“Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar.” A famosa frase de Monteiro Lobato sintetiza quantos e quão fundamentais podem ser os papéis da literatura no desenvolvimento das crianças. As histórias infantis são um divertido e seguro mundo rico em cultura, sentimentos e valores. Enquanto vivem fantasias, os pequenos constroem habilidades afetivas, cognitivas e críticas que podem ajudá-los no caminho rumo ao final feliz em desafios da vida real.
Os benefícios do contato com as narrativas são maiores do que a tradicional familiaridade com a língua. Na tese de doutorado em Psicologia Educacional Percursos da Literatura em Educação – Ensinar  Contando Histórias, defendida este ano na Universidade de Campinas, Fernanda Maria Macahiba Massagardi dedica-se a evidenciar outras finalidades. “A literatura, sendo arte e reflexo de realidades, pode promover tanto a experiência estética quanto favorecer o desenvolvimento intelectual”, aponta a autora.
Para ela, é fundamental que o professor conheça todas as dimensões em que as narrativas podem atuar em uma criança, tanto para promovê-las conforme as necessidades que identifica nos alunos quanto para não estragá-las. O uso das obras como simples instrumento para exercícios pode tirar delas a característica de arte e a capacidade de envolver o leitor ou ouvinte. “Sem consciência, o educador corre o risco de dissecar o texto para usá-lo como exemplo gramatical ou fazer aquela série de perguntas padronizadas para chegar à moral da história que destroem o sentido da literatura”, conceitua.
Sentimentos
Uma das esferas que exigem envolvimento é o crescimento afetivo. Por meio de fantasias, as crianças podem experimentar sentimentos como medo, amor e compaixão que as tornaram pessoas mais confiantes e prontas para lidar com as situações cotidianas. “Quando o menino ouve Os Três Porquinhos, sente o terror pelo lobo, mas de uma maneira fácil de elaborar, pois não pode interferir na escolha dos personagens. Isso o amadurece sem precisar passar por situações traumáticas”, exemplifica Fernanda.
Ela ressalta que as histórias não têm uma receita de sentimentos e conclusões únicas a serem tiradas. As crianças se apropriam das narrativas e as contextualizam de acordo com seu cotidiano e olhar. “Luciano Pavarotti uma vez comentou que a Chapeuzinho Vermelho lhe assustou durante boa parte da infância, já Charles Dickens a descreveu como seu primeiro amor”, comenta. Por conta disso, o ideal é que o adulto conheça um pouco das crianças a quem vai ler ou oferecer um livro.
Silvia Colello, professora de Linguagem e Psicologia da Educação da Universidade de São Paulo explica que, aos poucos, o contato com bruxas, princesas, coisas e animais que falam e outros tantos personagens ampliam a capacidade das crianças de se relacionar. “Elas transpõem seus sentimentos da vida real para as histórias e vice-versa, mesmo que ressignificados. Sabem que não existe príncipe encantado, mas valorizam o cavalheirismo, por exemplo.”
A especialista concorda que a literatura favorece o desenvolvimento nos mais diversos campos e deve fazer parte da vida desde a mais tenra idade. Ela conta que, ao contrário das inquestionáveis finalidades linguísticas, o uso das narrativas pelas funções artísticas chegou a ser criticado por tomar o tempo de aprendizado do mundo concreto com fantasias. “Hoje, sabe-se que é o contrário, quanto mais ela experimenta o faz de conta, mais apta está para as situações reais”, diz.
Capacidade de pensar
Em relação à língua, ao ouvir histórias a criança apropria-se da linguagem escrita, que é diferente da falada, e começa a reconhecer gêneros mesmo sem que a professora os nomeie”, explica Silvia. Se a atividade é frequente e diversificada, ela amplia o vocabulário e ganha a capacidade de fazer antecipações lógicas que facilitarão o entendimento da estrutura dos textos mais tarde. “Essas capacidades cognitivas podem ser aplicadas depois nas mais diversas áreas”, afirma.
