Rhuann Fernandes é Cientista Social e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Com pesquisas nas áreas de Sociologia das Emoções, Sociologia da Família e Estudos Africanos, escreveu seu primeiro livro, intitulado de: Casamento tradicional bantu: o lobolo no sul de Moçambique (2020), fruto de um estudo extenso que resultou em sua monografia de graduação em Ciências Sociais, após ficar sete meses no sul da República de Moçambique para observar e  compreender os rituais associados ao “Lobolo”, rito tradicional que une conjugadamente duas pessoas e o universo histórico dos antepassados numa relação complexa de parentesco.

Em seguida, no mestrado, resolveu investigar o universo não-monogâmico no contexto brasileiro, justamente pelo fato de ter sido impactado pelas experiências que viveu em Moçambique. “Fiquei, então, instigado a investigar a maneira pela qual pessoas do meu grupo racial não estavam se relacionando monogamicamente, além de indagar-lhes de que modo, em outros arranjos afetivos, elas pensam a si próprias e veem o amor”, escreve.

Em continuidade a essa pesquisa, Rhuan Fernandes acaba de lançar um primoroso trabalho de pesquisa sobre a cultura afetiva de pessoas negras, o seu segundo livro: Negritude e não monogamia: as micropolíticas do amor, com base em um projeto de não monogamia e a produção de novos significados para a família, a sexualidade e o amor.

1) Como surgiu a ideia de pesquisar a respeito das micropolíticas do amor e da não monogamia entre negros?

Bem, essa ideia surgiu após a minha ida a Moçambique, quando ainda estava na graduação. Quer dizer, em alguma medida, sinto que dei continuidade à trajetória de pesquisa iniciada na graduação em Ciências Sociais, em 2018, que envolve estudos sobre emoções, relações amorosas, casamento e espiritualidade. Naquele primeiro momento, como te expliquei em nossa última entrevista, realizei, durante sete meses, um trabalho de campo no sul de Moçambique, com bolsa de intercâmbio de graduação concedida pela Diretoria de Cooperação Internacional da UERJ (DCI). Lá, testemunhei diversos rituais associados ao lobolo, casamento costumeiro e recorrente na localidade, em que a prática fundamental consiste em dar bens à família da noiva para realizar uma união reconhecida entre os parentes do noivo e os da noiva. Procura-se, por intermédio do lobolo, uma harmonia social: a comunicação entre os vivos e os seus antepassados, na qual é estabelecida uma garantia material do vínculo espiritual. Discuti, então, temas como intimidade e relações amorosas, conjugalidades, parentalidade, espiritualidade e sincretismo no sul de Moçambique. Por conta disso, em seguida, no mestrado, resolvi investigar o universo não-monogâmico no contexto brasileiro, justamente pelo fato de ter sido impactado pelas experiências que tive em Moçambique, onde a “noção de pessoa” e, consequentemente, a definição de amor são muito diferentes do contexto de minhas vivências no Brasil. Fiquei, então, instigado a investigar a maneira pela qual pessoas do meu grupo racial não estavam se relacionando monogamicamente, além de indagar-lhes de que modo, em outros arranjos afetivos, elas pensam a si próprias e veem o amor. Essa investigação foi realizada em um grupo privado do Facebook denominado Afrodengo – Amores Livres, que conta com 991 membros e é voltado apenas para pessoas negras.

2) A não monogamia ainda é vista como um tabu na sociedade brasileira? Ainda existem preconceitos a respeito dessa temática?

Sem dúvidas. No universo acadêmico não encontrei dificuldades para falar sobre o tema. O problema mesmo foi referências que trabalhassem não monogamia e negritude ou a vivência de sujeitos negros neste arranjo amoroso. Não havia. Ao menos, não estritamente abordando somente sujeitos negros, com foco em relações monorraciais (entre pessoas negras). Essa ausência, inicialmente, foi difícil de superar. Mas, a bagagem que tinha de outros trabalhos, voltados aos estudos das relações raciais, me facilitou no processo. Daí, veio esse “filho”, algo inovador, já que é o primeiro trabalho a pensar a correlação entre dois fenômenos complexos.

