um dia sei que estarei mudo:

– mais nada

(Cecília Meireles)

Escrevo como quem parte às pressas e precisa deixar recados por todos os cantos da casa. Escrevo porque disseram que é o único jeito de se exercitar a permanência. Escrevo ferindo o papel com minha letra estranha, como quem rasga o ventre, prenhe do mundo.

Suspeito sempre das certezas que me imputaram. Sei apenas da viagem. Quero ir e ao mesmo tempo desejo ficar. Mas não sou dois. Sou um apenas, embora tenha muitas faces e o mundo me obrigue a cumprir múltiplos papéis. O único papel de que gosto é esse, onde talho minha letra. Escrevo com sangue e sêmen, pois a escrita só tem sentido se assim o for, já dizia Nietzsche. Mas até no prazer reside a dor. Quem não sentiu dor ao parir de fato não experimentou o sentido da criação.

Tem certas horas que a gente só quer mesmo escrever para se curar dos males terrenos. Não tenho, obviamente, intenção de curar os outros. A escrita não pode tudo. Ou pode? Foi-se o tempo das crenças sublimes. Foi-se o tempo da verdade singular. Tudo é abismo agora. Vivo à beira. Sou meu próprio colapso. Rio aos milhões; choro aos trilhões; vocifero aos zilhões. Essa inumerável teia de sensações sou eu, é meu corpo, é o meio pelo qual me dou a conhecer. Não sei ser de outro modo.

Sei que sou egoísta quando escrevo e apenas falo de mim. O fora de mim é grande demais para que eu o abarque. E os olhos me enganam quando dizem que veem. Eles miram e não abraçam; olham e não contemplam. Contemplar é coisa para santo, o que não sou. Os santos sofrem gozando. E eu gozo para não sofrer. Isso é ser humano em demasia. É simples assim. Não é sacrilégio. Talvez seja profanação. Mas profanar, como bem diz Giorgio Agamben, é restituir ao homem o que lhe fora tirado. Então, profanemos na certeza de que não há pecado algum nesse gesto. Eu quero o gesto primordial, o fogo de Prometeu, a caixa de Pandora, mas parece que só me deram a pedra de Sísifo ou o mundo de Atlas. Rolar a mesma pedra e carregar o mundo sobre os ombros é tarefa hercúlea. E não sou Hércules. O Super-homem ainda não nasceu.

Por favor, não me venham dizer que meu texto está eivado de aflições. Se você não consegue mergulhar nele de corpo e alma, fuja para bem longe. Pro seu bem. Vá ler a alegria psicodélica e a excitação desenfreada nos textos dos outros e se empanturrar de felicidade. Não busco leitores; busco parceiros. Mas não queira me julgar. Não preciso de juízes; quero advogados. Advoguem minha causa que é uma só: viver sem o constrangimento da dura herança do tempo dos homens.

Vou te contar um segredo: eu não sou homem; sou anjo disfarçado. Mas não pense que sou desse tipo de anjo que vive atrás dos homens para guardá-los do mal. Também não sou um anjo caído da legião de Lúcifer. Estou entre a miríade e a potestade (Acho essas duas palavras tão bonitas que quis escrevê-las aqui. Busque o sentido que você quiser). Não venho nem do céu nem do inferno. Se eu te disser que o lado de lá é bem mais complexo do que as religiões desenharam, você acreditaria? Sou anjo que se pensa homem e não entende muito das legislações terrestres. A terra não é paraíso coisa nenhuma. É cárcere. E só por isso escrevo. Minha escrita é um uivo. Então descubro que nunca fui anjo, nem homem. Sou é lobo disfarçado. Foi minha escrita quem disse isso, traduzindo-me.

Mas é aí que mora o perigo.

Gostaria de te dar uma senha sobre mim que é o que diz Murilo Mendes em sua “Cantiga de Malazarte”: “Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido, não posso amar ninguém porque sou o amor… Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo, nada me fixa nos caminhos do mundo”. Pedro Malazartes, João Grilo, Dom Quixote ou, ainda, Lazarillo de Tormes: carrego tantos vagabundos em mim que sou espírito arruaceiro, e danço na cara do mundo recalcado, e esfrego minha vontade na obrigação do mundo, e digo ao tempo que ele só existe nesse instante e não pode tudo.

Estou mentindo se te disser que compreendo o que escrevi. Não se pode esperar compreensão de quem escreve como quem parte. Não se pode esperar compreensão de uma tinta de gozo. Nem de uma escrita lupina. E isso basta.

Agora fecho a porta e me vou. É lua cheia e ainda não virei lobisomem.

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