Qual o lugar do corpo na cultura? Melhor, qual o lugar do corpo na cultura ocidental? A quem interessa o discurso da corporeidade? Que fascínio e que horror o corpo pode gerar sobre os homens? Por que o corpo nu incomoda tanto? Motivo de fascínio pela pintura e escultura, matéria prima do ator, do cantor e do performer, o corpo não consegue se libertar dos estigmas milenares de uma cultura de ódio. Por que temos tanto horror ao que é a casa do homem na terra? Receptá-lo da alma, o corpo se vê atacado constantemente. E brada, estrebucha, mói e remói uma dor. O corpo grita: “o que querem de mim vocês que não são nada neste mundo sem mim? Hipócritas!”
Quando ataques de toda ordem são perpetrados contra o corpo em estado de arte – por isso, político – é preciso que nos questionemos o que há por trás disso, uma vez que “o homem foi sempre simultaneamente o corpo que pensa e o corpo que ele pensa, o corpo que é e o corpo que tem”[1]. O corpo tem uma história que não pode ser negligenciada ou escamoteada. Portanto, é preciso assumir a incorporação da humanidade, esse ente que só se concretiza individualmente no sujeito que é corpo. Não se pode deixar de lado que o corpo pode ser representado, sentido, teologado, filosofado, escrito, constrangido, regulado, libertado… Escolha como quer mostrar o corpo, porque enquanto conceito, o corpo nada mais é do que escolha individual.
E por que o nu incomoda tanto? Por que a nudez é comparada ao grotesco e à feiura? A alma é sempre nua para o sujeito que condena. Ele não pode se libertar dos fantasmas (esses sim, grotescos) que povoam seu espírito atormentado pelo que ele desconhece mas julga conhecer. O nu incomoda não por ser feio, nojento ou incitar a libido. Imagina! Ninguém nasce vestido, nenhuma mulher dá à luz de vestido. O tempo de transar vestido também já passou. Estamos há dois séculos disso. O nu incomoda exatamente porque, quando não está a serviço do ato sexual, expõe o que somos a quem nos olha: carne, ossos, pelos. Animais, ainda que pensantes, animais. E perecíveis.
Num instigante texto sobre nudez, Giorgio Agamben[2] parte da análise de uma performance elaborada pela artista italiana Vanessa Beecroft com corpos de mulheres nuas expostos numa galeria de arte em Berlim, e empreende uma reflexão a partir do mito do pecado original segundo o livro de Gênesis para dizer que o cristianismo nunca imaginou o corpo nu, ainda que o mito do pecado mostre que Adão e Eva “viram que estavam nus e sentiram vergonha”. É uma teologia das vestes o que Agamben discute. Assim, os primeiros homens, mitologicamente falando, nunca estiveram despidos, mas usavam antes do pecado uma veste de luz que lhes foi retirada com a transgressão.
E o nu entra para a história como símbolo do abjeto, daquilo que deve ser envergonhado e constrangido. O corpo leva a fama de maldoso por causa do pensamento. Mas basta uma leitura atenta do mito (mito é para ser interpretado, não concebido como fato) para perceber que o nu é resultado da curiosidade de Eva diante da cerca ilusória que o criador erguera para que o casal não bisbilhotasse a árvore do conhecimento. Sim, somos nus porque fomos atrás do conhecimento. Está no mito. Quem tiver ouvidos e olhos que escute e olhe. Essa foi a primeira transgressão. Santa transgressão.
