Elizandra Souza é prosadora, poeta, jornalista e editora.  Em 2004, começou a frequentar os Saraus da Cooperifa e fundou o coletivo Mjiba com o objetivo de dar visibilidade para a produção literária de escritoras negras.  Em 2012, o coletivo começou a publicar livros como ação estratégica para se contrapor ao bloqueio editorial, que dificulta o acesso a produção literária de autoria negra.  Elizandra participa do exitoso grupo de escritoras e performers, Sarau das Pretas, que desde 2016 apresenta um repertório autoral e de outros escritores em espaços culturais e educacionais.   

Como poeta, publicou o livro “Águas da Cabaça” (2012) e dividiu com Akins Kintê o livro “Punga” (Edições Toró, 2007), além de ter participado de diversas antologias literárias. Pelo selo Mjiba, organizou as publicações “Terra Fértil” (2014), de Jenyffer Nascimento, a Antologia Poética “Pretextos de Mulheres Negras” (2013) e a Antologia Poética “Narrativas Pretas – Sarau das Pretas” (2020). Neste conturbado 2020, Elizandra lançou a coletânea de contos “Filha do fogo: contos de amor e cura”.  Sobre este livro que conversamos a seguir.

Gosto sempre de perguntar sobre as primeiras experiências dos escritores com leitura, escrita e bibliotecas. Quais são as suas memórias mais antigas do seu envolvimento com os livros?

Minha experiência com bibliotecas se deu desde o interior da Bahia, meu pai só sabia assinar o nome e a minha mãe estudou até a quarta série.  Não tínhamos livros em casa, nessa época nem a bíblia. Eu frequentava a única biblioteca que tinha na cidade de Nova Soure.  Lembro de pequena minha tia por parte de pai ter alguns cordéis e ela lia para a sobrinhada toda. Quando vim para a cidade de São Paulo e com minha aproximação da cultura hip-hop eu sentia vontade de ler sobre personalidades negras, o que não aprendi na escola e, também, não tinha no acervo da biblioteca da escola. Passei a frequentar uma biblioteca pública na região, demorava uma hora para chegar lá. Eu pegava todos os livros que eu tinha direito, três livros por quinze dias, quando eu acabava, eu voltava logo para entregar e pegar novos livros.

“Para mim é inconcebível ser escritora sem ser leitora. Sem estudar o nosso fazer literário e sem ler as escritoras negras que vieram antes. Leio muito por prazer, leio por estudos, leio por trabalho, leio quando estou nervosa, leio quando estou alegre, leio quando estou triste. E hoje eu tenho a felicidade e o privilégio de comprar ou ganhar os livros que almejo ler.” – Elizandra Souza

Como você analisa que essas primeiras experiências de leitura podem ter influenciado sua trajetória como escritora?

Dos livros que li neste período, o livro em que encontrei a palavra “Mjiba” (nome do coletivo fundado por Elizandra) é a minha bíblia negra literária: “Zenzele – uma carta para a minha filha” da escritora zimbabuense J. Nozipo Maraire.  Quando publiquei meu primeiro livro “Punga”, em coautoria com o Akins Kintê e publicado pela Edições Toró em 2007, eu guardava dinheiro para comprar livros, todos os livros me foram significativos neste período de leitura. Para mim é inconcebível ser escritora sem ser leitora. Sem estudar o nosso fazer literário e sem ler as escritoras negras que vieram antes. Leio muito por prazer, leio por estudos, leio por trabalho, leio quando estou nervosa, leio quando estou alegre, leio quando estou triste. E hoje eu tenho a felicidade e privilégio de comprar ou ganhar os livros que almejo ler. 

“A ancestralidade dentro da literatura negra é poder se reconectar e ao mesmo tempo recontar histórias apagadas, uma reparação histórica diante de tanto silenciamento.” – Elizandra Souza

Em “Filha do fogo” é marcante a presença de avôs, avós, pessoas idosas e elas são apresentadas como detentoras de um conhecimento que merece ser respeitado. É algo intencional? Qual a importância da ancestralidade na sua literatura?

Há pouco tempo que me dei conta que apesar do livro ter sido concebido há menos de um ano.  O primeiro conto que eu fiz tem 12 anos que é “A primeira vez que fui ao céu”, que depois se transformou em curta metragem pelas mãos do diretor Renato Cândido (clique aqui para assistir),  publicado no livro “O segredo no céu da boca “, da Edições Toró em 2008. Neste conto em especial tem a figura do avô e da avó.  Uma relação bonita entre avô e neta. Uma cumplicidade só deles. 

