O pensamento de K. Marx será sempre muito significativo num quadro histórico que apresente, em quaisquer partes do mundo, as seguintes características, a saber: as condições materiais de exploração do trabalho do homem, que o transforma numa mercadoria reificada (coisificada), por isso mesmo alienada; o aviltamento da dignidade da vida humana que é facilmente trocada pelo fetiche da mercadoria; os fenômenos de concentração econômica das riquezas e a sua consequente desigualdade social discrepante que cresce de maneira exponencial a cada década que passa.
Defende-se a igualdade de direitos, mas nega-se a igualdade de condições; têm-se governos, legitimamente eleitos pela maioria da população, golpeados, não mais por militares, mas pelos parlamentos e pelos judiciários nacionais e ou boicotados sistematicamente pelos interesses do capital financeiro global, pelas grandes corporações internacionais, numa verdadeira e deliberada guerra mesmo contra as limitadas democracias liberais capitalistas que conseguem se instalar, principalmente quando estas guindam ao poder – candidatos que mesmo após conseguirem vencer todo o cerco do aparato jurídico, midiático e econômico em processos eleitorais viciados – representantes das classes trabalhadoras dispostos a defender os interesses destas a qualquer custo.
Pelo menos é o que se tem apresentado até agora, em nossos dias, nesses dois centenários de desenvolvimento do pensamento marxiano e, neste ponto, não constituiria uma exceção o caso específico da América do Sul. Aqui, muito pelo contrário, tais características estão amplamente contempladas, ainda que – transcorridos 200 anos desde o nascimento do autor desta corrente de pensamento, o “Mouro”, – o capitalismo tenha se metamorfoseado; seja por conta do desenvolvimento endógeno extremo das suas forças produtivas, do denominado capitalismo selvagem.
Aliás, como já fora previsto pelo próprio Karl Marx, seja por conta também das transformações exógenas ao próprio sistema capitalista, no caso, sua humanização forçada devido aos avanços sociais promovidos pelas sucessivas vitórias do socialismo revolucionário, no século XX, a começar pela Revolução Russa, a Chinesa e a Cubana para citarmos apenas as três mais importantes e impactantes, em várias partes do mundo e, em particular, na nossa realidade de América do Sul, no Chile, com sua especificidade, via sistema eleitoral democrático, com a eleição de Salvador Allende –, o que obrigou as diversas burguesias nacionais a cederem os seus anéis para que não perdessem os seus dedos, em processos revolucionários que colocaram os “homens e mulheres” que atualmente “vivem do trabalho” ou, simplesmente, os trabalhadores em geral e ou os “proletários reais” do passado, no poder, no governo, no controle dos meios de produção, socializando-os, e na gestão dos aparelhos do Estado, para que o mesmo deixasse de ser uma “agência dos negócios da burguesia” e passasse a legitimar os interesses da maioria da população, que é a classe trabalhadora; enfim, se implantasse, assim, pela primeira vez na história, a verdadeira democracia enquanto governo do povo, para o povo e pelo povo.
Esse processo histórico adverso ao capitalismo fez com que a voracidade do capital fosse aplacada e o trabalho pudesse avançar na conquista e manutenção de alguns direitos fundamentais para a dignidade dos trabalhadores, ou seja, contribuiu, direta ou indiretamente, para a reforma do sistema capitalista.
Importante ressaltar, como ponto de partida, que Karl Marx produziu todo seu pensamento na fase do capitalismo industrial monopolista/imperialista, durante o século XIX e o analisou como resultado da sua fase anterior, do capitalismo concorrencial, comercial, da Idade Moderna, que ele o classificou como o período de acumulação primitiva do capital, um interstício de tempo com duração de 300 anos de saque das riquezas da América, África e Ásia, promovido em escala global pelas diversas burguesias nacionais dos países europeus, sem o qual não haveria a extrema acumulação de capital na Europa que propiciasse o desenvolvimento necessário das forças produtivas para que tivéssemos assistido ao salto qualitativo da produção manufatureira, característica desse período anterior, para a produção industrial, predominante no contexto europeu em que Marx viveu.
