França, dezembro de 1537. O rei Francisco I determina que editores e livreiros, antes de vender ou expor seus livros, encaminhem, gratuitamente, um exemplar da obra para ser incorporada à sua biblioteca.[1] O depósito poderia ser realizado no próprio Castelo de Blois, onde a biblioteca funcionava sob a direção do padre e poeta Melin de Saint-Gelais, ou em universidades e outros postos instalados nas cidades do reino. Com a medida, ao mesmo tempo que o monarca disseminava as obras consideradas “dignas de ser vistas”[2], impedia que tantas outras, particularmente as protestantes, alcançassem os leitores.[3]
Brasil, maio de 2018. A Câmara dos Deputados envia um requerimento de informação ao Ministro da Cultura.[4] O titular da pasta será obrigado a se explicar, sob pena de crime de responsabilidade, por quais razões a chamada “Lei do Depósito Legal” não foi regulamentada no país após quase quinze anos em vigor, embaraçando a incorporação de publicações a chamada Coleção Memória Nacional.
Embora separados por mais de quatro séculos, estes dois acontecimentos gravitam em torno de um mesmo assunto, tema este que tem sido um dos mais controversos no universo dos livros e das bibliotecas. Trata-se, em linhas gerais, do desafio de se estabelecer mecânicas suficientemente claras, seguras e contínuas, capazes de garantir o recebimento, o tratamento e a posterior disseminação do patrimônio bibliográfico de um país.
A estratégia mais recorrente adotada pelos Estados Nacionais para garantir a preservação e a publicização de sua produção bibliográfica tem se dado no campo normativo. Ao abandonar o terreno da volição, essa prática, assumida enquanto dever legal, tenderia a se efetivar, garantindo completude da coleção bibliográfica nacional:
“O depósito legal é uma obrigação estabelecida por lei, segundo a qual qualquer entidade, seja comercial ou pública, que produza qualquer tipo de documentação em várias cópias deve depositar uma ou mais cópias em uma instituição nacional reconhecida.”[5]
O fato é que a normatização, basilar para a preservação de parte significativa do patrimônio cultural de um país, não garante o seu cumprimento. O próprio Francisco I assistiu a um aumento significativo da contrafação após a publicação de sua Ordonnance de Montpellier.[6] De fato, apesar da previsão legal do confisco de obras e de multas pesadas para quem não cumprisse sua ordem, a publicação de edições piratas avultou no curso de seu reinado.
No Brasil, a situação atual não é menos grave: embora uma lei ordinária trate, exclusivamente, desse objeto,[7] a mesma nunca foi regulamentada, o que, além de manifestar flagrante desobediência ao prazo determinado pelo legislador – no corpo do próprio ato normativo, se determina que a lei se efetive em 90 dias após a sua promulgação –, impede a aplicação de multa aos infratores.
A flagrante omissão envolvendo o Poder Público quanto ao cumprimento da Lei nº 10.994/2004 fragiliza, sobremaneira, a chamada bibliografia nacional. A relação subordinativa da “bibliografia nacional” com o “depósito legal” é ressaltada pelo próprio legislador (art. 1º, Lei nº 10.994/2004):
“Esta Lei regulamenta o depósito legal de publicações, na Biblioteca Nacional, objetivando assegurar o registro e a guarda da produção intelectual nacional, além de possibilitar o controle, a elaboração e a divulgação da bibliografia brasileira corrente, bem como a defesa e a preservação da língua e cultura nacionais.”
Portanto, sem o cumprimento efetivo do depósito legal, não se pode tratar da produção da bibliografia nacional. De fato, o objetivo de uma bibliografia nacional é “[…] garantir o controle bibliográfico de uma coleção de depósito completa.”[8] Ora, se a Lei nº 10.994/2004 nunca foi regulamentada, supõe-se que o depósito legal esteja longe de ser cumprido, fazendo com que uma parcela significativa de obras bibliográficas no país não seja incorporada à Coleção Memória Nacional. Afinal de contas, a efetivação da norma civil se dá, fundamentalmente, pela possibilidade de aplicação da sanção. Mas, o que vem a ser o chamado depósito legal?
