Por Marly Motta, da Carta na Escola
A menina de 7 anos, aluna da 1ª série do antigo primário, jamais esqueceria aquele 24 de agosto de 1954. Pela primeira vez, voltou para casa sozinha, já que, às 8h30 da manhã, sua professora, com ar solene, havia comunicado que as aulas estavam suspensas em virtude da morte do presidente Getúlio Vargas (1882-1954).
Em casa, encontrou a mãe e a avó aos prantos, como se aquele velhinho sorridente, cujo rosto ela se acostumara a ver em retrato, fosse da família. Não demorou a perceber que a emoção não se restringia aos seus parentes. Naquele dia, milhares de pessoas correram às ruas, ávidas para homenagear e chorar a morte daquele que muitos consideravam “o pai dos pobres”.
Longe de ser unanimidade, Vargas foi, e ainda é, sob qualquer aspecto que se queira analisar, uma figura polêmica na História do Brasil. Até por ter sido o governante que mais tempo esteve à frente da Presidência da República: 19 anos.
Por isso mesmo, a chamada Era Vargas, pelo que representa para a construção da identidade do Brasil e do povo brasileiro, é um dos períodos históricos mais visitados por pesquisadores nacionais e estrangeiros, de diferentes formações. Historiadores, cientistas políticos e economistas, a partir de abordagens teóricas e perspectivas ideológicas diversas, transformaram esses anos em um celeiro de interpretações divergentes e polêmicas que resultaram na elaboração de conceitos como populismo, trabalhismo e corporativismo.
Resta destacar os dois volumes da biografia Getúlio escritos pelo jornalista Lira Neto (leia a entrevista na pág.12), cujo mérito é o de colocar Vargas como ator histórico legítimo, sem, no entanto, deixar de fornecer indicações importantes acerca de suas relações com o contexto político e social da época. Se é certo que Vargas foi filho de seu tempo, foi, igualmente, um de seus principais construtores.
O Tempo Varguista
Menos do que discutir o legado de Vargas deve-se indagar por que falar de Getúlio é falar de nós, e por que, inspirada no historiador Ilmar Rohloff (O Tempo Saquarema), ouso dizer que ainda vivemos no Tempo Varguista.
Algumas pistas podem ser buscadas no discurso de despedida do Senado de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), recém-eleito para seu primeiro mandato presidencial: “Resta um pedaço do nosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas, ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista”.
De fato, Vargas não só foi o chefe supremo da nação por quase 19 anos (1930-1945 e 1951-1954), como, na maior parte do tempo, exerceu o poder de maneira autoritária, centralizadora e personalista. Ao contrário do previsto por FHC, porém, a política econômica baseada na intervenção estatal, bem como as instituições criadas para implementá-la, resistiram às investidas do chamado neoliberalismo e voltaram a se fortalecer nos governos de seus sucessores, presidentes Lula da Silva (2002-2010) e Dilma Rousseff (2010-2014).
Sobrevivência ainda mais longa tem a legislação trabalhista criada por Vargas, já que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ainda organiza as relações entre patrões e empregados no Brasil.
Formando corações e mentes
Quais seriam os principais fios de ligação entre o passado e o presente que teceram o Tempo Varguista?
Um dos mais importantes foi a entrada do Estado na área educacional, sob a direção de Gustavo Capanema, que, por 11 anos, manteve-se à frente do recém-criado Ministério da Educação.
Em termos gerais, investiu-se na formação de uma elite “capaz de comandar a nação”, em detrimento de uma educação maisdemocratizada, voltada para o ensino básico. Nessa faixa, a preocupação central foi submeter o regional a uma orientação centralizadora e nacionalista.
Na Era Vargas, outro importante fenômeno ocorreu no País: à medida que a população urbana crescia, surgiu uma cultura de massa, que teve no rádio seu primeiro veículo. Durante o Estado Novo (1930-1945), a Rádio Nacional foi incumbida de fazer a propaganda do regime. Ao lado do programa oficial Hora do Brasil – que existe até hoje com o nome A Voz do Brasil –, havia as novelas e os programas de auditório, nos quais cantores se apresentavam com enorme audiência popular. Em larga medida, o rádio contribuiu para aproximar governo e trabalhadores e popularizar a figura de Vargas como o “pai dos pobres”.