Portanto, ao afirmarmos a atualidade, a importância e o significado do pensamento marxiano para a América do Sul, não o fazemos desconhecendo essa sua extemporalidade, uma vez que vivemos sob a égide de uma nova fase no desenvolvimento das forças produtivas, do toyotismo, do capitalismo financeiro, do neoliberalismo, ou da internacionalização do capital financeiro, como definem alguns autores marxistas, e que, ainda, tem no pós-modernismo a “etapa superior do capitalismo” ou a ideologia cultural que cimenta a hegemonia da globalização, com tais especificidades completamente diversas daquelas do capitalismo industrial dos tempos de K. Marx, e na esteira desse raciocínio, não temos como deixar de considerar as contribuições do pensamento dos autores marxistas, contemporâneos nossos, que já procederam à releitura da obra marxiana para melhor compreendermos as contradições e os entraves presentes em nosso contexto do século XXI, que impedem a chegada da humanidade numa sociedade socialista onde se construa um homem novo, autônomo e livre de toda forma de opressão.
Outra constatação importante que devemos fazer inicialmente é que Marx propôs uma ruptura definitiva com a dicotomia entre o pensar e o fazer, quando afirmou, na XI Tese sobre Feuerbach, que “Até hoje os filósofos têm interpretado o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” e, em seu lugar, cunhou o conceito de práxis, como a união dialética entre a teoria e essa mesma prática.
Assim, fica impossível tratarmos do pensamento revolucionário marxiano sem, no entanto, nos reportarmos às “práticas revolucionárias” na Amárica do Sul. A maioria absoluta delas se deu através da luta armada, sejam as atuais e ou aquelas que influenciaram estas, no decorrer desses dois centenários do nascimento de K. Marx.
Os múltiplos marxismos
Antes de tudo, para evidenciarmos o significado desta vertente do pensamento humano para a América do Sul, também devemos comprovar o seu vigor nestes 200 anos [1818-2018] de nascimento do pensador alemão, pois, se o inventariarmos em seu desenvolvimento histórico, facilmente nos depararemos com mais de 600 autores, atores sociais, interlocutores, precursores socialistas, lideranças políticas, inspiradores, lutadores sociais marxistas, bem como com uma multiplicidade de denominações de marxismos que existiram ou ainda existem ou subsistem, como: “o marxismo clássico ou científico”, “o marxismo crítico”, “o marxismo hegeliano”, “o marxismo-leninismo”, “o marxismo legal”, “o marxismo vulgar”, “o marxismo ocidental”, “o marxismo estruturalista”, “o marxismo analítico”, “o austro marxismo”, “o euromarxismo”, “o marxismo da Escola de Frankfurt ou da Teoria Crítica”, “os marxismos da nova esquerda”, “os pós-marxismos” e “os anti-marxismos”, com milhares e milhares de obras decorrentes destas vertentes ou “destes galhos”, derivados de “um mesmo tronco”.
O pensamento marxiano que, por sua vez, se alimentou de pelo menos “três raízes mestras”, a saber, a economia política inglesa, de David Ricardo e Adam Smith, da qual herdou e deu continuidade à teoria do valor-trabalho, que “Mostrou que o valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário investido na sua produção”, conforme destacou Lênin (As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo, 2000), que resultou no conceito marxiano da mais-valia, a verdadeira causa do enriquecimento da burguesia, segundo Marx, tanto a mais-valia relativa quanto a mais-valia absoluta e extraordinária, como partes do trabalho executado pelo proletariado e não pago a este pelo burguês capitalista.
Os socialismos utópicos, cujos maiores expoentes foram Owen, Simon e Fourier, aos quais Marx contrapôs o socialismo científico, através da categoria de luta de classes enquanto “motor da história”, como evidenciou no Manifesto Comunista, escrito em parceria com F. Engels, para a supressão do modelo de exploração capitalista, obra esta encerrada com a mais contundente convocação à classe trabalhadora já vista na história, a saber, “Proletários de todo mundo, uni-vos”, definindo o internacionalismo operário como uma característica essencial do socialismo científico, em contraposição ao nacionalismo liberal burguês e que, na esteira dessa ideia, não haveria socialismo de um país só; e, por último, a filosofia clássica alemã, principalmente de Hegel – do qual Marx subvertera o conceito de dialética, constituído pela tese, antítese e síntese, naquele autor apenas aplicada ao espírito, às ideias e, em Marx, aplicado à história – e de Feuerbach, do qual encampou o seu conceito de materialismo e apoiou em suas ideias relacionadas a Deus como sendo a hipostatização dos nossos desejos, ou seja, não foi Deus quem criou o homem, mas é o homem quem cria Deus a partir de suas limitações.
