“A arte não reproduz o visível, faz visível”, Paul Klee[1]

Pode? Se pode, o que a literatura pede?

Não há gratuidade para o mergulho literário. Para mais fundo ir, mais de nós a literatura pede.

Podemos boiar na superfície sem nos molhar. Secas. Intactas. Estéreis. Regressamos.

Se não temos o que nos pede, o que podemos com o que pode a literatura?

A palavra é fio e linha do que pede. Se nos roubam a palavra que pede, o que pode a literatura?

Se a palavra nos é servida em doses parcas em bandejas frias, o que podemos?

Palavra a conta gota não nomeia o oceano que é ser humano.

Palavra rasa é cortina de fumaça.

Se há fome de palavra, reina a miséria.

Se há miséria de vida, o que pode a literatura?

É tanto e tão demasiado o que dela esperamos, como sobreviventes de naufrágio, sem fundar em nós os sulcos das possibilidades.

Seria a literatura esse tapete tecido e desmanchado dia e noite após dia e após noite fundando a nossa impossibilidade?

Não existe tecitura sem troca. É preciso palavra apalavrada. Empenhada. Empunhada.

Pretendemos dela que nos humanize miseráveis de vida para humanizados ser.

A humanidade que almejamos desde os confins dos tempos primeiros

em que imprimimos nas paredes das cavernas nossas mãos

e com nossas mãos nossos espantos e o desejo

de dizer do mundo que víamos

para dizer de nós que vivíamos e víamos o mundo.

Tantas possibilidades de nós dormem num canto encarnado em nós.

Leito de um outro nós.

Não mais hostil.

Tão mais acolhedor.

Pode a literatura nos desencarnar?

E como num mito de origem fazer-se corpo do mais que humano em nós?

Mas …. se fato fosse e não mito, quem seríamos num ponto nunca final desta jornada?

Seríamos o que se afasta cada vez que mais perto estamos?

Para, num infinito sem fim, infinitamente, ser, utopia.

Se a palavra é servida em doses parcas em bandejas frias, o que podemos?

Somos feitos da poeira das estrelas” confidenciou nos anos 80 o astrônomo Carl Sagan. Uma ideia semente de nós que reúne poesia e biologia em um só corpo. Ideia ideal de Ser que foi expandida em tempo mais recente no campo das descobertas: Ser daqui é ser de toda parte. O universo habita em nós.

E tudo que está em torno de nós nos constitui, embora não nos determine. Nas palavras de Todorov: “Somos todos feitos do que outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam[2].

No reino animal, nem os mais fortes e nem os mais velozes. Entre todos, os mais dependentes de uma longa, dedicada e delicada jornada de cuidados. Fato é que, como sociedade, seguimos falhando miseravelmente na arte de cuidar das vidas. Fagocitamos o mundo que nos abriga. Subjugamos culturas. Reprimimos a diferença. Admitimos a  miséria. Extorquimos os povos originários. Contamos em minutos, sem deter, a perda de vidas femininas.

Neste rastro de precarizações, os maus tratos à infância tem lugar central: todos os tipos de violência contra crianças e adolescentes tiveram um aumento em 2022[3]. Emudecemos crianças e jovens, roubando delas a palavra desde o ventre, pouco a pouco substituindo a complexidade da linguagem e do pensamento pelo alívio da ignorância.

Diz Todorov, “…A literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos…[4] . Ao sair do útero materno, ingressamos no útero da linguagem, da palavra. Então as ofertas de leituras na qual somos ou não banhados cotidianamente importam como importam os cuidados que nos são ou não ofertados cotidianamente. É uma jornada banhada pelas condições objetivas da vida de cada qual: históricas, afetivas, sociais, emocionais, econômicas, culturais. É uma jornada onde igualmente importa o que se lê, como se lê, para que se lê, o que se faz com o que se lê.

Para que a literatura possa, pede um compromisso cotidiano e potente de delicada tecitura plena de intencionalidades movidas por palavras e ações, que puxe o fio das nossas mãos ancestrais cravadas nas paredes das encostas e das cavernas que anunciam nossa predisposição e necessidade para narrar o que nos arrebata, nos espanta, nos inquieta, nos faz humanos.

Então, se não temos o que nos pede, o que podemos com o que pode a literatura?

Se há miséria de vida, o que pode a literatura?

Para dizer de minha inquietude quanto ao que pode e o que pede a literatura trago comigo as palavras testamento de Minosse, personagem central do romance “Ventos do Apocalipse”, de Paulina Chiziane: “Obedeceu, serviu, morreu”. Ouça mais de perto:

 “Entreguei o meu corpo aos prazeres do meu senhor porque na realidade nunca senti nenhum. O meu sexo foi apenas uma latrina em que Sianga mijava quando a gana vinha. Nos momentos de mágoa ainda me ajoelhei pedindo a Deus a paz que não vi. E chorei diante do meu homem, por mim, por ele, para ele, embora sabendo que as lágrimas que deitava eram para ele iguais à urina que despejava quando a bexiga sofria a pressão do líquido depois de um serão de cerveja e sura. Levei uma vida madrasta e uma carreira brilhante na área do sofrimento”[5].

