Não muito distante destas terras delineadas pelos rios Capibaribe e Beberibe, dentro do Planeta Terra, duas cidades, passaram por profundas transformações sociais, o que por definição e, a priori, significa uma mudança de visão do que é uma gestão político-administrativa e, portanto, cultural, a saber: Bogotá (sete milhões de habitantes), e Medellín (três milhões de habitantes), duas das maiores cidades da República da Colômbia. Recife, Pernambuco parece ter contado em 2012 um milhão e meio de habitantes e obviamente todos esses números são aproximados.
Nelas, os “cidadãos-gestores-públicos”, cansados das mazelas que, diária e constantemente, acometiam as rotinas das pessoas que ali residem; da falta de respeito assistida em cada esquina, em cada semáforo, em cada fila de compras; do altíssimo grau de baixa autoestima; da violência urbana e contra a vida; da dependência infanto-juvenil junto aos traficantes e ao escravismo laboral; do “iletramento-profissional” que tomou conta da cultura do fazer e lazer; da falta das àgoras (espaço público desenvolvido, bem conhecido e ferrenhamente defendido pelos cidadãos de um local chamado Grécia, há mais de dois mil anos atrás); da falta de infraestrutura que garantisse o direito constitucional de ir e vir; da falta de escolas públicas de qualidade e de suas respectivas bibliotecas escolares; da falta de bibliotecas públicas inseridas nas entranhas da comunidade, resolveram descer de seus palanques do poder (aqueles que parecem com os púlpitos), com o objetivo de convidar representantes de cada setor público para uma prosa, em que foi feita uma pergunta: Cansamos! Queremos cambiar?
Assim teve início uma jornada difícil, turbulenta, excepcional e lucrativa. O cenário da cidade, as rotinas das pessoas que a fazem, outrora discurso potencial, longínquo ideal, emergiu como exemplo internacional, mundial, global. Verdade seja dita: o cidadão recifense, e a cidade em que reside, trabalha e constrói sua família, precisava, fazia tempo, de uma radical mudança na forma de se ver, olhar e ler. Se, ainda esperançoso, penso que essa mudança está em curso, então, coragem deve conclamar voz para indicar um grave equívoco que, ao mesmo tempo, está sendo cometido: nem todos os atores e atrizes (será que a vida é um tipo de palco?) estão sendo chamados para prosear, nem todas as gestões institucionalizadas estão participando de forma articulada e ativa, nem todas as partes do sistema estão ou são interoperáveis.
As transformações no papel da biblioteca
Assim, lembro aos envolvidos e às pouquíssimas pessoas que, de fato, terão acesso a este escrito que, diante da falta de espaços públicos de leitura, da falta de bibliotecas públicas condizentes com o século XXI, de repetidos e legítimos diagnósticos, em que foram e são apresentados indicadores que representam uma cidade permeada por uma cultura pobre de leitura e escrita, a política também surge como solução. Cansamos, queremos mudar?
Penso eu que, de fato, alguns problemas ultrapassam as fronteiras recifenses e podem ser identificadas, avaliadas, debatidas e solucionadas nos espaços de outras cidades brasileiras. Sabemos que desde os remotos tempos em que foram registrados e guardados os primeiros escritos humanos, até os dias atuais em que muito é comentado sobre o fim das bibliotecas físicas ou sobre a ressignificação do próprio termo “biblioteca”, o papel social das bibliotecas sofreu, sofre e sofrerá transformações.
Em Recife, por exemplo, novas manifestações estão ocorrendo, reuniões com pessoas das mais distintas origens estão sendo feitas com o objetivo de debater sobre os problemas atuais e as ideias para o futuro. De fato, um fórum foi reativado e algumas ações estratégicas priorizam repensar, ressignificar e reconfigurar a biblioteca pública, a leitura e o livro. Por vezes, creio eu, as transformações são concomitantes com as vontades populares, mas, em sua maioria são conflitantes. Até aí tudo bem, se isso acontecesse num espaço de debate público democrático. Infelizmente, sabemos que isso não condiz com o processo histórico brasileiro, em geral, e recifense, em particular.
Foram essas transformações motivadas por razões políticas ou econômicas (estas duas insistem em ser irmãs)? Penso eu, então, que existiu uma dimensão da instituição “biblioteca pública” que sempre escapou aos olhos dos tomadores de decisão (como diria Saramago: “enquanto viam, estavam cegos”), qual seja: a compreensão de uma dimensão política, ou melhor, da necessidade de um projeto político. Esse projeto tem que considerar características como articulação, integração e gestão. Estas, por sua vez, não podem estar pautadas apenas em fluxos de dados e informações por meio de sistemas computacionais interoperáveis o que, sob uma visão operacional, instrumental e tecnológica é válida, mas, sobretudo, naquilo que fundamenta as realidades sociais concretas.
Em que pesem as idiossincrasias de cada local, e, assim, a de cada biblioteca pública, esse fundamento pode ser considerado como a intenção de, continuamente, reinventar esse espaço público, com o intuito de não apenas sanar as mazelas de letramento de um indivíduo ou de um coletivo, mas, também, de proporcionar as condições de possibilidades de educação cívica-cidadã continuada, sistemática e crítica, assim contribuindo para que as transformações transcendam a biblioteca pública propriamente dita, e encontre fixação nas pessoas, por meio de suas inter-relações e intersubjetividades.
A ideia, enfim, é que ampliemos a visão sobre essa milenar instituição para que ultrapassemos as ações que, não sem mérito, tinham ou ainda têm como objetivo suplantar o que fazem as escolas (complemento de educação escolar ou pesquisa acadêmica), ou aquilo que é oferecido ao cidadão em momentos de lazer e entretenimento (complemento cultural). Essa visão, por meio de um Planejamento Estratégico situado num Projeto Político de Biblioteca Pública, precisa ser superada e transformada no sentido de possibilitar que um olhar renovado, ético e respeitoso emerja.
Ressignificando a biblioteca pública
Sejam as bibliotecas nomeadas como tal ou sejam denominadas de “espaços públicos de convivência”, o que está em jogo é uma disputa de poder que não pode encontrar eco nos processos pretéritos. Não basta que um profissional da política gerencie a transformação: isso, de certo, resultará no continumm do status quo. Não basta que um pesquisador ou um punhado de profissionais, com ajuda de um pequeno grupo de estudantes tomem as rédeas de uma linda trajetória idealizada, mas sem direcionamento concreto.
É dever de cada cidadão participar e colaborar, na medida em que couber a cada um, para que a biblioteca pública, por meio de um projeto político que integre a articule todas as pessoas e instituições envolvidas, transgrida seu lugar comum, sua apatia, seu conformismo, sua passividade e opacidade. Existe, concretamente, uma oportunidade para que cada cidadão e, por conseguinte, o coletivo social, ressignifique a biblioteca pública e a reconstrua, de forma que seu fundamento seja pautado numa autonomia organizacional e, sobretudo, na possibilidade de oferecer um contínuo processo de construção de cidadania. Estamos vivendo um período histórico em que a transparência, finalmente, faz sentido. Ela não pode mais ser refém do Estado e dos discursos políticos vazios, cínicos.
A ressignificada biblioteca pública é um dos pilares que, por meio da formulação de políticas públicas e renovados costumes informacionais, permitirá a emergência de uma visibilidade ética dos cidadãos sobre o Estado e as instituições que o constituem. Urge que as bibliotecas públicas municipais e estaduais, assim como a Nacional, sejam visíveis aos renovados olhares dos sujeitos contemporâneos, mas, também, entre si. É isso.