Ao analisar a performance na Neue Nationalgalerie, Agamben diz que as mulheres nuas no centro da sala, vestidas com túnicas transparentes, seriam a própria configuração de anjos justiceiros que, do alto de sua nudez, encaram os homens vestidos como se lhes dissessem: “vocês continuam nus, ainda que usem essas roupas; vocês têm desejo, ainda que inibidos pelos tecidos; vocês não passam de figuras atormentadas por um pensamento que quer se livrar daquilo que não pode, o corpo. Reconheçam!”. Além de fazer uma exegese não apenas do texto sagrado, mas do modo com a teologia cristã o interpretou, Agamben é enfático:
A nudez do corpo humano é a sua imagem, isto é, o tremor que o torna cognoscível, mas que permanece, em si, inapreensível. Daí o fascínio totalmente especial que as imagens exercem sobre a mente humana. E precisamente porque a imagem não é a coisa, mas a sua cognoscibilidade (a sua nudez), não manifesta nem significa a coisa; e, todavia, visto que não é mais do que o doar-se da coisa ao conhecimento, o seu despir-se das vestes que a cobrem, a nudez não é diferente da coisa, ela é a própria coisa.[3]
De que é mesmo que o homem tem medo quando se depara com uma situação performática com o outro nu? Tem medo de enxergar. O nu na arte da performance tem uma função de provocar o outro para o texto que somos. Me leia. Da cabeça aos pés, nu, como vim ao mundo, me leia. Não diga nada depois. Apenas reflita o que é o homem fora das vestimentas. O que é o homem fora da falsa proteção das roupas. O que é o homem despido da cultura do vestir? Ele deixa de ser homem ao ficar pelado? E qual a natureza de um nu num espaço como o museu? Ou a praça pública? Não haverá aí uma ação política?
A performance é uma arte muito nova realmente. Mas ela veio para questionar o valor da arte como beleza, como verdade e fora do corpo. Quando o corpo deixa de ser só o que produz a arte e passa a ser a tela, é preciso pensar que cada dobra de pele, cada pelo, cada veia, cada marca de osso, cada membro (inclusive aqueles de quem temos tanto medo, o pênis, o saco escrotal, a vagina, o cu, a bunda, os peitos) passa a cumprir um papel que não diz mais respeito somente ao fisiológico, por um lado, ou ao erótico, por outro. Quem estuda performance, seja ela social, política ou artística, sabe disso. Ela desloca o olhar acostumado do observador para o jogo de ser e não ser, ou seja, “dentro da estrutura do jogo, o performer não é ele mesmo (por causa das operações de ilusão), mas também não é não-si-mesmo (por causa das operações de realidade). O performer e a audiência, do mesmo modo, operam num mundo de dupla consciência”[4]. Entretanto, a audiência precisa pensar, coisa que parece não ser muito a prática operante de quem já tem um juízo de valor sobre o que vê. Pais que levam seus filhos a uma exposição onde o nu será apresentado em pintura, escultura ou em performance serão tão estúpidos e insanos? Creio que existe no seio dessa família algo que tem faltado a muitas por aí: conversa, diálogo, discussão sobre o valor político da arte.
O problema é que o nu provoca o olhar do moralista, fazendo com que ele tenha raiva de ser o que é: animal que pensa, ainda que nu. Quando o corpo é a única tela que o artista tem, com o qual ele elabora plasticamente uma ação de intervenção no mundo, ao espectador exige-se se colocar em estado de leitura. Mas como ler um corpo? Como perceber que o nu não tem um significado vazio, mas está repleto de elementos culturais? É verdade que não se pode exigir muito daqueles que fizeram da agressão verbal sua marca de hipocrisia. Não se pode esperar que um hipócrita abra os olhos para o que ele não quer ver: a imoralidade que está nele mesmo. Não se pode exigir de uma gente raivosa outro comportamento que não seja uma atuação para interdição do que não compreende.
Embora eu não professe mais nenhuma religião, alguns dos homens e mulheres que a igreja canonizou me ensinam um bocado sobre a arte da transgressão. E nesse mês, no dia 4 de outubro, festeja-se Francisco, o poverello de Assis, que decidiu largar mão da riqueza, do prestígio e da fama de moço mulherengo para abraçar a pobreza. E como ele fez isso? Ficando nu em pelo na praça pública, diante dos pais, do bispo e dos transeuntes. No instante em que Francisco abdicou do poder e da riqueza do pai, Pietro Bernardone, um comerciante de finos tecidos, soube que havia perdido o filho para a santa pobreza.