A ancestralidade está em tudo, não podemos fazer nada sem honrar essa nossa ancestralidade que é tão viva e presente. Eu dedico o livro a toda a minha ancestralidade de homens e de mulheres.  A ancestralidade dentro da literatura negra é poder se reconectar e ao mesmo tempo recontar histórias apagadas, reparação histórica diante de tanto silenciamento. Dentro das histórias de “Filha do fogo” há muita memória afetiva ficcionada dos meus avôs. 

Outro elemento que considerei bem expressivo é o uso de um vocabulário de origem africana, utilizado não apenas nos nomes dos personagens, como também pelas narradoras e pelos personagens.  Como você faz estas escolhas vocabulares? E como você compreende que este uso contribui para o seu projeto literário?

Eu sou apaixonada por nomes africanos e seus significados. Agora também busco nomes iorubas por conta do candomblé. A personagem Inã do conto “Filha do fogo” foi uma escolha bem curiosa, eu procurei no google, que significava “fogo” em ioruba e encontrei Inã. Escrevi a história, mostrei ao meu Babalorixá e ele me contou que tinha um itan sobre Esú Inã e Sangô, me mandou a história. E este conto abre o livro. Esú sempre abre os caminhos e se faz presente. Não foi intencional, poderia dizer coincidência, mas sou de candomblé e como diz meu amigo Emicida “Nunca foi sorte, sempre foi Esú”.

Eu amo dicionários, tenho vários inclusive em iorubá, falares africanos na Bahia. Utilizo nomes africanos na tentativa de me reconectar com a ancestralidade e uma herança que nos foi negada, minha forma de curar o banzo. Dentro da nossa tradição literária, essa prática aparece em Cadernos Negros, aprendi com eles. Então, vem da minha linhagem literária, os Cadernos Negros.

E os provérbios? Que também aparecem com bastante frequência?

É outro elemento que aparece bastante dentro da minha obra e que também é uma herança da literatura africana e nordestina. Tenho me dedicado a pesquisar provérbios no mundo. Tem sido muito interessante ter um conhecimento tão popular dentro da obra. Que é essa síntese de uma sabedoria em uma frase curta, que abre vários portais de conhecimento.

Filha do fogo” é constituído de uma diversidade temática muito interessante. Nos contos mais marcadamente urbanos, aparece a figura do homem negro, lembro especialmente de um personagem que não se envolve emocionalmente com as mulheres e outro que teve duas famílias. Como é tratar sobre as masculinidades negras? Aproveito para perguntar como você lida com esta elaboração de “lugar de fala” na literatura?

Sempre esperei essa pergunta, pois ela me dá oportunidade de falar sobre a construção dos meus personagens homens negros pelo olhar de uma escritora negra. Enquanto escritora é minha oportunidade de ser Deus, Deusa. O meu livro traz uma diversidade de personagens homens. Agora que me dei conta que há pouca presença de paternidade em algumas histórias. Sempre centrado nas mulheres negras. Nem tudo é escrevivência, né? Pois eu tive um pai exemplar, digno de ser contado nas mais belas histórias, espero honrá-lo em algum momento nas minhas escritas. Pois ele foi o melhor presente que eu poderia ter tido na vida.

Mas voltando, dentro da literatura negra “reza a lenda” que não poderíamos falar algumas contradições e muito menos matar os personagens homens negros. Como nunca prometi nada a ninguém, tenho exercido a liberdade de escrever. Os contos que você traz luz na pergunta são justamente os dois que se propõe a olharmos para dentro de nossa comunidade e repensar as posturas de algumas figuras emblemáticas dentro dos nossos quilombos, que são bons de palavras e fracos de postura. 

Esta contradição que às vezes surge nos debates literários entre lugar de fala na produção de ficção e liberdade criativa…

Em “Filha do fogo” o lugar de fala é bem marcado pelos personagens que narram a história. Mas o olhar, ainda que o narrador seja um homem, é de uma mulher negra. Enquanto escritora eu posso me permitir ser livre, ser Deusa. Perderíamos muito se as escritoras negras não pudessem escrever sobre os personagens homens, pois trabalhamos com a verossimilhança e no mundo temos que representar essa diversidade e pluralidade de vozes, construção de contra narrativas, disputar o imaginário brasileiro com personagens negros mais complexos e completos.   

