“Jazz” é um texto difícil, com diversidade de notas e nuances. Assim como melodia, muda de tom, sobe e desce acordes e te embala em uma forte alternância de emoções que é quase impossível de descrever.

Violet é uma mulher incomum. Ou talvez mais comum do que imaginamos.

Ela vai ao velório da amante do marido tentar esfaquear a “cara” morta da moça. Sim, morta. Esfaquear uma pessoa morta, deformar o rosto de uma pessoa que está no caixão: assim começa o livro. Por qual motivo? Isso não aparece nas primeiras páginas.

A jovem mulher, Dorcas, parece ter sido morta pelo seu amante, o marido de Violet. Violet tenta castigar o marido arrumando um amante e o levando para casa, o que passa imperceptível pelo luto do traidor a quem deseja enciumar. 

Entre causar ciúmes e superar a traição, seu grande plano é se apaixonar novamente pelo marido, o que se mostra um plano bem ineficiente, na medida que ela consegue no máximo “lavar os lenços dele e colocar comida na mesa”. Isso “acabou com ela de vez, ao invés de dar-lhe algum apoio” (p.18)

Apesar desse início, a história nada tem de clichê, a não ser talvez, o ciúme como ponto de partida da história. Mas não é uma história sobre ciúmes e sim sobre mulheres complexas. 

“Jazz” foi publicado por Toni Morrison um ano antes de ganhar o prêmio nobel de literatura em 1993, sendo então a primeira mulher negra a recebê-lo. O prêmio existe desde 1901.

Toni Morrison “que em seus romances, caracterizados por uma força visionária e importância poética, traz à tona um aspecto essencial da realidade norte-Americana”, de acordo com o site do prêmio, ganhou aos 62 anos o reconhecimento internacional porque sabia bem o que queria contar e como fazer isso de maneira envolvente. 

Nascida Chloe Anthony Wofford, optou pelo apelido de família Toni e o sobrenome do ex-marido para compor seu nome artístico. Toni Morrison morreu em agosto de 2019, aos 88 anos.

Jazz é um livro de profundidade. Se mergulharmos nas suas águas-letras, corremos o risco de afogar. É necessário um certo distanciamento, uma contemplação mais fugidia. Talvez isso não faça o menor sentido para você e, para tentar explicar, recorro à própria autora, através do prefácio:

“É um jazz. Uma profusão de sons e nuances, altos e baixos. Tons. Daqueles que se estivermos perto demais da caixa de som, ouvimos mais a vibração que a música.”

Senti a necessidade de conversar a respeito, mas encontrei poucas pessoas no meu círculo social que encararam essa leitura complexa. Eu mesma, levei quase um ano para lê-lo. 

Tenho a impressão de que é um livro que, se você ler com muita minúcia, palavra a palavra, frase a frase, perde não só uma parte da compreensão, como um pouco da mágica do livro. Como se ao invés de ouvir a melodia, tentássemos identificar cada acorde. Em outras palavras, sinto que esse é um livro para se deixar embalar, como o próprio ritmo de jazz, e se permitir flutuar pelas palavras. 

Confesso que, para quem tem hábitos ocidentais de leitura como eu, às vezes foi incômodo e me senti um pouco “burra”, lenta. Mas, como venho aprendendo que essas ideias não são minhas, segui na leitura e fui me encantando cada vez mais. 

Entre angústias cotidianas e as crises de um vazio existencial, Violet percorre a cidade, as memórias e os caminhos, tentando se conhecer e conhecer a outra, a quem seu marido dedicou tanto tempo e afeto e a quem ela, agora, também dedica tempo e talvez algum tipo de estranho afeto. 

No livro, as memórias se misturam, também, com especulações da narradora, que ora é amiga e compreende Violet, ora é também voz de uma sociedade preconceituosa e julgadora. As imagens poéticas do cotidiano reaparecem, em outros momentos, ilustrando ou justificando toda uma existência.

Os lenços da página 18, mencionados anteriormente nesse texto, retornam na 118:

“Eu diria que Violet lavava e passava aqueles lenços porque, louca como era, esfarrapada como se tornou, ela não suportava roupa suja. Mas todo mundo se cansou de esperar para ver o que mais Violet ia fazer além de tentar matar uma moça morta e manter o marido com lenços limpos. Minha opinião era que um dia ela empilharia aqueles lenços, guardaria todos na gaveta de uma cômoda, bem arrumados, e depois iria acender um fósforo no cabelo dele. Ela não fez isso, mas talvez tivesse sido melhor do que aquilo que tentou fazer.”

Toni Morrison é afiada nas críticas, seja ironicamente, no modo da narradora e da sociedade criticarem Violet, seja na misoginia expressa dos personagens masculinos, ou mesmo especulativamente, quando busca razões para os acontecimentos que parecem não ser explicados por si só, durante a trama.

Ao nos contar que o marido de Violet é vendedor, nos detalha traços de sua personalidade misógina que compactua com outros homens mais do que confraterniza com as mulheres:

“Pouquíssima coisa em sua maleta de Cleópatra os homens iriam querer comprar –  a não ser talco pós barba, a maior parte das coisas é para mulheres. Mulheres com quem ele consegue conversar, flertar, e sabe-se lá o quê mais ele tem na cabeça. E mesmo que ela lhe dê bola com o olhar, os olhos vigilantes dos bacanas são mais satisfatórios que os dela.”

E ironiza, desvelando um retrato inegável de homens de meia idade:

“Ou então ele sente pena de si mesmo por ter sido fiel um dia. E se essa virtude não é considerada e ninguém dá pulos para lhe dar os parabéns por ela, sua autopiedade vira ressentimento que ele tem dificuldade para entender, mas nenhuma dificuldade para dirigir aos gostosões, radiantes e brutais, parados nas esquinas. Cuidado. Cuidado com um homem fiel beirando os cinquenta anos. Porque ele nunca mexeu com outra mulher; porque escolheu uma mocinha nova para amar, ele pensa que é livre.”

As mulheres são a melhor parte do livro: complexas, elaboradas, estranhas, “loucas” – à primeira vista. Ingênuas, estúpidas, inteligentes, sábias. Invejosas, bem resolvidas. Uma variedade de figuras marcantes e complexas, que giram em torno de Violet e Dorcas, fazendo com que as compreendamos. A melhor coisa que aprendi com Violet foi a inventar o mundo e jamais esquecer de mim.

Eu ri, mas antes que pudesse concordar com as cabeleireiras que ela era louca, ela disse: 

Para que serve o mundo se a gente não pode inventar ele do jeito que quiser?

Do jeito que eu quiser?

É. Do jeito que você quiser. Você não quer que o mundo seja alguma coisa mais do que ele é?’

Para quê? Não dá para mudar o mundo.

Por isso mesmo. Se você não inventa o mundo, ele muda você e o azar é seu se você deixa. Eu deixei. E estraguei a minha vida.

Estragou como?

Esqueci.

Esqueceu?

Esqueci que era minha. Minha vida. Fiquei correndo pela rua para cima e para baixo querendo ser outra pessoa.

Toni Morrison é um suave tapa na cara em ritmo de jazz.

Título: Jazz

Autora: Toni Morrison

Editora: Companhia de Bolso

Ano: 2009

Páginas: 216

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