RIO – Assistir filmes com qualidade crítica e a um preço baixo: é isto que o projeto Domingo é dia de Cinema tem proporcionado a cinéfilos e ao público em geral. Nesta entrevista, Leon Diniz, idealizador do projeto, fala um pouco sobre os onze anos do projeto destinado a alunos oriundos de pré-vestibulares comunitários, mas que tem atraído todos os públicos.
Rodolfo Targino: Leon, como surgiu a ideia de criação do projeto Domingo é dia de Cinema?
Leon Diniz: No ano 2000, uma turma da Mangueira [comunidade popular da Zona Norte do Rio], junto com o Marco Aurélio, professor de Biologia, conversou que seria interessante essa galera ir ao cinema. Conseguimos uma sessão ao meio dia lá na Estação Botafogo que era Unibanco, foi até a Felícia quem articulou isso. Foi muito chocante para o pessoal da Mangueira quando saiu; eles eram majoritamente negros e a fila que estava era justamente branca. Sem nenhum preconceito, mas é verdade: o espanto das pessoas nos espantou. Na verdade ninguém estava com medo de nada, mas é exatamente a lógica. As pessoas não tinham essa proximidade com a coisa mais cultural. Então entramos em contato com a Felícia para ver se existia a possibilidade de trazermos essa galera para assistir cinema, que não vai assistir por que não vai pagar quinze, vinte ou trinta reais; não tem grana para ir para Botafogo. Ainda no ano de 2000 decidimos que podia ser feito aqui no Odeon, que é no Centro e aí foi desse jeito. Em uma sessão lá em Botafogo começou a trazer a ideia de ampliar para os pré-vestibulares e tinham vários que já dávamos aulas e chamamos para virem para cá.
R. T.: Como que é mantido o projeto? Vocês têm algum tipo de parceria?
L. D.: Não temos nenhuma parceria. Na verdade a bilheteria vai para o Estação. As apostilas sou eu que faço e são impressas na Assembléia Legislativa (ALERJ), através do deputado Marcelo Freixo. São produzidas mais ou menos quinhentas apostilas por filme. Os cartazes o Oden bancava alguns até uns dois anos atrás, mas agora estamos fazendo por nossa conta.
R. T.: Nesses onze anos de existência do projeto vocês têm alguns frutos. Lá no campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) de São Gonçalo/RJ existe o Sábado é dia de Cinema. Tem alguma relação com o Domingo é dia de Cinema?
L. D.: É, na UERJ está completando um ano agora. Eu também ajudo lá. Tem uma galera que estudou comigo na época do movimento estudantil e me chamaram para criar mais um [projeto]. Ficou sábado, uma vez por mês. Também é interessante por que estamos com o público de São Gonçalo, que também não tem acesso ao cinema. Na UERJ é mais simples: pegamos o filme que escolhemos, convidamos os debatedores e em seguida fazemos à discussão.
R. T.: O tema que vocês trouxeram para a sessão de hoje foi sobre a legalização das drogas, com a exibição do filme Cortina de Fumaça. Você, como professor, ainda acha que é um tabu falar de drogas dentro de sala de aula?
L. D.: Hoje aqui no cinema você viu isso. Eu passei a semana toda debatendo e a dificuldade é muito grande. A questão é se recusar a discutir; você até entende o porquê. Eu vivo no subúrbio, morei minha vida toda em Guadalupe [bairro do subúrbio do Rio] e todo mundo que eu conhecia, de alguma forma, fumava maconha ou estava envolvido com algum tipo de outro crime. Quando eu entrei para a universidade me espantei: “o que é isso?”. O cara pode fumar maconha sendo uma pessoa normal? Essa galera tem muito isso: contato com essa coisa ruim que é o tráfico, que é o cara que está fumando e fazendo “merda”, não necessariamente por que está fumando maconha. Foi uma semana muito difícil. Sempre nos dias que antecede ao filme, eu faço o debate em sala de aula e foi complicado porque na verdade as pessoas de um modo geral têm uma dificuldade muito grande de debater, cheias de medo e de cuidados. E aí há momentos como: “mas se legalizar meu filho vai fumar maconha!”. Mas tá: “a bebida alcoólica ele bebe?”. Não. Então “pô” é difícil. É difícil ir contra esses argumentos. Foi difícil, mas fui.
