tão livre de barreiras, mesmo as menores bibliotecas e videotecas pequenas podem ir lá e realmente tirar proveito dessas trocas.

Isso é ótimo!

Nem toda biblioteca membro é uma biblioteca memorial. Quais são os critérios para a inclusão da biblioteca na rede? Uma biblioteca memorial precisa mesmo de um memorial para estabelecer uma biblioteca memorial?

Metade dos membros não estão exatamente em instituições memoriais. Mas, não é tão simples assim. Obviamente não está ligado a um lugar de memória, mas será contabilizado como se assim fosse, e será aceito no grupo de trabalho. Eu não faço parte do grupo da AGGB, mas na minha opinião, trata-se de ter uma coleção e que esta coleção seja cuidada e que seja acessível ao público. Isto significa que, de alguma forma, é necessário ter uma pessoa responsável.

Conforme observei no grupo, basta dizer: “eu encontrei vocês, eu cuido dessa biblioteca”. Eu fui a uma reunião, e lá eles estão muito abertos, recebem muito bem as pessoas. Um detalhe é que quem vai participar só têm que pagar suas próprias despesas, porque o grupo de trabalho não tem dinheiro próprio para financiamento de ações em grupo ou viagens. Mas então eu poderia informar às pessoas e então decidir se elas querem continuar envolvidas ou não. E então eles consideraram quais instituições, por exemplo, seriam ou não incluídas no catálogo geral da associação.

Existem diferentes cursos educacionais e de treinamento vocacional a serem realizados nestas coleções? Caso contrário, você acha que eles deveriam existir e qual seria o conteúdo ideal para este treinamento?

Sim, essa é uma questão abrangente. Um problema geral na formação em biblioteconomia [na Alemanha] é que há muito pouco sobre esse tema. As pessoas que entram no sistema de biblioteca têm de aprender através de estágios e por eles mesmos. E eu acho que esse tema é um desafio e tanto. E isso não é treinado de forma alguma.

Em minha primeira experiência profissional, eu trabalhei em bibliotecas de pequenos distritos, e sempre me sentia sobrecarregada. Para muitas pessoas, ir à biblioteca era apenas uma desculpa para falar com outras pessoas.

Eu tinha muitos idosos que estavam sozinhos, que estavam simplesmente procurando alguém com quem conversar. Pensei que a biblioteca realmente precisava de uma equipe de bibliotecários e também de assistentes sociais. Mas, isso não está nem mesmo conceitualmente planejado. E se você olhar para o que as bibliotecas devem fazer hoje, elas devem ser lugares de comunicação, educação, aprendizado e toda essa gama de necessidades para atender a sociedade. Mas, os bibliotecários não são treinados para isso, e não está prevista a criação de um campo profissional tão pluralista para assegurar que isso possa ser garantido.

Mas, lógico, essa é uma crítica bastante generalista sobre como funciona a biblioteconomia ou a formação para atuar em biblioteca. E, especialmente sobre as bibliotecas memoriais, e novamente penso no termo “Especial”. Depois que notei em minhas entrevistas como é emocionalmente estressante que muitos ou todos, realmente todos, descrevam trabalhar em uma instituição desse tipo. Eles quase sempre o fazem de forma muito consciente. Eles tomaram a decisão consciente de fazê-lo, a partir de uma convicção política ou social e de uma atitude política.

Mas, isso só faz algo a você ao longo dos anos. Eu perguntei ao ex-diretor pedagógico do memorial Haus der Wannsee Konferenz sobre o por que de não haver um treinamento/apoio para isso, ou se existia alguma estratégia para lidar com isso e para alcançar esses trabalhadores. E ele disse que não, não há. E na verdade é um problema, ou seja, provavelmente agora, isso também foi entendido nos memoriais e poderá ser melhor elaborado.

O apoio psicológico também deveria ser oferecido, algo como a supervisão em psicologia. Ou fundos de financiamento para treinamento, para que se lide com questões como “Como você lida com a tensão? Mas como você lida com essas pessoas que também podem vir à biblioteca com problemas psicológicos e despejar seus problemas lá?”  E mesmo com os bibliotecários, que não estão treinados para isso, como dar apoio?

Quais desafios os bibliotecários enfrentam em relação ao pensamento extremista de direita e ao uso de recursos e serviços das bibliotecas? Por exemplo, você tem algum comentário, opiniões sobre a carga emocional de trabalhar com esta questão?

Esta pergunta poderia ser respondida de forma global e também específica. Eu não falo em termos comparativos entre o enquadramento federal alemão para outros lugares no mundo, e sim sobre o contexto alemão. Há um grande debate em curso sobre a literatura de extrema-direita em bibliotecas públicas. Ou literatura que faz fronteira com o extremismo de direita. Há alguns livros que eu pelo menos descreveria como xenófobos ou de extrema-direita. Há também pequenas editoras de extrema-direita. Em que medida esses grupos são apoiados? Tendo os seus títulos comprados por bibliotecas.

