O Brasil, último país da banda ocidental do planeta a abolir a escravidão como forma oficial de trabalho, parece ainda querer mais tempo para entender que é preciso dar igualdade de condições para todas as pessoas que moram aqui, não que tenha sido pouco o tempo que esta consciência já deveria estar enraizada no imaginário social brasileiro. Todavia, a condução de políticas oficiais que inviabilizaram os não brancos de participar ativamente da dinâmica social fez com que houvesse um abismo entre quem dentem as prerrogativas sociais e quem foi colocado no lugar de subalternidade.

Não é novembro, mas precisamos falar do povo negro! Inclusive, “passo raiva” quando escolas, propagandas e discursos em rede social só lembram do povo negro no mês de novembro. Aliás, com algumas performasses bem tristes de se vê. Reduzir a representatividade de um povo que nutriu a terra do seu país com sangue, viabilizando altos lucros na balança comercial através do seu sacrifício, é muito mais do que esconder as crueldades cometidas contra esse povo, é silenciar milhões de vozes que foram sequestradas em África para saciar a sanha imperialista do chamado Velho Mundo.

Milhões de pessoas trazidas de África compunham um enorme contingente populacional no Brasil, que se soubesse da sua força numérica, certamente conseguiria melhores êxitos nas tentativas de rebelião e fuga contra o regime ilustrado no cativeiro. O número de pessoas escravizadas em nosso país no período histórico do Império era bem superior ao daqueles que comandavam a nação. Havia por parte desses um medo real de que aqueles soubessem da força que tinham se resolvessem se unir.

Instituições respeitadas na sociedade corroboravam com as crueldades praticadas no período escravocrata brasileiro. Igreja, família, governo usufruíram largamente dos serviços prestados por pessoas que não tinham direitos algum, pelo contrário, se no entendimento dos senhores os escravizados incorriam em delitos, eram penalizados com castigados até mesmo em praça pública, para que servissem de lição e desencorajassem os que pretendiam ir de encontro as normas estabelecidas por cada senhor.

Famílias inteiras eram desestruturadas por iniciativas de senhores e senhoras, que a despeito de manterem uma ordem social pautada em cânones religiosos deturpados, decidiam o futuro de pessoas que possuíam relações sanguíneas, mas que não puderam conviver. Milhares de jovens meninas pretas foram usadas violentamente em pelo menos duas dimensões, psicológica e física, para iniciar futuros senhores de engenhos na vida sexual. Essas meninas não tinham o controle sobre suas vidas, nem ao menos sobre sua virgindade; eram preparadas desde cedo pelas pretas mais velhas, não que fosse da vontade delas, mas por ordem de quem determinava o número e a intensidade dos açoites em seus corpos.

A famosa miscigenação, tão celebradas por alguns, é fruto de violência sexual dos senhores para com suas escravizadas, o que era de conhecimento de todos, ou quase todos. A sociedade que fechou os olhos para as violências cometidas contra os que construíram este país no braço ignorou que tais pessoas precisavam de auxílio quando, enfim, acabou a instituição escravidão como forma de trabalho oficial da nação.

Da noite para o dia, sem ao menos uma preparação, por menor que ela fosse, milhões de pessoas foram “libertas do cativeiro”. O que fazer num mundo em que se organizavam forças que entendiam a relação de trabalho como algo livre, sem ao menos ter experimentado o que era liberdade ao longo da vida? Pessoas que nasceram no cativeiro tinham agora a sensação de viver livre, sem ao menos saber por onde começar a viver essa liberdade, haja vista que não tinham casa, terras e educação formal para conviver num mundo de relações sociais já estabelecidas.