A performance de Francisco ilustra perfeitamente o ditado popular segundo o qual “o hábito não faz o frade”; é óbvio que a palavra hábito significa menos vestimenta do corpo do que “modo de ser ou agir”, ou, como demonstra Giorgio Agamben no belíssimo livro Altíssima pobreza: regras monásticas e formas de vida[5], sobre a veste do monge repousa toda uma simbologia a respeito da regra de vida consagrada a uma causa da qual são testemunhas textos, iconografias e a própria vestimenta. Entretanto, ao se despir, Francisco chamou a atenção para outro modo de ser: desnudou o mundo ao ficar nu, tirou do corpo o sentido histórico da vergonha e jogou sobre ele a moral dos que não se envergonham da nudez que ensina. Eis o sentido da “perfeita alegria” que o Francisco nu ou aos farrapos cantava com um graveto a modo de violino pelos campos do Senhor. Estaria louco ou possuído pela loucura lúcida que afronta os covardes?
Louco do Senhor, como era chamado por uns, ou palhaço do Senhor, como era chamado por outros, a lição de Francisco chega até nós, cristãos ou não cristãos, crentes ou ateus, e nos ajuda a refletir sobre um mundo tão hostil que criamos para nos amordaçar, seja em nome do que cremos, seja em nome do que julgamos saber. É o caso dos inúmeros acessos de ira movidos contra a arte nos últimos dias. Retirando imagens do contexto para o qual elas foram elaboradas – o museu, a galeria de arte – grupos conservadores, sabendo que o povo brasileiro tem uma formação cristã ainda que de base catequética apenas, e não costuma ter acesso a uma formação estética nem na escola nem em visitas a centros culturais, grupos conservadores têm incitado o ódio à nudez artística. De repente, as redes sociais se tornam um ringue esquizofrênico de lutadores que nunca pisaram numa galeria, mas se julgam no direito e no dever de serem justiceiros. Falam em nome da família, da escola, da igreja e até do seu Deus.
Se Francisco vivesse hoje e repetisse o que fez em praça pública em Assis, seria acusado de pedólatra, de imoral, pervertido. Se não fosse julgado por atentar contra a moral, talvez os justiceiros do Senhor fariam justiça com as próprias mãos apedrejando-o. Depois, sem sequer lavar as mãos, iriam para suas casas e, diante da mesa, rezariam um Pai-Nosso pedindo que o Senhor os livrasse do mal, amém.
Louvada seja a tua coragem, Francisco! Respeito e admiro a memória deste homem que transgrediu uma norma e pela sua nudez deu um exemplo sobretudo para a igreja do seu tempo. Estamos falando da Idade Média (século XII). O direito ao uso e não à propriedade parece ir ao encontro do pensamento marxista que, séculos depois, questiona o direito do homem de acumular e egoisticamente viver segundo a lógica do ter. A nudez de Francisco é um exemplo também dessa atitude política que se coloca diante do mundo na certeza de que nada se leva dele com a morte. Vestidos ou nus, crendo ou não, haveremos de nos tornar corpo putrefato, seco, pó, nada. A nudez, de repente, pode ser uma grande mestra!
[1] BRAUNSTEIN, Florence; PÉPIN, Jean-François. O lugar do corpo na cultura ocidental. Tradução João Duarte Silva. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 11.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 87-130.
[3] Agamben, 2014, p. 121.
[4] CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Tradução Thaís Flores Nogueira Diniz e Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 2010, p. 66-67.
[5] Agamben, Giorgio. Altíssima pobreza. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. O texto de Agamben historiciza a vida monástica do século II ao século XII, não se limitando a ser um estudo franciscano, mas chegando àquele que fez de sua vida uma renúncia ao abraçar a pobreza.