Não sabendo tudo, não conseguindo estar em todos os lugares e nem podendo tudo, criou, respectivamente, um ser onisciente, onipresente e onipotente. Como decorrência desse pensamento, Marx trabalha com uma visão crítica em relação à religião, ainda que não seja específica dele, como sendo “o ópio do povo”, num primeiro momento, pois ela funcionaria como um anestésico de corações e mentes em relação à exploração do capital sobre o trabalho, da burguesia sobre o proletariado, o que geraria uma aceitação passiva, certa indiferença e, até mesmo, uma alienação em relação às suas condições históricas adversas, ou seja, a religião seria mais um dentre os outros importantes “aparelhos ideológicos do Estado”, segundo o marxista Althusser, como o é a escola, a família – aliás, considerada por Marx a “célula mater” do capitalismo –, os meios de comunicação de massa, os sindicatos, o direito (as leis), dentre outros. Nas palavras de Michael Löwy (Marxismo e religião: ópio do povo?, 2006), trata-se de […] aproximar-se dela [religião] como uma das diversas formas de ideologia – ou seja, da produção espiritual de um povo, da produção de ideias, representações e consciência, necessariamente condicionadas pela produção material e as correspondentes relações sociais.
É importante ater-se um pouco mais nesta importante ferramenta de interpretação que o pensamento marxiano nos legou para nossa realidade sul-americana, ainda no século XXI, que é a categoria da ideologia como um eficaz instrumento de dominação burguesa que prescinde do uso da violência material tradicional como o uso das forças policiais de repressão e coerção, das forças armadas etc., mas que não deixa de ser também uma forma de violência, apenas que simbólica, uma vez que, através dos aparelhos supracitados, impõem-se às classes trabalhadoras, pela persuasão e convencimento cotidiano, seus valores, suas ideias, suas teorias, visão de mundo, enfim, seus conhecimentos como sendo universais, ainda que saibamos ser fragmentários.
Essa ideologia utilizada pela burguesia, que tem como características principais a inversão da realidade, uma vez que explica a mesma utilizando o efeito como causa e esta como efeito, a naturalização do que é histórico bem como uma narrativa repleta de lacunas e que, devido a estas mesmas características, faz com que sejam assimilados pelas classes trabalhadoras concretas como sendo seus valores, suas ideias, suas teorias, sua visão de mundo, seus conhecimentos, quando, na verdade, não o são e daí, então, temos como decorrência, a consolidação da hegemonia burguesa da sociedade.
O marxismo na América do Sul contemporânea
Para contrapor essa visão burguesa de que são as ideias, as teorias, os conhecimentos, de preferência os seus, que movem o mundo, Marx (1978, p. 129-130) dirá: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”; em outras palavras, é através da práxis que a classe trabalhadora poderá construir a sua contra ideologia, a verdadeira teoria, porque totalizadora, não totalizante, que poderá se consolidar numa contra hegemonia – como quereria o marxista italiano Antônio Gramsci – que auxiliará na condução dos trabalhadores ao poder, para se transformar na classe dirigente da sociedade.
Para isso, segundo esse filósofo marxista italiano, é de fundamental importância o papel desempenhado pela figura do intelectual orgânico enquanto aquele que sistematizará e organizará a cultura popular para que a mesma possa enfrentar em igualdade de condições a cultura erudita, considerada a única forma de saber válido pela burguesia, em sua estratégia de dominação e, por isso mesmo, fora do alcance das classes trabalhadoras.
Segundo o marxista brasileiro, J. P. Netto, “a teoria social de Marx tem como objeto o estudo da sociedade burguesa de sua época, como reprodução ideal do movimento real deste mesmo objeto pelo sujeito que pesquisa (…)” (Introdução ao Estudo do Método de Marx, 2011), no caso, o próprio Marx. Assim, nos dias de hoje, na América do Sul, a teoria social marxiana tem muito a contribuir de maneira seminal para a leitura e desvelamento dessa complexidade apresentada pela nossa realidade, como já o fez no século XX, através da obra Sete Ensaios da Realidade Peruana, o pensador marxista, J. C. Mariatégui, para citarmos apenas esta, principalmente no que tange à lei geral da acumulação capitalista, segundo a qual a produção da riqueza social, numa ponta, implica, necessariamente, a reprodução contínua da pobreza extrema na outra ponta do sistema do modo de produção capitalista.
