O que é a arte? Conceito ou sensação? Como defini-la? Como ler um quadro, uma pintura, uma escultura, uma música? Seria a arte propriedade de apenas alguns eleitos? Por que muitos de nós, quando olha para um quadro, busca um sentido? Ou por que somos fixados em decodificar formas? O olho insiste que devemos ser prisioneiros das linhas?

Oswald de Andrade, esse nosso inconformado e mal lido escritor, já dizia que “devemos ver com olhos livres”.  Mas não nos libertamos ainda, a despeito de mais de um século de uma guerra que começou lá na Europa e se alastrou pelo mundo. Uma guerra benéfica contra a arte de gabinete. Os vanguardistas europeus não só nos mostraram que cor, linha, matéria prima etc. podem delirar, quanto disseram que o processo vale tanto quanto o produto acabado. O processo é da ordem do artista. O produto acabado é da ordem do espectador.

O problema é que não nos libertamos ainda das formas. Elas nos enjaulam, cobram de nós uma cegueira. Olhamos um quadro de Pollock e dizemos: “meu filho faz melhor que isso!”. Olhamos uma tela de Miró e dizemos: “Que bobagem! Desenhos infantis!” Diante de um Picasso, bradamos: “não entendo por que essa violência toda na pincelada!”.

Não entender é que está o jogo. Porque a arte não foi feita para servir aos nossos instintos ou institutos de beleza. O que é a arte, num mundo onde as palavras “estética” e “designer” ficaram tão batidas (mas tão batidas mesmo)  que é comum vermos placas como esta: “designer de unhas”, “Estética do pelo”, “instituto do cabelo”?

Eu até entendo quando dizem que o uso de termos da arte seja aplicado ao universo da beleza quando me dizem que a maior obra de arte é o ser humano (se bem que não entendo muito bem esse “maior”, acho-o arrogante), e compreendo que, se se trata de beleza, o estatuto da moda pode se apropriar disso. Mas, então, entendam que a arte há muito tempo se libertou da ditadura da beleza, que era necessariamente a ditadura da forma.

Quando os vanguardistas gritaram de muitas maneiras contra a tradição (estou pensando nas récitas de poesia futurista de Marinetti, no Cabaré Voltaire em Zurique, onde os dadaístas destruíam o belo, nos ready-made do Duchamp, nos caligramas de Apolinaire, nas dobras das três dimensões dos cubistas…), eles estavam dizendo que a arte é também o grotesco, o feio, o infenso, aquilo de que somos feitos; e que aproximar, ou confundir, Belo e Verdade é acreditar que só existe uma interpretação do mundo. E não é assim. Não pode ser assim.

Essa ditadura do Belo acabou há cem anos e vigora hoje no corpo. Por isso os institutos e academias que mais proliferam no mundo hoje não ensinam a pensar, ensinam a maquiar, a fazer pés, mãos e cabelo. O estatuto da beleza dialoga muito bem com o império do efêmero, assim como a religião que tem mais adeptos no mundo: o mercado da moda. A oração que se faz é “espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?”.

Certo. Mais então, se o belo mudou de lugar, por que é que ainda queremos olhar para uma tela como se olhássemos uma fotografia? Por que ainda estamos confundindo a arte com um espaço de decoração de interiores? Por que ainda estamos nos sujeitando a acreditar que tudo o que a arte pode dizer diz respeito a decodificação do mundo exterior?

Eu grito quando vejo um aluno de Letras (o meu lugar) em pleno século XXI com uma noção tão mesquinha e tacanha de Arte. E meu grito se fosse pintado seria um quadro do Edvard Munch. Teria aquelas cores sujas, aquela cara desconcertada, aquelas mãos expressivas procurando atravessar uma ponte que nunca termina. Travessia que não acaba. Travessia.

Então é isso? O senhor será um professor de literatura e diz que não entende de arte? E se nega a acreditar na não-linearidade do mundo, da vida, da gente? E se nega a desconstruir e fazer cair por terra séculos de conceitos herméticos sobre o ver? E se nega a ler a literatura ou mundo com olhos não-narrativos. A negação ocorre porque se usa a viseira de uma sociedade que finge que ensina para a vida quando só ensina conceitos. Velhos e batidos conceitos.

A arte só cobra da gente uma coisa: “não venha com seu olhar de prisão dizer o que sou porque; não é o bastante apenas me olhar?”. Se é feita de tinta, pedra, ferro, ou de objetos banais deslocados de uma função, não importa. Pensar a partir da arte é abrir-se a uma questão bem maior que é: “o que sinto quando vejo isso”.

Vamos substituir a pergunta: “o que é isso?” para “O que sinto”. Fica bem mais tranquilo, porque fácil não é.

Como sugestão de leitura, indico um livro bacaninha que acabei de ler. Trata-se de A arte: conversas imaginárias com minha mãe, de Juanjo Sáez, publicado pela Martins Fontes em 2013. É um livro em quadrinhos fora do comum, desconcertante por muitos motivos. O autor oferece na obra um curso sobre arte. Mas não pense que ele vai seguir um percurso linear.

O próprio desenho dele parece com aqueles desenhos de alguém que não sabe desenhar. Mas não se engane. É difícil ser simples. É difícil desconstruir as coisas. É difícil ser como uma criança, minimalista e sincera. Pois Juanjo vai falando sobre Miró, Picasso, Duchamp, Warhol e outros artistas como quem nos pega pela mão para atravessarmos o sinal. O sinal aí é a mesma ponte da qual aquela figura do Munch e eu ainda não saímos.

O interessante na obra do Juanjo são os erros do texto. Todas as palavras e frases abolidas do texto não foram apagadas, mas estão ali, como se o autor quisesse nos fazer mergulhar no ato mesmo de pensar o que se diz, na potência do dizer, e na forma como o dizer não diz. O interlocutor da conversa sobre arte é a mãe do desenhista, que diz o tempo todo não entender arte, ou melhor, certo tipo de arte.

Fica claro nessa conversa entre filho artista e mãe que não entende de arte que o primeiro passo na viagem será não levar na bagagem a lata fechada da realidade. Arte não é realidade. Não é representação da realidade. Não é prisioneira da forma.

Por enquanto, é o que posso indicar a você. E deixo também uma citação, já que o mundo acadêmico cobra da gente citações a torto e a direito. Vou logo encerrar com Heidegger, só para ser besta mesmo: “a arte não é mais do que uma palavra a que nada de real já corresponde. Pode valer como uma ideia coletiva na qual reunimos aquelas coisas que da arte somente são reais: as obras e os artistas” (A origem da obra de arte, p. 11).

Então, vamos deixar que a obra seja? Ensina ao teu olho que ele não pode tudo. Ensina ao teu olho quem é que vê o quê. Ensina ao teu olho que o cisco que ele contém pode ser arte, que a gota de água que o lava pode ser arte, que o cílio que cai ali dentro pode muito bem ser uma marca artística nadando na piscina das sensações. Ensina ao teu olho que ele só vê porque existe a luz e que, mais do que ele, a visão está lá dentro da cabeça, lá dentro, na mesma massa cinzenta que manipula o sentido e o sensível.

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