No dia 15 de março (o que parece não ter se repetido no dia 12 de abril) desse ano, alguns seguimentos reacionários da sociedade brasileira, bem como grupos desavisados saíram às ruas clamando pela ditadura militar. O episódio talvez sirva para demonstrar que o perigo de ascensão tirânica não está descartado no Brasil, o que deve trazer reflexos diretos na cultura e na educação.

Conforme demonstra a história recente de nosso país, livros, autores e editoras estiveram na mira da censura. Duas obras especialmente comprovam esta informação: “Livros contra ditadura: Editoras de oposição no Brasil, 1974 – 1984” (Publisher Brasil, 2013), do historiador Flamarion Maués e “Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar” (Edusp/Fapesp, 2011), de Sandra Reimão, que é doutora em Comunicação e Semiótica e Livre-docência da Universidade de São Paulo (USP).

Faixa contra Paulo Freire

Na manifestação do dia 15 de março uma faixa chamou a atenção: “Chega de doutrina marxista. Basta de Paulo Freire” dizia.

O segundo, por exemplo, destaca a censura explícita e direta do Estado executada pelo Ministério da Justiça através do Departamento de Censura e Diversões Públicas, DCDP, órgão encarregado da censura às diversões públicas. Nele, a autora traça um panorama histórico da atuação censória dos Governos Militares em relação à cultura e às artes e em relação aos livros.

“A partir do quadro geral traçado nesse trabalho mais panorâmico, nos detivemos em analisar alguns casos de vetos censórios a textos de ficção de autores brasileiros. O estudo desses atos censórios nos possibilita buscar resgatar alguns traços daquele período histórico e, especialmente, nos possibilita buscar delinear alguns elementos dos mecanismos de censura e da repercussão desta censura no universo da produção da cultura”, destacou Reimão em entrevista à Revista Biblioo no ano passado.

Em “Livros contra ditadura”, por sua vez, Maués identifica 40 editoras de oposição no período, consideradas aí tanto as mais explícitas, com obras críticas à situação do país, como outras que ajudaram a colocar nas listas de mais vendidos, até o começo dos anos 1980, autores como Marx e Lênin.

“A maior parte dessas editoras eram pequenas, que normalmente tinham problemas econômicos. Muitas vezes, vendiam poucos livros publicados, e tinham problemas para distribuir os livros. Eventualmente, elas tinham que atuar de maneira semiclandestina, enfrentando mais dificuldades que uma editora grande já enfrenta. Na maioria dos casos, era uma vida econômica muito conturbada, que dependia de um livro que fazia mais sucesso, e também dependia da solidariedade de certos grupos que tinham simpatia com a editora e com o trabalho que ela fazia e procurava dar algum tipo de apoio”, disse Maués em entrevista a Revista Fórum.

O autor explica que na impossibilidade de editar e fiscalizar todos os livros que eram lançados, a censura de livros ficava na dependência de denúncias: “uma pessoa portava um livro ‘perigoso’, e então uma carta era enviada para reportar à censura e pedir providências. Isso é documentado. Muitas cartas enviadas solicitando uma atitude à censura”.

Impactos na educação

Na seara da educação, a ditadura militar foi ainda mais contundente em suas perseguições, plantando espiões em salas de aula, prendendo, torturando e matando estudantes e professores que se “atreviam” a desafiar o regime.

A invasão policial da Universidade de Brasília (UnB) em 29 de agosto de 1968, por exemplo, se tornou um dos capítulos mais tristes e marcantes da história da instituição. Especula-se que ele teria sido determinante ao pretexto esperado pelos militares para a edição do Ato Institucional n° 5, responsável por endurecer a ditadura e dar início aos anos de chumbo.

Na ocasião, o então professor da UnB, Briquet de Lemos, dava aula quando os militares irromperam o campus dando início a uma série de violências. O episódio foi narrado por ele no documentário Rock Brasília de Wladimir Carvalho:

“Eu estava no prédio da biblioteca central, que era onde funcionava o departamento, quer dizer, a nossa faculdade, e ouço atropelos, correrias subindo as escadas, gritos etc. Pergunto: ‘que é isso?’ ‘É a polícia!’. Ouço tiros e mesmo sem saber o que fazer eu tinha que ficar ali, inclusive a biblioteca estava cheia de alunos estudando. Fui até o porão e lá já estava à polícia, pediram identificação aos estudantes, mas eu lembro que os policiais estavam tentando invadir e quebrar a sala onde funcionava o Centro Acadêmico da faculdade. Eles estavam dando pontapés nas portas porque não tinham chaves. Eu cheguei para eles e disse: isso aqui é um bem público, o senhor não pode quebrar essa porta, vamos procurar a chave. Era um molho de chaves do tamanho de um bode e não achava a chave. O policial já meio com raiva disse uns palavrões e foi embora. Felizmente ele foi embora. Dentro da sala não tinha nada demais, mas tinha latas de tintas, tinha pincel que o pessoal usava para fazer pichação. E os meus filhos estavam em casa neste momento. Eles viram a polícia porque estavam na janela de casa. Morávamos no bloco A no último andar e tinha um janelão e eles viam os estudantes correndo pelo mato”.  