Só através do método de interpretação marxista teremos condições de analisar com a profundidade e totalidade necessárias as relações de produção ocultas das sociedades sul-americanas que tornam visíveis apenas a circulação restrita das mercadorias e o consumismo exacerbado da fase atual do capitalismo que agrava sobremaneira a “questão social” na Pátria Grande, como sonhou um dia nosso grande libertador, Simon Bolívar, e que tem, na atualidade, algumas iniciativas espasmódicas nesta direção, como a criação do Banco do Sul pela União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e do bloco econômico do Mercado Comum do Sul (Mercosul), que a depender das características dos governos nacionais de plantão que ocupam tais instituições podem contribuir mais ou menos para manter esse sonho de transformar a América Latina numa única nação, mais humana, digna, justa, livre, igualitária e verdadeiramente democrática na plena acepção da palavra e ultrapassarmos essa visão de integração estritamente econômica, a serviço das elites locais para avançarmos em relação a uma integração totalizadora da realidade, em seus múltiplos aspectos.
Outro importante aspecto do significado atual da obra marxiana para a América do Sul é que, através da disseminação das suas ideias nas universidades, escolas, igrejas, sindicatos, associações, partidos, comunidades em geral e movimentos populares e sociais progressistas organizados, as classes dominadas, os mais pobres e os excluídos compreenderam, enfim, que a “emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, expressão da declaração marxiana da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864, ainda que, por aqui, quem ajudou de maneira preponderante na consolidação da hegemonia desta visão fora, “contraditoriamente” às ideias marxianas originais, a Teologia da Libertação, com sua “opção preferencial pelos pobres”, como muito bem observa o marxista Michael Löwy, através das Comunidades Eclesiais de Base.
A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, nos movimentos de educação popular e sociais, também bebeu na fonte do cristianismo de inspiração primitiva, cuja referência encontra-se no livro dos Atos dos Apóstolos do Novo Testamento, na Bíblia Sagrada; o Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, que segundo o mesmo “ainda não era a revolução, mas, sim, um ensaio da revolução”; e a Filosofia da Libertação, do argentino Enrique Dussel. Tal hegemonia se evidencia ou se manifesta, claro, que com suas especificidades, contradições e idiossincrasias na organização de movimentos sociais, tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Partido dos Trabalhadores (PT), para se ater apenas à realidade brasileira do final do século XX, mas sem deixar de lembrar dos movimentos guerrilheiros revolucionários continentais, como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCs), o Sendero Luminoso no Peru – cito esses dois países sul-americanos com base nos estudos quase “proféticos” deste importante historiador marxista Eric Hobsbawm.
Tal hegemonia se manifesta também nas sucessivas vitórias eleitorais democráticas de governos nacionais e populares, como Salvador Allende, na década de 1970, no Chile; Lula da Silva e Dilma Rousseff, no Brasil; Hugo Chaves, na Venezuela; Evo Morales, na Bolívia; Rafael Correa, no Equador; Fernando Lugo, no Paraguai; José Mojica, no Uruguai; Nestor Kirchner e Cristina Kirchner, na Argentina; e Michele Bachelet, no Chile, para citarmos apenas alguns destes governos das duas primeiras décadas do século XXI e não avançarmos às fronteiras para além da América do Sul, com os governos de Manuel Zelaya, em Honduras, e de Daniel Ortega, na Nicarágua, bem como nem retornarmos aquém do século XXI, com as revoluções sandinista nicaraguense e a castrista cubana, o que escaparia aos propósitos e limites temáticos do presente ensaio.
Fora do socialismo só haverá a barbárie e a selvageria
Para finalizar, é importante destacar que a América do Sul tem todas as condições e as ferramentas teórico-práticas necessárias para ser a ponta de lança na luta pela destruição do capitalismo e em seu lugar implantar novas experiências socialistas para não ter que se acostumar a conviver permanentemente com crises cíclicas deste modelo perverso, devido à promoção da concentração extrema da riqueza, com os ataques permanentes aos direitos dos trabalhadores, que foram conseguidos através de muitas lutas ideológicas e embates, muitas vezes sangrentos, por aqueles que tentaram reformar esse sistema iníquo, injusto e desumano. Enfim, como dizia a marxista Rosa Luxemburg, fora do socialismo só haverá a barbárie, no que eu acrescentaria, também, a selvageria, ou seja, retrocederíamos às priscas eras do desenvolvimento histórico da humanidade, sem, no entanto, sequer termos alcançado o comunismo, nem mesmo o primitivo, etapa, segundo Marx, na qual se deu o início do processo de transformação da natureza pelo homem através do trabalho, quando se vivia a plena igualdade e por ser, segundo Engels, a única formação social histórica a apresentar a completa ausência da luta de classes devido à inexistência da propriedade privada dos meios de produção.