O depósito legal é, fundamentalmente, uma obrigação firmada por meio de ato normativo, destinada a garantir que as publicações do país sejam conservadas e disseminadas. Em termos mais específicos, trata-se de “exigência imposta pela lei, de depositar em uma ou várias agências específicas, exemplares das publicações de todo tipo, reproduzidas em qualquer suporte, por qualquer procedimento, para distribuição, aluguel ou venda.”[9] Mesmo em nações que não possuem uma legislação federal a respeito da matéria, como a Suíça, seus entes tendem a instituir normas de depósito legal, caso do Cantão de Vaud (art. 32).[10]
A Biblioteca de Alexandria, fundada em 288 a.C., parece ter sido a primeira a desenvolver um modelo de depósito legal. Por ordem do rei Ptolomeu, todos os livros encontrados nos navios que faziam escala no porto da cidade eram confiscados e, posteriormente, copiados em folhas de papiro. A cópia era entregue ao seu dono, e o original, recebendo a menção “navios”, era incorporado ao acervo da Biblioteca.[11]
De todo modo, Francisco I, rei da França, é costumeiramente apontado como o pai do depósito legal. Foi dele o protagonismo de se criar, na primeira metade do século XVI, um ato normativo destinado a coletar, preservar e, até certo ponto, disseminar, o que se era publicado em seus domínios. A ordem tinha por fim restaurar a natureza das “boas letras”, por muito tempo “coberta pelas trevas da ignorância”.[12]
Desse modo, a promulgação da chamada Ordonnance de Montpellier implicou, de certo modo, no fortalecimento do rei enquanto guardião da moral católica. Não por acaso, o monarca designa o seu próprio capelão para gerenciar, pessoalmente, todas as atividades envolvidas no depósito legal. Afim de que não pairasse dúvida de seu propósito, publicou em 17 de março do mesmo ano, uma ordem, intitulada, mais tarde, de Ordonnance du Chatelêt,[13] reiterando a punibilidade de quem ousasse imprimir ou comercializar obras sem a aprovação prévia do padre Mellin.
É evidente que a censura não tem sido a pretensão única, sequer a mais importante do depósito legal no curso dos séculos. Na verdade, enquanto medida destinada a garantir a criação de uma coleção de material produzido no país e, por meio desta, a publicação de uma bibliografia nacional, o depósito legal é um poderoso mecanismo fomentador da liberdade de expressão e, também, de acesso à informação.[14]
Os marcos fronteiriços entre o que merece ou não ser preservado em termos de publicação estão, por sua vez, subordinados ao conjunto de valores que norteiam uma nação. Na China, por exemplo, o depósito legal foi instituído por meio do “Regulamento sobre Administração de Publicações”, devendo, assim, se submeter aos seus princípios norteadores, dentre eles o respeito aos fundamentos socialistas: “A causa editorial deve aderir aos princípios de servir ao povo e a causa do socialismo, aderir ao princípio do marxismo-leninismo e do pensamento de Mao Zedong e da teoria de Deng Xiaoping (art. 3º).”[15]
A Itália, por sua vez, evoca a “memória da cultura e da vida social italiana” para justificar o depósito legal. De forma bastante peculiar, o legislador italiano define o material objeto do depósito legal a partir dos sentidos – “fruíveis mediante a leitura, a escuta e a visão, independentemente do seu processo técnico de produção, edição ou difusão” (art. 1º) –, considerando os documentos destinados aos portadores de deficiências físicas.[16]
O interesse em prospectar a memória nacional faz com que algumas nações, o que não é o caso do Brasil, extrapolem suas fronteiras, contemplando obras editadas no exterior. A Bélgica, por exemplo, estabelece o prazo de dois meses para que autores nacionais depositem, na Biblioteca Real, dois exemplares de suas obras quando publicadas fora do país (art. 2º).[17] No Peru, por sua vez, além do que for editado ou gravado em território nacional, a obrigação legal recai sobre o autor peruano “quando suas obras se distribuam, exclusivamente, no exterior” (art. 3º).[18]
O interesse em preservar e democratizar a informação tem feito com que a legislação nacional sofra alterações, contemplando o advento de novos suportes. A Espanha, por meio de um Decreto Real,[19] passou a reconhecer as publicações eletrônicas e os sites web como objetos do depósito legal, firmando, em pormenores, estratégias de captura e de tratamento dessas fontes, do mesmo modo que a Lei do Depósito Legal[20] estabelece com as publicações editadas em suportes tangíveis.