Em qual medida as bibliotecas devem garantir a pluralidade? Essa é outra questão, mas talvez ela se aplique antes de tudo às bibliotecas memoriais, onde é claro que devemos manter e preservar as fontes dos perpetradores, a fim de estabelecer o contexto, como prioridade, refletir sobre isso em primeiro lugar. Mesmo o pensamento extremista de direita está presente por escrito, ele já existe. E ouvi isso de alguns bibliotecários que me disseram que as pessoas entraram em sua instituição e os confrontaram com o pensamento extremista de direita e exigiram que eles comentassem sobre suas posições políticas.

Eu considero isso ainda muito pouco discutido. Será que esses confrontos colocaram de vez o bibliotecário neste debate? É claro que eu acho que os bibliotecários teriam que ser treinados para isso. Não é possível que somente quando eu tenho tais incidentes que as pessoas comecem a pensar em como treinar o seu pessoal, como devem lidar com tais situações e pessoas. Em geral, existe simplesmente algo como as “regras da casa”. E, se alguém intimida ou extremista de direita se comporta de forma ostensiva, esses podem ser expulsos da biblioteca.

Mas isso deve ficar muito claro: as instituições devem tomar uma posição muito clara a esse respeito. E se elas o fizerem, isso significa que deve ser discutido repetidamente nas reuniões de trabalho, e ser debatido desde o recrutamento do profissional. Acredito que o que aconteceu no debate, especialmente no último ano ou dois com o advento da AfD [Alternativa para a Alemanha, partido alemão de extrema direita], é que os incidentes ocorreram de fato repetidamente, especialmente no caso de visitas guiadas em memoriais e museus. Este fenômeno em que as pessoas com declarações extremistas de direita se comportaram com muita autoconfiança em relação aos locais memoriais ou com grupo de estudantes. Você não pode mais assumir que os estudantes façam isso.

Não se pode mais assumir que os alunos simplesmente escutem a tudo isso passivamente, mas sim que eles realmente transmitem o que podem ter sido propagado em casa ou em seu grupo de colegas, por assim dizer, sob a forma de opiniões, slogans ou ideias, que eles refletem e experimentam. Na verdade, são necessários conceitos pedagógicos para lidar com isso. Acho que isso é muito, muito importante, porque a sociedade simplesmente tem que agir de acordo. Não basta simplesmente dizer que faz parte da pluralidade de opiniões, que existem opiniões, pois também faz parte do trabalho em um memorial que você tenha uma atitude em relação ao que é o conceito do memorial.

E então devemos pensar: “somos um agente dessa instituição, e então é muito importante refletir sobre isso”.

Mas é realmente uma tarefa estrutural, das instituições, de garantir que as pessoas que lá trabalham tenham estratégias de como se comportar, ou que seja uma espécie de sistema de chamadas de emergência que os bibliotecários conheçam: “ok, agora é uma situação em que não posso mais evitá-la, e agora estou chamando meu chefe, e ele tem que agir”. Aí ou ele vai expulsar os usuários ou tirar a discussão de mim, porque ele é o responsável. Por isso, acho que não deveria deixar o profissional sozinho, isso é negligência.

Qual papel nós, bibliotecários dentro e fora dessas bibliotecas memoriais desempenhamos em um cenário de radicalização do discurso do ódio, xenofobia, sexismo, racismo, anti-semitismo, que estão crescendo em nossa sociedade, e com os desafios como o fenômeno chamado “fake news”, a desinformação, despolitização e as arenas das redes sociais?

Entendo que essa é uma questão muito muito ampla, e acredito que pode ser respondida mais com uma visão global do sistema de bibliotecas. Aqui eu concordo com a tendência geral que vê as bibliotecas como algo mais do que apenas estantes, onde o conhecimento é armazenado e disponibilizado.

E esta concepção de bibliotecas como um terceiro lugar, um lugar onde a negociação social, o tratamento, os processos ocorrem, onde as pessoas vão para se informar, mas também para se encontrar e trocar informações. Mas o que é ainda mais diferente do que um lugar público como a rua. Por um lado, a maioria das bibliotecas públicas pode entrar ali sem pagar nenhuma taxa de entrada hoje em dia. Você simplesmente entra. Você pode sentar-se ali, pode ler o jornal sem pagar.

Você pode conhecer pessoas e fazer seus deveres de casa e pode ir a eventos culturais. Você pode encontrar especialistas que podem lhe ajudar quando estiver procurando algo. Mas nestas casas há regras mais rígidas do que nas ruas. Nas bibliotecas existem regras internas, então geralmente há lá bibliotecários que realmente protegem e intervêm imediatamente quando as pessoas são atacadas.

