Muito tem sido escrito sobre a performance “La Bête”, de Wagner Schwartz, na abertura da 37ª edição do Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), com curadoria de Luiz Camillo Osório. Vários colegas falaram coisas muito importantes e de modo articulado. Não pretendo ter visão original do caso, nem possuo a competência específica de alguns deles para pontuar muitas das questões de fundo que percorrem esse assunto. Apenas edito aqui alguns comentários que fiz em outras páginas.

Escrevo, em particular, como resposta ao incômodo que me causa pessoas situadas no espectro da esquerda (sem querer agora problematizar também o termo…) identificarem o trabalho apresentado no MAM como ato passível de criminalização, valendo-se, para tanto, de argumentos muito próximos dos usados por movimentos fundamentalistas de direita (idem), ainda que sem as intenções destes.

Incômodo ainda maior quando querem explicitamente identificar o campo da arte contemporânea com um espaço alienado e elitista que, pouco preocupado com o ambiente social mais amplo, estaria arrogante e irresponsavelmente criando situações polêmicas proveitosas para os ataques que a direita mais tosca tem promovido contra toda forma livre de pensar e agir.

Um dos principais problemas dessas acusações, e ao mesmo tempo algo que as alicerça, é a redução da performance a uma suposta imagem-síntese – uma criança instada a tocar um homem estranho e nu –, permitindo-se, a partir daí, a fazer todo tipo de ilações sobre as intenções do artista. Mais ainda: sobre a suposta irresponsabilidade do artista em promover uma situação que claramente atiçaria a ira dos fundamentalistas.

Além de redutoras, essas são acusações que, para começar, derivam de uma cena que não corresponde aos fatos ocorridos no Museu, sendo antes uma versão sem contexto e deturpada que foi difundida em rede por quem já estabeleceu um veredicto de culpa para quem faz arte. E não se compra tal versão sem que, com ela, venham também suas implicações mais amplas.

Não se pode atribuir à performance, muito menos à arte em geral, aquilo que lhe está sendo imputada sem uma análise e discussão séria e informada sobre o que se passou no local. A relação declarada da performance com a obra de Lygia Clark – totalmente razoável para quem conhece o trabalho da artista mineira – pode até ser questionada, mas para isso seria preciso pelo menos tentar confrontar seriamente o trabalho em seus termos.

Seria preciso tentar entender a que ele se propunha, tal como se busca entender o que oferecem um filme, uma canção ou um livro antes de emitir-se um juízo firme sobre algum deles. E não simplesmente atribuir-lhe aquilo que se pode ou se quer projetar nele, com maior ou menor consciência dessa projeção feita.

Mais: não foi o artista, nem o curador e nem o MAM que expuseram a imagem da criança em uma situação supostamente libidinosa (acusação que, sem mediação e comprovação alguma, iguala nudez a sexo de modo raso e mecânico). Foram os militantes do MBL que o fizeram em suas redes, com grande estardalhaço, em contradição com o que dizem ser seu zelo. E ao contrário do que afirmam as grosseiras descrições do trabalho difundidas nessas páginas ligadas ao movimento (e replicadas acriticamente inclusive por pessoas que se opõem a ele), a performance não demandava a interação com crianças. Não obrigava interação com ninguém.

A interação existia como possibilidade, como aposta. Não se trata de algo pertencente ao campo do espetaculoso ou do resultado já certo. Sem falar que o Museu cumpriu com sua obrigação legal de informar, através de sinalização padronizada, a natureza do que ocorreria ali aos presentes. E nem é tampouco o caso de julgar (e imediatamente condenar, como sempre acontece neste tribunal sem recurso que são as redes sociais) a mãe que acompanhou e amparou sua filha na participação da performance, em que ela toca o pé e a mão do artista, posto que isso já implicaria, por si só, o reconhecimento de que ocorreu algo errado ali.