Vão se os dias e eu fico

“Vão-se os dias e eu fico”, Edson Nery da Fonseca. Foto: divulgação

A mesma universidade já havia sido invadida quatro anos antes em função da instauração do Golpe. No livro “Vão-se os dias e eu fico” (Atelie editorial, 2009), o bibliotecário e professor por muitos anos da UnB, Edson Nery da Fonseca, relatou o fato desta maneira:

“Com o golpe militar de 1964, o campus universitário foi invadido pela Polícia Militar de Minas Gerais, que prendeu professores e alunos e retirou da Biblioteca Central livros considerados subversivos. O comandante do Batalhão da Guarda Presidencial passou a mandar na UnB. Era tão neuroticamente anticomunista que interpretava o logotipo da universidade – desenhado por Aloísio Magalhães com base no traço inicial de Lúcio Costa para o Plano Piloto de Brasília – como esboço da foice e do martelo da Internacional Comunista”.

Outra instituição invadida pelos militares foi a Faculdade de Medicina da Universidade da Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), num episódio que ficou conhecido como “Massacre na Praia Vermelha” (em referência à localização do prédio). O ano era 1966 e a imagem ficaria eternizada pelas lentes de uma máquina fotográfica.

Página desbotada na memória

Sandra Reimão acredita que os 21 anos de ditadura militar deixaram muitas sequelas na sociedade brasileira: “uma delas é o não enraizamento dos valores democráticos como sendo essenciais, como sendo valores inegociáveis”.  Segundo ela, “é preciso estar atento e vigilante para perceber e coibir atitudes cerceadoras da liberdade de expressão e de opinião como essa que defende a necessidade de autorização do biografado ou de seus familiares para publicação de biografias”.

A ditadura civil-militar no Brasil iniciada em 1964 teve o seu declínio consolidado em 1985. Mesmo sendo um passado recente da nossa história, este episódio parece estar desconhecido e desbotado na mente de parcela das novas gerações. Essa alienação ficou muito demarcada nas últimas manifestações em que parte de jovens brasileiros clamavam em brados inconsequentes e cartazes estapafúrdios pedindo o impeachment da presidenta Dilma e o retorno do regime militar.

Dentre a coleção de faixas que ilustraram uma parte dos protestos, uma chamou a atenção pelo seu teor: “Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire”.

Invasão da Faculdade de Medicina UFRJ

Invasão da Faculdade de Medicina da UFRJ em 1966. Foto: acervo do Arquivo Nacional

Há de se ressaltar, para quem não sabe, o pensamento do pernambucano Paulo Reglus Neves Freire. Ele foi um educador e filósofo brasileiro com grande influência na área da Educação, não só do Brasil, mas também em outros países. Foi preso durante o período ditatorial e teve algumas de suas publicações censuradas. Conhecido por sua pedagogia da libertação, relacionada com a visão marxista, ele é considerado através da Lei nº 12.612 de 13 de abril de 2012, o Patrono da Educação Brasileira.

Desconsiderar a importância do legado da obra de Paulo Freire e dispensar os seus ensinamentos é um exemplo de total falta de conhecimento e respeito com um dos grandes pensadores brasileiros do século XX.

Mesmo com algumas dificuldades que o Brasil enfrenta, mesmo com novos escândalos de corrupção à tona, nossa “certa” democracia precisa se fortalecer para que um mínimo de liberdade seja possível.

Em entrevista ao programa Fantástico no dia 12 de abril de 2015, Marcus Vinícius Coelho, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, se colocou contra o autoritarismo e destacou a importância da democracia para o nosso país: “Para os males da democracia só há um remédio: mais democracia, mais liberdade. Queremos o Brasil próspero, o Brasil de todos os brasileiros, não apenas de alguns que ocupam o poder em uma ditadura. Nunca mais a voz única do autoritarismo”.

Para aqueles que clamam por impeachment, há de se ressaltar que as eleições no Brasil não têm terceiro turno e não devem ser encaradas como futebol, onde basta trocar o técnico que os problemas são resolvidos. Já para os que defendem o retorno ao autoritarismo, cabe destacar que retornar a uma página infeliz da nossa história – um tempo em que as ideias eram tolhidas e o obscuro reinava – é um retrocesso inegável. Vida longa a democracia!

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