E as pessoas que se comportam de forma sexista, xenófoba, homofóbica etc., são consideradas responsáveis. É aí que a discussão afeta você, bibliotecário. Afinal, existe um sistema legal e, no final, os direitos da instituição devem ser garantidos. Pessoas que se comportam mal e ferem outras pessoas, atacam, insultam, são expulsas de uma casa ou mesmo banidas da instituição. E eu acho que isso é muito legítimo.

A biblioteca é também um abrigo social seguro onde as pessoas podem ter certeza de que não serão atacadas, que podem ir lá para aprender, ler e lidar com seus interesses, por assim dizer. E isso não é apenas porque eles não precisam se esconder em casa, que há lugares na sociedade onde eles podem ir, mesmo que sejam diferentes, mesmo que tenham perguntas específicas.

Portanto, acho que temos uma tarefa muito importante. Mas esta é também mais uma questão sobre como as bibliotecas estão organizadas, certo? A outra questão, que está muito em debate neste momento, é até que ponto as bibliotecas têm a responsabilidade, por exemplo, de fornecer literatura sobre a extrema direita ou a literatura pornográfica etc.

Portanto, eu mesma me vejo um pouco ambivalente sobre isso, mas… Se afirma que as bibliotecas devem representar o pluralismo, retratar a pluralidade da sociedade e, portanto, também devem disponibilizar textos que talvez não se encaixem com os bibliotecários individualmente. O que tem sido esquecido com frequência é que a pluralidade está sempre de alguma forma também nas bibliotecas, sempre há também uma seleção, porque é claro que nem todos os livros que aparecem no mercado de livros estão disponíveis nas bibliotecas. O que é um absurdo, é totalmente idealista. Não há uma biblioteca onde tudo está disponível.

Existem realmente apenas duas grandes bibliotecas – a Biblioteca Nacional (com dois locais, em Frankfurt am Main e Leipzig) – que compram tudo ou o adquirem como cópia. Já as bibliotecas municipais sempre têm uma seleção, e se eu tomar isso como um sinal de meu desinteresse pela seleção, eu tenho que admitir que uma grande quantidade de literatura que me interessa não está lá porque vem de editoras muito pequenas que não são levadas em conta.

Em outras palavras, se você apresenta o argumento da pluralidade, você tem que deixar claro que você tem que comprar tudo, inclusive literatura de direita, você tem que deixar claro que o que você compra é apenas uma seleção. Portanto, não tenho que comprar toda a literatura de direita. E então a próxima pergunta é sobre mediação e apresentação. Essas são as tarefas centrais dos bibliotecários. E depois há a questão de se eu realmente dou espaço para a literatura de extrema-direita, por assim dizer, ou se eu a coloco disponível, mas a coloco no arquivo e digo não, não quero que ela seja apresentada, por assim dizer.

Mas eu quero que seja legível, que as pessoas não tenham que comprá-lo para poder examiná-lo criticamente. E a questão da contextualização, ou seja, quando há uma grande quantidade de literatura de direita e muita literatura sendo discutida, como eu, como biblioteca, que também sou um lugar cultural, tenho a possibilidade de contextualizá-la com outra literatura, que por sua vez também lida com ela de forma crítica? Acho que a biblioteca ou bibliotecas têm muitas possibilidades aqui, possibilidades estratégicas, por exemplo de direita ou mesmo homofóbicos, etc. para realmente apresentar visões de tal forma que funcionem como espaço estreito, o espaço da biblioteca.

Mas eu diria sempre que também existem fundamentos legais. Há também literatura que é, por assim dizer, proibida, por exemplo, de expor em público. Portanto, há limites, e aqui eu sempre olharia para a base legal e diria que não temos que exibi-la. Há o interesse em pesquisa, e isso definitivamente deve ser mantido. Assim como eu, não exibo livremente toda pornografia, literatura e filmes pornográficos em uma loja de vídeo, porque quero claramente proteger as crianças.

Da mesma forma, não tenho que fazer o mesmo com a literatura de extrema-direita. Quais são os limites?  De fato, e aqui voltamos um pouco ao nosso ponto de partida. Até que ponto as bibliotecárias se veem realmente como atores na sociedade, ou se veem apenas como algo como uma prateleira, por assim dizer, que apenas colocam livros e os torna disponíveis.

Eu realmente acho que os bibliotecários estão principalmente em bibliotecas públicas, são necessariamente atores da sociedade, e que eles contribuem para o funcionamento desta sociedade e se ela funciona bem ou mal, se as pessoas sentem que estão em boas mãos lá, se elas são respeitadas, se algo como liberdade de opinião e direitos humanos e assim por diante são respeitados. É aí que as bibliotecas têm um papel importante a desempenhar e, paradoxalmente, por outro lado, elas têm repetidamente atribuído a elas a tarefa de fazê-lo. Mas então eles também deveriam levá-lo a sério e ver-se como tal.

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