“Moro, num país tropical, abençoado por deus…”, quem nunca ouviu ou não cantou esta frase de uma das músicas mais executadas no país, sobretudo nas festas do rei Momo!? Esse fragmento da canção de Jorge Ben Jor me ajudará a construir o raciocínio que pretendo tecer neste texto. E antes que as pedras virtuais comecem a cair sobre mim, convido você a ler o texto até o final; é rapidinho, eu prometo!

Desde que os portugueses chegaram aqui (chegaram e invadiram), a relação da religião cristã com o que viria a ser Brasil foi se estreitando, de tal sorte que o primeiro nome da terra já habitada e falsamente descoberta se chamou Terra de Vera Cruz. Essa relação religião x país perdurou fortemente até o golpe (e quantos golpes) que resultou na Proclamação da República em finais do século XIX.

O movimento histórico da Proclamação da República ancorou-se em diversos ideais reivindicatórios que davam o tom de protesto por diferentes partes do mundo ocidental, sobretudo os que sacudiram à França pela ocasião da grande revolução liberal chamada de Revolução Francesa.

Os idealistas brasileiros que deram o golpe da República, importaram inúmeras formas de se pensar um Estado renovado. A monarquia e a Igreja foram as mais vilipendiadas, de modo que os representantes do Império foram expulsos antes da chegada do século XX, e fundaram até uma igreja do positivismo, em verdadeira afronta à igreja católica romana, que exercia imenso poder no Brasil.

Mesmo sendo colocada em posição subalterna depois da República proclamada, as ideias (doutrinas) e a influência religiosa, sobretudo cristã, não deixaram de angariar adeptos e ditar as condutas morais e culturais de um país oficialmente laico. Daria para elencar diversos exemplos de como a influência religiosa foi preponderante em vários acontecimentos da história brasileira, e somente no século XX, mas isso lhe cansaria sobremaneira, e não é este o intuito deste texto.

A política brasileira, desde muito tempo, ancora-se em questões caras à população e que pairam sobre o imaginário popular. Uma dessas questões é a religiosa, que goza de forte apoio no país, porém não é qualquer religião: ao falar de religião no Brasil, majoritariamente se remete a religião dos cristãos. Daqueles que deveriam pregar a paz, amor e harmonia!

Eu entendo que certos assuntos deveriam ficar no campo privado, por se tratar de questões que envolvem vontade e decisão particulares. Um desses assuntos é a questão religiosa. Ao escrever o título deste artigo, eu quis provocar mesmo, e espero que você tenha entendido. Em uma democracia laica, não há espaço para um deus; todos os deuses devem ter espaço, ou para ficar melhor, todas as formas religiosas devem ter seu direito de liberdade de culto garantidos, da mesma forma que os não crentes (quem não tem fé religiosa) podem e devem existir e viver livremente nessa democracia.

A Constituição de 1988, entendida por muitos como à Constituição mais democrática da história do país, começa mal a meu ver, logo no seu preâmbulo. Quando faz menção de estar “sob a proteção de Deus”, de qual deus você acredita que à Constituição está falando?! Não há dúvidas de que se fala do deus cristão. Embora tenhamos um contingente significativo de cristãos no nosso país, o Estado brasileiro é laico, e deveria manter-se laico em tudo, principalmente no documento mais importante da República.

No Brasil há umas excepcionalidades que não se encontram em outros lugares do mundo. Há nas casas legislativas brasileiras certas bancadas temáticas que mais parecem concentração de grupos distintos. É um tal de bancada da bala aqui, bancada ruralista por lá, e uma das mais danosas ao ordenamento democrático (no meu entendimento), a chamada bancada evangélica.

Um emaranhado de doutrinas e visões de mundo que deveriam ficar na esfera do privado, mas, como no Brasil a questão religiosa tem vida própria, e poucos são aqueles que vão de encontro a isso e sem medo das ameaças de líderes que se dizem religiosos, a coisa ganha proporções gigantescas.

Certamente você se lembra da campanha presidencial de 2014 e 2018, em que fizeram do tal kit gay uma bandeira de movimentos religiosos contrários aos candidatos do campo progressista. O assunto foi debatido de forma covarde em igrejas e em programas de rádio e televisão, por pessoas que nada tinham a ver com a esfera política.

Partindo do pressuposto que tal afirmação era ilusória, algo plantado para manchar candidaturas, esse tema nem deveria ter espaço no debate político, mas, como você bem sabe, se colocar deus e algo que os seus representantes entendem ser nocivo à doutrinação cristã, vira comoção nacional sem demora.

De dois em dois anos, vemos candidatos que pleiteiam algum cargo político, fazerem verdadeiras peregrinações a templos religiosos, visando ganhar a simpatia dos seus líderes, e cair nas graças do povo de deus. Candidatos que nem acreditam no deus que o povo que ele quer vota, mas como se trata de um rebanho numeroso, muitos lobos se vestem de cordeiro para faturar um voto aqui, outro ali. Com isso, os chamados líderes religiosos se colocam na posição de fiel da balança, entendendo ter influência sobre a decisão soberana e individual do cidadão de escolher os seus representantes.

Vamos supor que os chamados pastores, padres, dentre outros, têm de fato influência sobre a decisão soberana do cidadão escolher seus representantes nas casas legislativas e no poder executivo. Em se confirmando, já seria um atentado contra à Constituição que diz em seu capítulo IV art. 14 que: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei […]”.

Vimos há poucos dias um embate político religioso entre um pastor contra um senador da República. O fato se deu, pois o senador não queria que um indicado pelo presidente para assumir uma cadeira na Suprema Corte do país fosse sabatinado. O pastor, assumindo o papel de protagonista religioso e de assuntos da República, fez uma verdadeira cruzada contra o senador. Em suma, o indicado pelo presidente foi aprovado para assumir à cadeira, sob a alcunha de ser terrivelmente evangélico. O pastor se vangloriou de ter influenciado nisso, e ameaçou o senador de sofrer derrota nas próximas eleições.

O curioso desse embate (para não dizer o triste deste embate) é que ninguém fala nada. Às instituições parecem estar anestesiadas; ninguém reage. Como que um líder religioso pode dizer o que vai e o que não vai acontecer sobre assuntos que dizem respeito à República?! Essas personagens religiosas que ocupam periferias, grandes centros, rádio, televisão e internet foram contempladas por uma letargia das instituições brasileiras, uma verdadeira covardia no que diz respeito a manter questões relacionadas ao mundo privado, no mundo privado!

No mais, vale ressaltar que os fundamentalistas religiosos que tanto causam horror ao Ocidente, principalmente quando temos conhecimento por vídeos da barbárie que eles promovem em seus países, se valem da influência religiosa para submeter uma sociedade inteira aos seus ditames.

O deus deles é considerado como o único, e todos que não gozam da mesma fé, são infiéis, e devem pagar por isso. A teocracia ocidental pode ser implantada através de saudações de paz, a paz do senhor. Não há neste texto aversão a qualquer prática religiosa, nem a falta dela; há sim a observância ao estado laico, em que não há espaço para um deus apenas!

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