R. T.: O projeto de vocês apresenta uma abordagem bem legal com exibição de filme e documentários que estão fora do circuito. Por outro lado vocês atuam no Odeon que é um dos poucos cinemas de rua do Rio de Janeiro. Como você avalia essa questão?
L. D.: Isso é central para nós. Não é a toa que mantemos esse projeto. Quem entra aqui e olha para o teto sabe que isso aqui é um cinema e em um lugar chamado Cinelândia, que todos os cinemas já foram para as “cucuias”, viraram bar, igrejas, viraram tudo. Um lugar exatamente que tem esse nome hoje e toda uma lógica de vários cinemas; de debates; uma praça dessa maravilhosa que já foi palco de muitas contestações durante a ditadura militar e apenas um cinema aqui que passa filmes interessantes. A ideia é essa: criar público [de cinema], é trazer esse pessoal. Temos um problema sério: estamos a onze anos dizendo que queremos criar público, mas aí, não se criou cinemas em outros lugares. As pessoas vêm pra cá e depois continuam não tendo dinheiro e nem cinema. Então é um problema isso. Mas tem uma lógica assim, com alunos que estão voltando depois de formados, isso é importante. Temos dificuldade em criar um público maior, porque na verdade não há uma política governamental de criação de público, então continuamos aqui fazendo o papelzinho. Mas essa criação de público não se faz com ingressos custando vinte reais e o pior à distância. A Maré [conjunto de comunidades da Zona Norte do Rio] tem cento e trinta mil moradores e não tem um cinema sequer. Bonsucesso [bairro da Zona Norte do Rio] fica ao lado da Maré e também não tem cinema, então, é difícil fazer um discursinho: “vamos criar público”, mas não se consegue.
R. T.: Nesses onze anos de existência do projeto, você poderia contar uma história ou um fato marcante durante essa trajetória?
L. D.: Hoje mesmo eu estava contando isso: fizemos uma pré-estreia do filme Olga aqui. Foi surreal o que aconteceu. Teve uma pré-estreia aqui, que foi do filme Cidade de Deus, apareceram mais de mil pessoas e não deu problema. A questão de Olga é que se trata de um filme “global” [o filme foi produzido pela Globo Filmes], da Ana Maria Braga… até o Faustão falava de Olga. Abrimos para fazer uma pré-estreia e não tínhamos dinheiro para pagar, então colocamos a entrada sendo um quilo de alimento não perecível. Quando eu cheguei aqui já tinha em torno de umas duzentas pessoas, entrei e fui ver o som. Quando retornei a fila estava chegando à porta do Teatro Municipal, tinham umas duas mil e quinhentas pessoas. Eu me sentindo um próprio revolucionário, peguei uma cadeira e fui lá falar com o povo e tomei um saco de feijão no meio do peito. Ai foi infernal. Pela primeira vez o policial da cabine da Cinelândia ficou ao meu lado e me ofereceu ajuda, fizemos um corredor com grades para organizar a fila e as pessoas empurravam. Mesmo assim o filme foi exibido, com 300 pessoas aqui, sendo que a capacidade do cinema é de 600, mas por precaução colocamos a metade. Para você ter ideia, teve um momento que eu falei que estávamos todos perdidos, aí chegou um cara com um ingresso, mas só que aqui não existe ingresso, o cara tinha um ingresso que ele imprimiu pela internet sem ter a mínima ideia do que era. Enfim, acho que em onze anos eu só não estive presente em uma sessão, porque estava doente, mas nesse tempo foi à única confusão que teve. Sempre tivemos essa lógica do debate; você tem um material interior; você debate, porque cinema é diversão e também é debate. Domingo é dia de cinema e debate. É nesse sentido que há onze anos estamos aí.