Agora, o preconceito a gente vê quando comento publicamente sobre o tema, quando dou entrevistas e elas são publicadas nos sites. Se você conferir os comentários, é bizarro. Comentários como “traição legalizada”, “putaria”, entre outros, é recorrente. A meu ver, a motivação do preconceito, a princípio, é simples: a não monogamia é um modelo relacional que procura se afirmar como mais igualitário que a monogamia, pelo fato de não privilegiar os desejos masculinos e visar a uma ética que procura combater o machismo e fazer com que tanto homens quanto mulheres amem e se relacionem sexualmente do modo que almejarem. Ou seja, o ponto é que não possui ligação estreita com a heterossexualidade, com aquele casal padrão (um homem, uma mulher, dois filhos e um cachorro e o desejo de viverem eternamente juntos). Na verdade, a sexualidade do sujeito é um fator preponderante que precisa ser celebrado como parte constitutiva do próprio relacionamento amoroso, associando-se à identidade e à autonomia pessoal. Lógico que isso incomoda o ideal conservador de família, totalmente moralizado entre nós. Daí, repudia-se, por exemplo, três mulheres juntas, três homens juntos, dois homens e uma mulher, duas mulheres ou mais e um homem, pois quebra com uma convenção. O preconceito vem dessa quebra.

É importante fazer uma ressalva rápida: o caráter crítico e igualitário da não monogamia — que procura desfazer as hierarquias de gênero e sexualidade existentes, pontuar a “masculinidade problemática” e fazer com que as relações sexuais e o prazer, de modo geral, não mais girem em torno do falo masculino — não impede que, nesse formato de relação, tais aspectos deixem de existir, isso é bom salientar aqui, para não idealizarmos esse modelo.

3) Quais são os impasses para que uma pessoa negra se afirme como não monogâmica na sociedade brasileira?

Poderia enumerar vários fatores, mas vou focar na quebra de exclusividade de afeto, pois envolve a dinâmica relacional em questão e o aspecto racial. Bem, pessoas negras, em suas trajetórias, carregam consigo a insegurança, advinda de histórias de preterimento afetivo, por não terem tido, em suas vivências, uma relação saudável ou experiências amorosas significativas. Quebrar a exclusividade, com o ideal de amor romântico, da família da margarina, uma vez que essa pessoa não teve essa experiência, é, no mínimo, conflituoso. Imagina, você se desfazer de algo que você não teve acesso e procurar encarar, de modo aberto, uma relação não monogâmica? Que tem, sobretudo, uma “incerteza”, que não trabalha com garantias fixas e rígidas… é difícil, inicialmente, essa pessoa assimilar este arranjo por isso, ela começa a pensar que não é para ela, que ela não tem uma autoestima de pessoas brancas. O quadro vem mudando um pouco mais agora porque há referências, há pessoas negras publicamente falando sobre isso, sobre a possibilidade de construir família de um modo não tradicional. A presença de referências negras ajuda, mas antes, uns seis, oito anos atrás, isso era uma dificuldade.

Outro ponto é que, ao assumirem-se não monogâmicos e colocarem em prática a não monogamia, os entrevistados da minha pesquisa elencaram situações e argumentos constrangedores que são direcionados a eles por amigos e familiares, comentando sobre as dificuldades iniciais da socialização e suas negociações em torno delas. Em qualquer conversa, quando falam como pensam e praticam suas relações amorosas, o que mais ouvem de outras pessoas é “Ah não, eu não conseguiria”. Se essas pessoas tivessem que desenhar um gráfico com os comentários que mais escutaram em suas trajetórias não monogâmicas, elegeriam essa resposta. Notei que esse comentário é acompanhado de duas considerações “eu não conseguiria estar com outra pessoa” e “eu não conseguiria ver/imaginar a pessoa que eu amo tendo relações afetivo-sexuais com terceiros”.

Tal proposição é baseada no mito da exclusividade, havendo também uma confusão em relação à não monogamia: achar que existe na não monogamia obrigatoriedade que determina o seu envolvimento com uma ou mais pessoas. Esse olhar equivocado das pessoas quanto à não monogamia como algo reduzido à solteirice, superficial e focado apenas no sexo, atrai muitos aventureiros descompromissados com a causa política do arranjo e isso faz muitas pessoas, sobretudo negras, sofrerem, pois, esses aventureiros não querem ter uma responsabilidade no interior das relações que desenvolvem com corpos dissidentes. Esse também é um dos impasses. Note, que o que listei aqui, giram em torno da ideia de exclusividade afetivo-sexual exigida nas relações monogâmicas.

4) Para quem tiver o interesse em adquirir seu livro, onde encontrar?

Meu livro, financiado pela FAPERJ, está disponível no site da editora autografia e na Amazon. Além disso, as pessoas podem encontrar na Blooks Livraria, Livraria Casa da Árvore e Livraria EdUERJ. Agora, caso queiram autografado, com marca página personalizado, basta entrar em contato comigo pelo Instagram @rhuannfernandes. Em todos esses espaços, o livro está saindo a R$62 (sem o frete).

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