A legislação brasileira não determina que o depósito se limite exclusivamente a publicações analógicas. Mesmo assim a Fundação Biblioteca Nacional não tem coletado materiais publicados em formato eletrônico, como blogs e páginas webs. A única exceção, neste sentido, parecem ser os livros e-books, mas estes são preservados de maneira insatisfatória. Segundo Brayner,[21] esta omissão em se preservar conteúdos eletrônicos no Brasil gera um buraco negro no campo informacional que, em últimos termos, representará numa perda significativa da memória nacional.
A primeira experiência de depósito legal no Brasil se deu no período imperial.[22] As oficinas tipográficas portuguesas instaladas em solo brasileiro deveriam enviar exemplares de suas publicações para a Real Biblioteca, instalada em 1810, na cidade do Rio de Janeiro. Contudo, somente doze anos mais tarde aparece o primeiro ato normativo tratando do depósito legal do agora Império do Brasil.
Por meio de um aviso, datado de 12 de novembro de 1822, José Bonifácio de Andrada e Silva, sob a ordem de D. Pedro I, determina que “[…] a Junta Directoria da Typografia Nacional, faça remetter para a Biblioteca Imperial e Publica desta Corte [antes da independência, a Real Biblioteca] hum exemplar de todas as obras, folhas periódicas, e volantes, que se imprimirem na mesma Typografia.”[23]
Atualmente, o instituto do depósito legal no país é regido por meio de duas leis ordinárias, cada uma tratando de um conjunto particular de obra. A Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004, dispõe a respeito das obras de natureza bibliográfica. O depósito das obras de natureza musical (partituras, fonogramas e videogramas musicais), por sua vez, é regido pela Lei nº 12.192, de 14 de janeiro de 2010.
A relação obrigacional imposta não gera nenhuma contraprestação por parte da Administração Pública. De fato, o cumprimento do dever imposto, a saber, o depósito da obra editada, segundo os termos firmados pela própria lei, não implica em qualquer paga por parte do Estado, na figura da Fundação Biblioteca Nacional, a depositária, ou de qualquer outra entidade.
Essa relação desnivelada se justifica pela supremacia do interesse público sobre o privado, o princípio geral do Direito e condição de sua existência.[24] No caso em questão, a obrigação cominada resulta na formação do patrimônio bibliográfico nacional que, por sua vez, é a reverberação do direito constitucional de acesso às fontes da cultura nacional (art. 215, caput, Constituição Federal/1988). Portanto, o cumprimento do depósito legal é uma questão de direito fundamental.
[1] FRANCISCO I, monarca. [Ordonnance de Montpellier]. In: PICOT, Georges. Le dépot légal et nos collections nationales. Paris: Alphonse Picard, 1883.
[2] FRANCISCO I, monarca. [Ordonnance de Montpellier]. In: PICOT, Georges. Le dépot légal et nos collections nationales. Paris: Alphonse Picard, 1883.
[3] DOUGNAC, Marie-Thérèse; GUILBAUD, Marcel. Le dépôt légal: son sens et son evolution. Bulletin des Bibliothèques de France, Paris, n. 8, août 1960.
[4] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Requerimento de Informação nº 4.832, de 2018. Requer que se solicite informações do Senhor Ministro de Estado da Cultura a respeito da Regulamentação da Lei 10.994 de 14 de dezembro de 2004. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2171452>. Acesso em: 12 abr. 2018.
[5] LARIVIÈRE, Jules. Principes directeurs pour l’elaboration d’une legislation sur le depot legal. Paris: Unesco, 2000. p. 3, tradução nossa.