O Império acabou, à República surgiu, e nada de mudança na vida social do povo preto Pelo contrário: não sabendo como fazer para esconder o passado escravocrata que manchava a nação, decidiu-se, de forma oficial, embranquecer o país, e para isso abriram-se as portas da nação para povos vindo da Europa, pois, certamente, pessoas brancas ajudariam no desenvolvimento e progresso do Brasil, ao contrário dos negros que queriam saber de vadiagem, capoeira, feitiçaria e batuques (e aqui contém uma dose homeopática de ironia).

O Brasil não só impediu que pretos e pretas tivessem as mesmas oportunidades que os/as brancos/as, como criou uma cizânia, de modo que tudo o que fosse relacionado com o povo preto, tivesse a pecha de atrasado, animalesco, primitivo, sem importância, exagerado, de pouca serventia, subalterno, marginal, perigoso, contrário ao desenvolvimento da nação. Leis federais proibiam que negros e negras estudassem, jogassem capoeira, cultivassem suas divindades religiosas, e isso, numa perspectiva histórica, foi quase ontem.

Ao olharmos para as chamadas profissões consagradas na sociedade (como, por exemplo, na medicina, no direito e nas engenharias), veremos que o número de pessoas pretas é ínfimo, de tal sorte que ainda hoje, num discurso que me incomoda muito, pode-se ouvir falar que fulana de tal é a primeira pessoa negra a ocupar tal cargo, e por aí vai. Por favor, me digam que ano é hoje, para que falas como essa ainda sejam encardas como normal?!

Centenas de negras e negros falaram, escreveram, cantaram sobre a condição do povo preto no Brasil, mas sempre foram ignoradas e ignorados. A intelectualidade negra sempre produziu teorias relevantes sobre a condição do povo preto na sociedade brasileira, mas, em diversas vezes, ignorada por entenderem que a causa negra não é eivada de fatores que determinam e mereçam pesquisa científica. O curioso é ver que, quando são brancos falando o que negros já falaram há tempos, o discurso tem penetração nos círculos acadêmicos e literários.

Abdias do Nascimento, Neusa Souza Santos, Lélia Gonzales, Milton Gonçalves, Zezé Mota, Sueli Carneiro, dentre tantas e tantos, denunciavam as atrocidades na vida do povo preto no Brasil, desde o sequestro em África, passando pela travessia do Atlântico, a chegada no Novo Mundo, o leilão de corpos pretos que seriam escravizados, a separação de familiares, vida no cativeiro, e toda consequência psiquiosocial que tudo isso acarretou a vida negra até os nossos dias.

Claro que tudo isso foi ignorado quando era uma voz preta a falar, mas quando o agente social branco fala sobre as mesmas coisas, ganha destaque em listas de livros mais vendidos, programas de entrevistas, resenhas em redes sociais. Um caso que serve de ilustração ao que foi supracitado é do historiador Laurentino Gomes. Ao falar de escravidão e toda sua atrocidade, Laurentino ganha um acesso que pessoas pretas não tiveram, mesmo que elas tenham falado sobre a mesma coisa. Com isso quero dizer que a obra do Laurentino não presta?! Pelo contrário, serve-nos de mais um instrumento para desmascarar a tal “democracia racial”, todavia, pessoa pretas não tiveram as mesmas oportunidades de serem ouvidas!

Ouvir desde tenra idade que precisamos mostrar para a sociedade que somos bons, sem fazer alarde e não chamar atenção na rua, portar sempre a cédula de identidade, mesmo não sendo obrigatório o seu uso, já é rotina na vida dos pretos e pretas, infelizmente. Sofremos violência simbólica e física desde sempre, e isso parece ter penetrado na sociedade como algo dado; o que caiu da árvore dos acontecimentos.

Precisamos reivindicar novos espaços, preencher lacunas, mostrar quem somos e como somos. Mostrar cada pedaço de África que há dentro de cada um, pela música, pintura, literatura, artes dramáticas, poesia… Como não param de nos matar, de nos subalternizar, de nos ridicularizar, nós falaremos, brigaremos e nos posicionaremos. É preciso falar do povo preto, e não apenas em novembro!

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