Diz pra mim: como você se sente depois dessa porrada? O que faz com o que sentiu? Empenha a palavra no miudinho do chão em que pisa por vida digna e cuidada para todas as vidas?

Ouça Minosse partilhando seu desespero sobre a vida das três crianças órfãs que acolheu sob seus cuidados:

Talvez os meninos encontrem uma tia dedicada, uma família substituta e, quem sabe, talvez o governo tome conta deles e crie leis. Mas um dia serão homens, serão mulheres, abandonarão os orfanatos para conhecer o mundo, vaguearão desorientados sem destino e lutarão para sobreviver. Não têm família, não têm escola, e toda a sociedade lhes fecha as portas. Emprego não terão, com certeza. Que farão eles para sobreviver se todas as portas lhes serão vedadas? Primeiro tentarão viver com decência, mas sem resultado. Depois virá a revolta, a vingança e finalmente o crime. Eles matarão injustamente como seus pais foram mortos. Revoltar-se-ão contra a vida. Insultarão os ventres que os trouxeram ao mundo ignorando que todos eles foram gerados com suspiros de amor. Vê-los-emos nas grades das prisões condenados a oito, doze, vinte anos de cadeia, por assassinatos, assaltos à mão armada, e os justos gritarão em nome da lei: matem os assassinos, prendam os malfeitores, torturem esses monstros”.[6]

Outra porrada, né? É com imenso receio de dar funcionalidade à literatura que indago: como emergimos desse texto? Que fazemos com sua pujança? Como voltamos a olhar em nosso redor onde somos atravessadas(os) pela violência e pelo medo de uma realidade que conhecemos e tememos tão de perto? Que fazemos para desmontar a roda viva de moer vidas?

A literatura sensibiliza pessoas ou pessoas já sensibilizadas vão beber de sua fonte para alimentar-se de sentido? Ampliar escuta? E em um diálogo íntimo elaborar percepções que podem afetar como pensamos, existimos, fazemos escolhas, tomamos decisões menos corrosivas à vida, à nossa e a de muitas outras vidas?

Há tempos terminais para a humanização? Embora possamos seguir produzindo arte literária essa arte é para sempre e em quaisquer circunstâncias mobilizadora do potencial humanista que julgamos ser semente latente em todos os seres humanos? Nós, que somos, ao mesmo tempo, complexos e mesquinhos?

Investidas(os) pela literatura com a “cota de humanidade” que “nos torne mais compreensivas(os) e abertas(os) para a natureza, a sociedade, o semelhante”, como preconizou Antonio Cândido[7], estamos concretizando de fato essa potência nas decisões e atos que praticamos cotidianamente no chão em que pisamos?

Pode a literatura nos desencarnar do mito de humano gestado em nós?

Tão atual, escreveu Freud em 1932: “Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra[8].

Adiro à ideia de que literatura é fresta e portal. Fresta por onde transita o que pode subverter a ordem. Portal por onde podemos antever e inventar o novo bom e melhor para todas as vidas. Porque é o fósforo riscado de Faulkner[9].

Adiro com todas as minhas inquietações. Adiro sem renunciar a quaisquer das minhas dúvidas. Adiro porque preciso.

Talvez como rastros de nós mesmos, do que podemos vir a ser. Literatura para seguir persistindo nessa ideia. Produzindo e lendo para não nos esquecer, não nos afastar, para irmos juntas de mãos dadas, como disse Carlos, sendo o tempo a nossa matéria, “…o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”[10].

Adiro de mãos dadas com Carlos pensando a literatura como a possibilidade de tatear o humanista que suspeitamos residir em nós, não como fato, como potência. Se não é tudo, é muito do que poderíamos vir a ser.

Adiro de mãos dadas com Todorov.

Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano. Que melhor introdução à compreensão das paixões e dos comportamentos humanos do que uma imersão na obra de grandes escritores que se dedicam a essa tarefa há milênios? E, de imediato: que melhor preparação pode haver para todas as profissões baseadas nas relações humanas?[11] .

E aqui eu expandiria para TODAS as profissões. A ideia é um diálogo intenso de todos os saberes com as narrativas literárias, porque poderiam aprofundar as reflexões sobre as complexidades que envolvem a vida e imprimir os cuidados necessários no momento mesmo em que uma busca se inicia e uma descoberta é encontrada, não mais às escuras, mas à luz das vidas humanas que pulsam no cotidiano do chão em que se pisa e todas as formas de vida que pulsam neste planeta. Que as descobertas sejam sagração à vida e não existam a despeito delas. Que os sonhos de poucos não custem a vida de tanto e tantos.