Seriamos órfãos de personagens como “Davenga”, criado pela escritora Conceição Evaristo; “Rael”, criado pela escritora Miriam Alves, entre outros personagens marcantes. Como também seriamos órfãos de personagens mulheres escritas por escritores negros como “Estela”, do livro do Jeferson Tenório; “Da cabula”, do Allan da Rosa; “Mara”, do Fábio Mandingo. Sobre lugar de fala nas masculinidades negras, sou bem entusiasmada que apareçam obras como o seu livro “Eles” e um dos livros que mais gosto, que fala sobre esse lugar que é o “Manteiga de cacau”, do Sacolinha, publicado em 2012. 

No Brasil, o racismo religioso ainda é um problema que recebe pouca atenção dos governos. Como o conhecimento afro-religioso aparece no seu livro?

Este livro é uma caixinha de boas surpresas, nem tudo foi premeditado dentro da produção deste livro. Ele foi ganhando essa forma, essa força a partir da junção do texto com as ilustrações e o projeto gráfico. Algumas situações foram propositais e outras não. A escolha da ilustradora se deu por Vanessa Ferreira (Preta Ilustra) ser mulher preta, talentosa, mas também por ser de umbanda. E eu via nela a possibilidade de aparecer a espiritualidade de uma forma imagética.  Os contos em si não tratam diretamente de espiritualidade e muito menos de religiosidade, são sugestões para o leitor.

Quando você cria como subtítulo do livro “contos de amor e cura”, essa cura também passa por um encontro com o sagrado?

Está aí algo que eu não tinha pensado, curas por outra leitura que são as curas presentes na iniciação do candomblé, por exemplo. Eu sou iniciada no candomblé há quase 3 anos, sou Ekedji de Logun Yede, do Bagba Rogério Farias no Ilê Asé Ofá Omódeym. Estou em aprendizagem para as liturgias e como se comporta alguém que tem um cargo dentro do terreiro como eu tenho. Tenho o ori consagrado a Sangô e Oyá, sou filha do fogo literalmente, mas dentro do livro quis honrar essa nova fase. No entanto, quem procurar o candomblé e a umbanda dentro do livro só encontrará sutilezas, segredos soprados nos ouvidos de quem conhece.  

Meu encontro com o candomblé é bem recente, mas sinto que é um reencontro. Me sinto mais inteira seguindo a religião dos meus ancestrais, mas penso que esse foi um caminho para mim.  Pode não ser para outras pessoas. Para mim dá certo e estou feliz por ser candomblecista e ter me reconectado com esse sagrado e suas liturgias. Mas penso que cada pessoa negra tem seus próprios desafios na vida. Eu sou uma pessoa que busca espiritualidade, sou bem espiritualista neste sentido.

Sarau das Pretas. Foto: divulgação

Em 2012 você fundou uma editora como uma das ações do coletivo Mjiba.  Como vem sendo a trajetória do coletivo? E a experiência como editora? Você acha que o cenário para a autoria negra vem se modificando?

 A editora surgiu de uma necessidade de se autopublicar autoras negras que não encontram outros caminhos para lançar seus livros. Publicamos por meio de financiamento público através de um edital da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo. De 2012 para 2020 muitas coisas mudaram. Estamos com quatro livros dentro do nosso catálogo, só o “Filha do fogo” é financiamento da própria autora, que no caso sou eu. Tem surgido muitas propostas para que possamos editar outras autoras, estou estudando estratégias e ferramentas para tornar isso possível. 

O cenário é muito favorável, mas precisamos dentro do coletivo expandir as nossas fronteiras e o que mais pega são nossas tiragens e a distribuição. Estamos em pouquíssimos lugares com nossos pares e buscamos mais leitores para nossos trabalhos. As estratégias coletivas têm sido ao longo da história da população negra a mais eficiente, precisamos fortalecer o coletivo, mas precisamos cuidar do trabalho autoral. Eu, enquanto autora e editora, preciso encontrar esse equilíbrio, cuidar das duas vertentes. 

Enquanto autora negra eu sou a última a ser lembrada e a primeira a ser esquecida. Temos tido várias mortes em vida e precisamos referenciar, ler e compartilhar produções das nossas autoras negras brasileiras, precisamos parar de referenciar as nossas escritoras negras quando elas já não estão entre nós, precisamos dar “Flores em vida”. Enquanto coletivo temos zelado por uma página no Instagram chamada “Literatura negra Feminina” no qual já divulgamos mais de duzentas escritoras famosas e iniciantes. Todas juntas com o mesmo grau de importância, brasileiras e não-brasileiras, autoras da diáspora e africanas de muitos países.


