Aquiles Alencar Brayner é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Londres-UK, mestre em Línguas e Culturas da América Latina pela Universidade de Leiden e mestre em Biblioteconomia e Ciência da Informação pela Universidade de Londres. Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, em Línguas e Culturas da América Latina pela Universidade de Leiden (Holanda) e em Biblioteconomia pelo Centro Universitário Claretiano.
Foi coordenador dos acervos bibliográficos e arquivísticos da Presidência da República. Ocupou os cargos de Curador do Acervo Latino-americano e Curador Digital da Biblioteca Britânica, sendo o responsável pela implementação de políticas de desenvolvimento e acessibilidade aos acervos, bem como produtos e modelos de gestão para os recursos eletrônicos daquela biblioteca.
Atuou como professor universitário em diversas universidades britânicas. Foi pesquisador residente da Fundação Biblioteca Nacional. Além de gestor na área de curadoria digital, Aquiles atua com políticas públicas em prol da literatura, biblioteca e humanidades digitais.
No último dia 20 de abril, Aquiles assumiu o cargo de diretor do Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB), da Secretaria da Economia Criativa, da Secretaria Especial da Cultura, do Ministério da Cidadania. Três dias depois acabou sendo exonerado depois de receber ataques nas redes sociais com conteúdos difamatórios a respeito da sua vida privada. Nesta entrevista à Biblioo, Aquiles revela como se deu a sua exoneração, a repercussão da redução da biblioteca da presidência na época em que desenvolvia atividades profissionais no espaço e apresenta um panorama a respeito do futuro das políticas públicas para as áreas do livro, leitura e bibliotecas.
Você foi nomeado como diretor do DLLLB e exonerado três dias depois. O que aconteceu nesse episódio?
Logo após a minha nomeação ter sido publicada, comecei a receber ataques nas mídias sociais disparados por milicianos digitais, com conteúdos difamatórios a respeito da minha vida privada, mais precisamente sobre o meu casamento homoafetivo. As argumentações gravitavam na tese de que eu era um homem gay, de militância “tucano-psolista” oposto à direção ideológico-partidária do atual governo, sendo, portanto, inapto para ocupar o cargo para o qual fui nomeado. Fiquei surpreso ao receber tais ataques, principalmente depois de ter atuado por quase um ano na Diretoria de Documentação Histórica, órgão diretamente vinculado ao Gabinete Pessoal do Presidente da República. Minha sólida formação acadêmica e vasta experiência na gestão de acervos e no desenvolvimento de políticas públicas no campo digital, particularmente adquiridas enquanto Curador Digital da Biblioteca Britânica, foram, de repente, desconsideradas no momento em que passaria a atuar na pasta da Cultura. O mais preocupante é saber que estamos reféns de pessoas adversas a qualquer tipo de contribuição à cultura brasileira, não importa se baseado em ideias progressistas ou conservadoras. Há pouco tempo a nomeação de Maria do Carmo Brant de Carvalho para a Secretaria de Diversidade Cultural, uma profissional altamente respeitada em sua área, foi revogada após ataques das milícias digitais, seguindo a pressão de grupos ideológicos. O que fica claro diante destes episódios é que esta facção digital tem como único objetivo desautorizar as decisões tomadas pela Secretária Especial de Cultura, tentando impedir que ela execute quaisquer propostas ou ações que possam beneficiar a cultura brasileira.
Antes de receber o convite para dirigir o DLLLB, você estava desenvolvendo um trabalho na Biblioteca da Presidência. Que atividades você desenvolvia?
O meu trabalho não tinha nenhuma relação com a Biblioteca da Presidência, e sim com o acervo privado do presidente da República. Este acervo é formado por fontes documentais riquíssimas que, uma vez incorporados a coleções de fundações, arquivos, bibliotecas públicas, universidades ou qualquer outro órgão de apoio a pesquisa, servirão como material histórico para usuários no futuro. Parte essencial do meu trabalho foi a construção de um novo sistema de gerenciamento de acervos bibliográficos, arquivísticos e museológicos que garantisse uma maior interoperabilidade entre os milhares de dados sobre coleções de ex-presidentes da República dispersos entre instituições públicas e acervos pessoais. Em suma, o meu projeto de trabalho estava voltado para o desenvolvimento de uma interface coletiva, seguindo os padrões e normas internacionais de curadoria digital, que facilitasse o acesso, criação, enriquecimento, intercâmbio e reutilização de dados históricos entre usuários e instituições de memória no Brasil e exterior.
Nesse ano repercutiu muito mal a diminuição do espaço da Biblioteca da Presidência. Você estava lá nesse período? O que aconteceu de fato?
Na verdade, eu não tinha nenhum vínculo profissional com a Biblioteca da Presidência. Como usuário da biblioteca, posso afirmar que a redução daquele espaço também me pegou de surpresa. Mesmo desconhecendo os motivos que culminaram nesta decisão, espero que os serviços da Biblioteca da Presidência, que são realmente excelentes, possam ser mantidos. Espero, da mesma forma, que se dê continuidade ao desenvolvimento do seu acervo, de grande relevância histórica, para que este não seja comprometido nas futuras medidas que venham a ser adotadas para a biblioteca.
Sobre o DLLLB, como está a situação do órgão que é responsável por desenvolver e gerenciar as políticas públicas de livro, leitura e bibliotecas no Brasil?