Resisto à ideia de ser inocente ao ponto de achar que a formação literária blinda completamente a lógica de poucos ganharem muito sobre o trabalho de muitos que ganham pouco ou quase nada. Mas talvez, só talvez, se de fato formos capazes de pensar e implementar uma consistente e sustentável jornada de leitura literária, com intencionalidades claras no sentido de proporcionar experiências de humanização[12], que contribua para instaurar algum conflito com a lógica dos “danos colaterais inevitáveis” devido à lógica de um modelo econômico que temos elegido e que fagocita tanto e tantas vidas; que enraíze algum desconforto que fira de morte a lógica eugenista, misógina, racista, elitista, preconceituosa, imperialista, sexista, oportunista. Esse é um compromisso sério, que demanda debates e estudos contínuos, mais interseccionalidade com outras áreas do saber, compromisso sustentável de curto, médio e longo prazos, formação leitora robusta de quem estará nesta linha de frente na educação, nas salas de aula, nas bibliotecas ou salas de leitura; precisa de muita participação das famílias

Lá no fundo cultivo a esperança de que a dor de outros seres humanos doa também em nós, muito acima das nossas mais arraigadas crenças, e nos impeça antes que possamos cometê-la.

Adiro na companhia de Compagnon:

A literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia mais que os discursos filosófico, sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às emoções e à empatia. Assim, ela percorre regiões da experiência que os outros discursos negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus detalhes[13].

Adiro de mãos dadas com Barthes:

“Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura (….) A ciência é grosseira, a vida é sútil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens”. [14]

Adiro sabendo que apesar da escola ser o espaço privilegiado para encontros entre leituras e leitoras(es), o espaço para a literatura na escola é ou escasso ou inexistente ou está submetido à lógica funcionária da gramática. E sonho junto com o Rubem Alves:

Sonho com o dia em que as crianças que leem meus livrinhos não terão de grifar dígrafos e em que o conhecimento das obras literárias não será objeto de exames vestibulares: os livros serão lidos pelo simples prazer da leitura.”

Adiro partilhando o receio de Paul Goodman[15]:

Nunca soube de nenhum método para ensinar literatura que não terminasse por matá-la. Parece que a sobrevivência do gosto pela literatura tem dependido de milagres aleatórios, que estão ficando cada vez menos frequentes“.

Adiro embebida da convicção de Freud:

“Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes”[16].

Se somos capazes de reerguer catedrais bombardeadas, devemos ser tão ou mais capazes de restaurar e proteger vidas. Como um ato da vontade humana, enraizada nos confins da nossa potência, desencarnadas pela literatura.

Por isso e por tanto, tomo emprestada e retribuo a poesia-prece que encerrou as jornadas das quartas-feiras que alimentaram nossa potência e determinação em seguir semeando nossa “coragem poética”. Que essa vontade se sobreponha a todos os nossos mais instintivos sentimentos de autopreservação; que sejamos capazes de transgredi-los em nome da sagração de muito mais vida para todas as vidas.

O dia levou um bilhão de anos para morrer.

Não mais que pontos matemáticos, infinitos.

Em qualquer espaço definido ou sem bússola.

Nós, nossos pensamentos, ciscos nos olhos de um deus,

Os olhos lacrimosos de Deus não são (pelo menos) indefinidos.

Somos energia escura e massa escura.

Algo além do sol aponta para nós.

Uma luz além de qualquer espectro que conhecemos,

Como um pensamento, mas ainda mais como uma razão,

Um gerador de propósitos inimaginável,

Voa para nós, para nossas mentes, não como uma flecha,

Para furar, mas com intenção de beijo, um frisson.

Leva apenas um dia para todos os nossos sóis se porem.

Infelizmente, essa é a luz da qual menos nos arrependeremos.[17]

 

[1] FREUD, S. Escritos sobre literatura, editora Hedra, 2014, pág. 90

[2] TODOROV, T. A literatura em perigo, Difel, 2009, pág. 23

[3] Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública

[4] TODOROV, T. A literatura em perigo, Difel, 2009, pág. 22

[5] CHIZIANE, P. Companhia das Letras, 2023, pag.245/246, resgatando o tempo da guerra civil em Moçambique (1964/1974).

[6] Idem ibdem, pag. 247

[7] CÂNDIDO, A. O direito à literatura, in vários escritos, Ouro sobre azul, 2011, pág. 182

[8] Cartas de Freud a Einstein

[9] O que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor”.

[10] Mãos dadas, Carlos Drummond de Andrade

[11] TODOROV, T. A literatura em perigo, Difel, 2009, pág. 92/93

[12]Humanização: o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”, CÂNDIDO, A. O direito à literatura, in vários escritos, Ouro sobre azul, 2011, pág. 182

[13] COMPAGNON, A. Literatura para quê? editora UFMG, 2009, pág.50

[14] BARTHES, R. Aula Inaugural, pp 16-9

[15] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz24039909.htm

[16] FREUD, S. Sobre a transitoriedade, 1915/1916

[17] Sunset, soneto, de Paul Klee (tradução livre)

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