Não há qualquer pauta oculta do artista, ao contrário do que brandem alguns e insinuam outros. O trabalho é o que é, e basta nos dispormos a gastarmos alguns minutos na busca de entendermos suas premissas para que isso fique claro. Custa um pouco de tempo, mas é preciso encarar esse esforço antes de atribuirmos ao outro intenções tão graves não declaradas. E dizer isso não significa dizer que somente os profissionais da crítica ou da história da arte estariam aptos a comentar o trabalho. De modo algum.

Travesti da lambada e deusa das águas’, de Bia Leite, 2013. Obra que estava em exposição na mostra “Queermuseu” em Porto Alegre. Imagem: divulgação

A questão não é ter ou não ter conhecimento para julgar a performance. Conhecimento pode ser adquirido por qualquer um, e nesse caso as informações estão dadas e abertas para quem se dispuser a querer fazer um juízo informado sobre as intenções do artista e as condições que foram propostas para a realização do trabalho. O problema é justamente que isso não está mais em jogo; ou melhor, nunca esteve.

Quem põe em risco a integridade da criança não é o artista, nem o curador, nem o Museu. Não estamos “reféns” da arte e de sua “pauta”. Antes fosse esse o caso. Não é. O que os líderes dos movimentos fundamentalistas de direita estão tentando fazer, com cínica competência e auxiliados por seguidores orgulhosos de sua ignorância e força bruta, é combater um dos poucos espaços de sociabilidade crítica no mundo de hoje – a criação e a fruição artísticas –, atribuindo-lhe intenções estranhas a ele.

Estão empenhados em reinventar uma polêmica pré-moderna para interditar uma das únicas arenas de promoção do dissenso que restam no país. Em retirar da arte a sua potência de desobedecer normas e de reinventar o que se pensava ser já sabido, confinando-a em um espaço apaziguado e inócuo.

Também à esquerda, disparos são feitos, a meu ver, em direção a alvos errados. Desqualificar o trabalho como “medíocre” ou por ter passado dos “limites” que garantem a proteção às crianças sem tentar entendê-lo e discuti-lo em seus termos (eventualmente justificando o porquê desse juízo negativo) é simples ato de descarte do pensamento crítico. É um pré-julgamento que busca colocar a performance (e qualquer outra produção artística que porventura se refira a assuntos que possam ser apropriados e deturpados pela direita em seu proveito) na vala comum dos inocentes úteis ou alienados.

Não é possível analisar a suposta infração cometida pelo artista, pelo Museu ou pela mãe da criança (individualmente ou de forma conjunta) dissociada da compreensão do que de fato se passou ali, em toda sua complexidade, indo além da equação que diz que homem nu diante de criança é abuso, deixando tudo o mais de lado. Descontextualizando o fato.

Não acho razoável pautar o que deveria ou não deveria ser objeto da criação artística em função de um suposto cálculo político sobre como a direita irá se apropriar e tirar vantagens do assunto. Levado ao limite, esse raciocínio conduziria à interdição de qualquer confronto a partir do campo da arte, à impossibilidade de enunciar e promover o dissenso em questões centrais às nossas vidas.

Seria colocar a arte no lugar que a direita deseja que ela esteja: no lugar da confirmação do que já se conhece, do que é já domesticado. Espanta-me cada vez mais a incapacidade que temos (e falo aqui desse genérico e diverso “nós” identificados com um difuso desejo de mudança do que aí está em direção a um mundo mais inclusivo e justo) de identificar e escolher bem nossos inimigos e, por consequência, também nossos aliados, mesmo que eventuais e pontualmente.

Enquanto tudo isso ocorre, a nudez, parafraseando o escritor, já está sendo publicamente castigada. Mas não nas ruas e lares onde ocorrem inúmeros abusos diários a crianças, e sim nos museus e centros culturais que, ao contrário, desafiam e desmontam a cultura que controla e criminaliza o corpo. E logo, se a reação não for coletiva e enérgica, em estantes de livrarias, salas de cinema, palcos de teatro e salas de aula.

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