[6] FRANCISCO I, monarca. [Ordonnance de Montpellier]. In: PICOT, Georges. Le dépot légal et nos collections nationales. Paris: Alphonse Picard, 1883.
[7] BRASIL. Lei nº 10.994, de 2004. Dispõe sobre o depósito legal de publicações, na Biblioteca Nacional, e dá outras providências. Disponível em: <https://bit.ly/2IvsJvH>. Acesso em: 12 abr. 2018.
[8] LARIVIÈRE, Jules. Principes directeurs pour l’elaboration d’une legislation sur le depot legal. Paris: Unesco, 2000. p. 4, tradução nossa.
[9] LUNN, Jean. Guidelines for legal deposit legislation. Paris: Unesco, 1981. p. 36, tradução nossa.
[10] VAUD (Cantão suíço). Loi sur le patrimoine mobilier et immatériel. Disponível em: <https://bit.ly/1UCuDq4>. Acesso em: 12 maio 2018.
[11] HIPÓCRATES. Libri epidemiorum Hippocratis primus, tertius, et sextus. Lugduni: Gulielmum Rouillium, 1550.
[12] FRANCISCO I, monarca. [Ordonnance de Montpellier]. In: PICOT, Georges. Le dépot légal et nos collections nationales. Paris: Alphonse Picard, 1883.
[13] FRANCISCO I, monarca. [Ordonnance du Chatêlet]. In: RENOUARD, Augustin-Charles. Traité des droits des auteurs, dans la littérature, les sciences et les beaux-arts. Paris: Chez Jules Renouard, 1838. t. 1, p. 44.
[14] LARIVIÈRE, Jules. Principes directeurs pour l’elaboration d’une legislation sur le depot legal. Paris: Unesco, 2000.
[15] CHINA. Regulations on the Administration of Publication: the State Council number 343. Disponível em: <http://www.fdi.gov.cn/1800000121_39_2227_0_7.html>. Acesso em: 10 maio 2018.
[16] ITÁLIA. Legge n. 106, 15 aprile 2004. Norme relative al deposito legale dei documenti di interesse culturale destinati all’uso pubblico. Disponível em: <http://www.librari.beniculturali.it/export/sites/dgbid/it/documenti/DepositoLegale/Legge106_2004.pdf>. Acesso em: 13 maio 2018.
[17] BÉLGICA. Loi du 8 avril 1965 instituant le Dépôt légal. Disponível em: <https://www.kbr.be/fr/loi-du-8-avril-1965-instituant-le-depot-legal>. Acesso em: 11 maio 2018.
[18] PERU. Ley n° 26905, de 19 de diciembre de 1997. Ley de Deposito Legal en la Biblioteca Nacional del Peru. Disponível em: <http://www.bnp.gob.pe/documentos/deposito_legal/ley26905.pdf>. Acesso em: 15 maio 2018.
[19] ESPANHA. Real Decreto 635/2015, de 10 de julio, por el que se regula el depósito legal de las publicaciones en línea. Boletín Oficial del Estado, Madrid, n. 177, p. 62878-62885, 25 julio 2015. Disponível em: <http://www.boe.es/diario_boe/txt.php?id=BOE-A-2015-8338>. Acesso em: 10 maio 2018.
[20] BÉLGICA. Loi du 8 avril 1965 instituant le Dépôt légal. Disponível em: <https://www.kbr.be/fr/loi-du-8-avril-1965-instituant-le-depot-legal>. Acesso em: 11 maio 2018.
[21] BRAYNER, Aquiles Alencar. O século XXI será o buraco negro da informação. O Globo, Rio de Janeiro, 26 dez. 2015. Disponível em: <http://oglobodigital.oglobo.globo.com/epaper/viewer.aspx>. Acesso em: 13 maio 2018.
[22] MARROCOS, Luís Joaquim dos Santos. Cartas do Rio de Janeiro: 1888-1821. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2008.
[23] BRASIL. Secretaria de Estado dos Negócios do Império. [Aviso, 12 de novembro de 1822]. Cópia mss. In: AVISOS. Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1822 – 30 de dezembro de 1833 (Loc.: MSS, 70, 04, 009).
[24] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.