Literatura, amor e cura.

Lançado em 2020, pela Mjiba, “Filha do fogo: 12 contos de amor e cura” traz uma diversidade temática muito interessante, orbitando nas experiências humanas expressadas em seus personagens. “Quando tinha dois anos, conheci a mandinga praticada pela minha vó”, de “Filha do fogo”, “Apesar de vozinha não gostar, a devoção de meu pedido ao meu avô foi tão forte que”, de “A primeira vez que fui ao céu”, “Dona Dudu era uma das moradoras mais antigas do bairro”, de “Dona da cumbuca”, “Os provérbios que minha vó ficava o tempo todo repetindo”, de “Muita trovoada é sinal de pouca chuva”.

A presença marcante dos mais velhos em “Filha do fogo” e sua importância para ensinar, alegrar, curar é bem destacada, sugerindo que a ancestralidade é um dos pilares de sustentação da literatura de Elizandra. Se a literatura brasileira que encontrou mais espaço de publicação, estudos e circulação se ancora em um tipo de tradição, ouso elaborar que a literatura de Elizandra Souza se funda em uma noção de ancestralidade, em que se mesclam, entre outros elementos, a história oral africana e afro-brasileira, o senso de pertencimento étnico, a consciência de raça e classe e gênero, o conhecimento afro-religioso e as elaborações contemporâneas para se pensar a autoria negra, legado da Geração Cadernos Negros, e, mais especificamente, dos pensamentos do escritor Cuti (Luís Silva), ao formular o conceito de literatura negro-brasileira e da escritora Conceição Evaristo, na elaboração do conceito de Escrevivência.

É uma literatura que dialoga em subsentido com a literatura de Maria Firmina dos Reis, Luís Gama, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Miriam Alves, Cristiane Sobral, e deste chão, que é fragmentado, sem transmissão estreita de influências, mas que é fortificado sempre que posto em diálogo com um porvir literário, deste chão que as narrativas de Elizandra Souza promovem sua guinada autoral.

Uma autoria nitidamente identificável como um projeto único, na estruturação dos enredos, na forma como faz uso de provérbios, na tematização dos afetos e do respeito em relação aos idosos e aos saberes populares, na constituição de uma narradora negra que respeita seus personagens, permitindo que eles sejam o que são, sem interferências/julgamentos que costumam poluir muitos textos, equivocadamente nomeados como literatura.

Por tentar ler o “livro dentro do livro”, talvez, tudo que tenha apresentado até então fale pouco sobre o que “Filha do fogo” é em sua superfície, e isso se dá em razão de que as duas características mais marcantes da obra são a sutileza e a liberdade.  Neste sentido, os doze contos de amor e cura também podem ser lidos como competentes narrativas, apresentado histórias de mulheres e homens negros que, com algumas exceções, transitam em espaços urbanos da contemporaneidade. 

A cantora de música negra, a empreendedora no ramo de calcinhas, a digital influencer, o militante do movimento negro, a estudante de uma escola pública são personagens que representam pessoas que poderiam passar por nós em uma rua agitada de São Paulo. No entanto, por dentro do texto, Elizandra costura os grandes temas, e pode dentro dele, exercitar sua liberdade como autora.

As ilustrações de Vanessa Ferreira são de uma beleza ímpar, a que antecede o conto disritmia é de uma mulher negra “de braços erguidos em direção ao céu, o corpo num giro desfocava o ambiente.Os pés pareciam suspensos no ar”. Gosto de pensar que neste movimento de suspensão e mirada livre e alegre para o mundo, descrito para a personagem Zaji “feito um incenso de jasmim”, “fazendo presente no seu espaço”, que Elizandra Souza compôs seu livro-contribuição de cura para leitores afetados pelo mal das violências contra a população negra e pelo desamor ampliado pelas novas formas de estar na vida e em relação com o outro.

Uma contribuição que se efetiva ao escrever literatura com os enfrentamentos inarredáveis e ao enriquecer o universo da literatura negro-brasileira enunciando cura e amor.

Título: Filha do Fogo – 12 Contos de Amor e Cura
Autora: Elizandra Souza
Ilustradora: Vanessa Ferreira
Participações: Silvana Martins (Projeto Gráfico), Luciana Sacramento Moreno Gonçalves (Revisora).
Editora: Mjiba – Comunicação, Produção e Literatura Negra
Páginas: 96
Dimensões: 14×21 cm.
ISBN: 978-65-81671-00-6
Edição: 1
Ano: 2020

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