“Modelo de desenvolvimento autárquico e Estado intervencionista” seriam outros fios que aprisionariam o presente no Tempo Varguista. De fato, uma de suas marcas foi a criação de uma nova estrutura político-institucional que permitisse aumentar a intervenção estatal. Um pilar dessa nova configuração foi a centralização e o fortalecimento da burocracia estatal. Considerava-se que os operadores da economia, de perfil predominantemente técnico, deveriam se manter distantes dos interesses políticos, regionais ou partidários. Por isso, a implantação do corporativismo foi feita por meio da criação dos conselhos técnicos, abertos à participação de empresários, e que se transformariam em um canal de representação de interesses junto ao Estado. Foi o caso do Departamento Nacional do Café e do Instituto do Açúcar e do Álcool, entre outros.
Deixamos para o fim o fio que mais profundamente teceu nossa alma e a sintonizou ao Tempo Varguista. Entre 1932 e 1937, foram sancionadas leis que regulamentaram as relações de trabalho. Os sindicatos também foram legalizados, mas apenas aqueles registrados e fiscalizados pelo Ministério do Trabalho. Ao lado do sindicalismo oficial, outros permaneceram sob o controle dos comunistas e receberam forte repressão governamental, especialmente representada pela Delegacia de Ordem Política e Social (Dops).
A legislação social então instituída (apresentada como uma “dádiva” do Estado à população, em especial a mais pobre) pode ser considerada uma das bases da formação de um tipo de cidadania restrita, baseada, sobretudo, nos direitos sociais, e não nos direitos civis ou políticos. Assim, o anúncio de medidas como a instituição do salário mínimo ou a Consolidação das Leis do Trabalho era sempre feito em grandes solenidades cívicas realizadas em estádios de futebol, no 1º de Maio, o Dia do Trabalho.
Vargas, 60 anos depois
Quinze anos depois da vitória da Revolução de 1930, também no mês de outubro, Vargas foi deposto pelos militares. As condições políticas mudaram e tradicionais aliados, como as Forças Armadas, estavam divididos quanto à manutenção do regime autoritário. Apesar de apeado do poder, Vargas não perdeu a popularidade.
Tanto que, dois meses depois de sua deposição, foi eleito para a Assembleia Constituinte por vários estados da Federação. No entanto, em carta à filha Alzira, sua auxiliar próxima, o ex-presidente desabafou: “(…) minha situação é um tanto semelhante àquela (…) da pessoa que morre e a alma não desencarna. De um lado, elegem-me para várias funções públicas (…). De outro lado, aconselham-me a não entrar no exercício dessas funções, considerando-me um homem pernicioso ou prejudicial. Estarei vivo ou morto para a vida pública de meu país? Preciso decidir-me e tomar um rumo”.
Manter-se vivo para a vida pública ou aceitar a morte política? Esse era o grande dilema do ex-ditador “exilado” em sua fazenda de São Borja, no Rio Grande do Sul. O rumo tomado é bem conhecido: Vargas influiu na escolha do novo presidente da República, ao declarar seu apoio ao general Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), e garantiu sua volta ao Palácio do Catete nas eleições presidenciais de 1950.
Apesar da votação estrondosa recebida do eleitorado brasileiro, Vargas enfrentou um ambiente polarizado, alimentado por uma forte oposição no Parlamento e na imprensa. A radicalização atingiu seu ápice com o atentado contra o jornalista Carlos Lacerda – famoso pelos pesados ataques ao governo no jornal Tribuna da Imprensa –, que resultou na morte do major da Aeronáutica Rubens Vaz. As investigações resultaram em acusações a pessoas próximas do presidente, o chefe de sua guarda pessoal, Gregório Fortunato.
Dessa vez, Vargas escolheu outro rumo. No dia 24 de agosto de 1954, decidiu “sair da vida” com um tiro desferido no próprio peito. Deixou uma carta explicando as razões de seu sacrifício. Para ele, sair da vida não significava morte política, e sim o “primeiro passo no caminho da eternidade”.
Sessenta anos depois, foi a menina, agora historiadora e autora deste Tema de Aula de Carta na Escola, que se emocionou ao ver no cinema o filme Getúlio, dirigido por João Jardim. Emoção que, tal como em 1954, foi compartilhada pelos milhares de espectadores que reconheceram Vargas e nele se reconheceram.