Pelo pouco contato que tive com a equipe do DLLLB observei que os servidores do órgão, em especial a equipe nomeada pela Secretária Especial de Cultura, estão totalmente empenhados em realizar um trabalho sério para garantir que as ações e políticas públicas desenvolvidas pela pasta possam responder de forma adequada a este momento tão complexo que vivemos. A indefinição sobre a liderança na Secretaria Especial de Cultura em decorrência da troca constante de seus secretários especiais – cinco nomes passaram pelo cargo em menos de 15 meses – e o limbo criado em torno do Ministério a que a Secretaria estaria atrelada, tudo isso são fatores que exercem, ao meu ver, um impacto negativo na atuação do DLLLB. Creio ainda que as constantes e despropositadas agressões das milícias digitais que vêm sendo orquestradas contra a Secretária Especial de Cultura, ataques totalmente desprovidos de ideias ou propostas de atuação, estão desestimulando ainda mais os servidores do departamento. É realmente muito triste constatar que qualquer intenção de se desenvolver políticas públicas que beneficiem o país no âmbito cultural, seja sequestrada e utilizada como elemento colusivo para alimentar a atuação nociva de facções criminosas que atuam para enfraquecer, ainda mais, o atual governo.
Mais de uma vez o governo Bolsonaro promoveu ingerências sobre esses setores. Como você avalia essa questão?
Tenho observado que o termo “cultura” é ainda entendido no Brasil enquanto “diversão” ou “entretenimento”, algo que realizamos em horas de lazer. Tanto é que não temos hoje nenhuma fonte ou dado substancial sobre o impacto social e econômico que as políticas ou manifestações culturais exercem na vida dos brasileiros. Se criou, nos últimos anos, uma ideia distorcida de que as políticas culturais no país só serviam para beneficiar artistas sem se ter em conta o espectro mais amplo de enriquecimento do Brasil! Apropriando-me da linguagem econômica, é como se a cultura não oferecesse lucro ao país! Ainda que seja difícil mensurar o amplo impacto econômico que a cultura nos traz além do conceito mercadológico dos “eventos de bilheteria”, todos nós sabemos que as manifestações culturais são, de fato, a concretização dos nossos valores, da nossa concepção de mundo, veiculados pela criatividade e liberdade de expressão. É aquela teoria magnífica dos vasos comunicantes apontada pelo escritor Mário Vargas Llosa onde uma narrativa, e eu incluo aqui a nossa experiência pessoal, vai se tecendo entre situações, tempos e espaços distintos, sendo a cultura a interlocutora que nos possibilita o trânsito entre todas estas dimensões que entrelaçam o real e o imaginário. É aquela esperança de que, parafraseando João Gilberto Noll, “tudo poderia ser diferente”! A cultura parece antecipar a postulação dos problemas. E o que eu vejo na atual conjuntura política é uma preocupação exacerbada na formulação de novos problemas para anular qualquer intento de manifestação popular através da expressão cultural.
Na sua opinião, que caminhos devem ser tomados para termos políticas públicas efetivas de livro, leitura e bibliotecas no país?
De um modo geral, as ações do DLLLB deveriam estar pautadas a partir de um plano estratégico que possa responder de maneira satisfatória às necessidades informacionais na nossa era através de políticas de inclusão e transformação digital. O departamento, que tem se esforçado para realizar um bom trabalho para a atuação das bibliotecas, assim como para o fomento do livro e da leitura, parece estar muito moldado aos comportamentos e práticas informacionais do século passado, sem determinar uma ação estratégica que facilite as políticas públicas de livro, leitura, literatura e bibliotecas no contexto dos nativos e imigrantes digitais. Não que eu assuma uma posição negacionista de invalidar a importância que os formatos analógicos ainda exercem na nossa vida cotidiana, principalmente na realidade brasileira, mas de todos os modos chegou a hora de atuarmos dentro dos novos paradigmas de leitura e realidade informacional na era digital. Podemos pensar, por exemplo, em como resgatar e redimensionar os conteúdos registrados em formato físico, muitos deles inclusive já digitalizados, de modo que eles possam ser reapropriados por usuários nos mais possíveis e diversos contextos. É estimular o uso dos acervos de bibliotecas e arquivos por uma vasta gama de pessoas que não somente aquelas poucas que já utilizam os nossos serviços, munindo-os de materiais e inspiração para, por exemplo, apoiar a nossa indústria criativa como no caso daquelas voltadas a criação de jogos eletrônicos. É estimular a disseminação e uso da nossa herança cultural nas mídias digitais de modo a enriquecer e divulgar a riqueza das nossas culturas locais em âmbito nacional e internacional. É trabalhar com o letramento digital, principalmente na formação cidadãos que possam expressar suas opiniões, experiências e conhecimentos utilizando-se de fontes confiáveis de informação. Enfim, é promover uma série de atividades voltadas a um maior e melhor acesso aos acervos e serviços prestados pelos equipamentos culturais, garantindo que o nosso trabalho gere impacto pessoal, social e econômico para uma gama cada vez mais abrangente da população brasileira.
De maneira mais pontual e urgente, o grande desafio que vejo para o DLLLB é desenvolver uma plataforma de trabalho voltada ao Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) que possa reunir dados precisos sobre as mais de 6.000 bibliotecas que fazem parte deste sistema, informações que vão desde os itens de seus acervos e serviços prestados aos impactos que cada uma delas exercem na vida das comunidades a que servem. Estes dados, ainda bastante espúrios, são essenciais para obtermos uma dimensão exata de quais políticas públicas deverão ser adotadas em âmbito federal, estadual e municipal na revitalização de nossas bibliotecas públicas.