Outra finalidade da literatura destacada na tese de Fernanda e que costuma ser pouco explorada é a de desenvolver o pensamento científico. Por causa da divisão dos saberes entre ciências humanas, biológicas e exatas, é comum que se reserve à literatura lugar apenas na primeira das três, mas grandes cientistas comumente foram vorazes leitores desde a infância. Ao aguçar percepção, atenção, memória, raciocínio e imaginação, a fantasia abre o apetite por experimentos reais. “O pensamento lúdico é essencial na prática científica. Carregado de vontade, persistência, descoberta, invenção, questionamento e convicção, deve ser considerado um elo e catalisador das grandes descobertas”, explica.
A autora de livros sobre formação de leitores infantis e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ana Maria Filipouski, vai às origens da literatura para fazer a ligação entre o desenvolvimento científico e a arte de contar histórias. “Nós vivemos esta relação positiva com as narrativas porque elas nos encurvam à condição de pessoas com cultura”, diz. Mesmo antes de aprender a escrita, o homem já contava e cantava fantasias e conhecimentos acumulados sobre o mundo. “É um instrumento usado desde os nossos ancestrais e que nos trouxe ao estágio atual.”
Olhar crítico
No caso específico da tese de Fernanda, o aspecto mais destacado é o desenvolvimento do pensamento crítico. Ela analisa obras de Monteiro Lobato e do irlandês C.S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia, e mostra como as histórias tão queridas pelas crianças são desafiadoras e podem ser a trilha para levá-las a conclusões sobre valores e ética. “Emília, por exemplo, questiona conceitos como verdade e mentira. O professor que promove o debate levará o aluno a concluir ele próprio sobre o valor de cada uma delas.”
Aqui, mais uma vez, é necessário cultivar a sensibilização dos pequenos para obter sucesso. Ao acompanhar as histórias com prazer, o aluno interpreta e recria situações, tornando-se cada vez mais crítico e preparado para lidar com a complexidade. Para Fernanda, a literatura auxilia a criança para que, progressivamente, tenha autonomia para construir seus conhecimentos, entender e sentir o mundo.  “Dá asas em vez de grilhões, liberta o espírito para voos maiores e ilimitados, forma um cidadão em vez de um alienado. É permitir a tomada de consciência por meio da educação do sensível, do alinhavo da razão à experiência estética”, conclui em sua tese.
A autora de livros infantis Maria Augusta de Medeiros, conta impressionar-se com a profundidade de leitura das crianças e as conclusões que tiram sobre as ações das personagens. Segundo ela, é comum que os pequenos leitores deem novos sentidos principalmente a versos em poesia. “As crianças são muito sensíveis ao som, repetem e analisam aquilo pelo mundo delas”, diz exemplificando com o poema Caranguejo-Eremita, em que o animal procura uma casa vazia. “Elas transpõe isso para a própria vida, o lar e a família e dão uma dimensão maior do que eu havia pensado. É incrível.”
Responsabilidade do professor
Para a doutoranda, a responsabilidade de apresentar o prazer de ler e extrair dela o crescimento de que se espera para uma criança é do adulto. “Ela precisa ter a possibilidade não apenas de ler, mas de entender, desvendar, criar e recriar narrativas. É preciso deixar de lado a leitura superficial e adentrar pelo profundo”, afirma Fernanda. Ela ressalta que a obra é complementada pela leitura que se faz dela, carregada ou não de aspectos emocionais.
Silvia Colello ressalta a importância do investimento na criação de vínculos positivos entre as crianças e os livros para que seja um prazer. “É preciso que sempre haja o momento da leitura, mas que ele seja diversificado e atrativo”, explica. Ela conta que em uma pesquisa com estudantes da mesma turma sobre o que mais gostavam durante as narrativas, mostrou como cada um pode se apegar a um aspecto. “Um falou de como esperava a continuação da história a cada dia, outro da imitação que faziam dos personagens mais tarde, outra da luz que a professora acendia para criar um clima e muitos outros aspectos foram observados, mostrando como cada detalhe é importante.”
A escolha das obras pode ter como referência as indicações de faixa etária das editoras, mas deve levar em conta também as características do grupo ou de cada criança. “É preciso bom senso. Fábulas com morte, por exemplo, que para muitos são vistas como algo totalmente mágico, podem ter outros significados para crianças que vivem em ambientes expostos à violência”, explica Fernanda. Na dúvida, ela indica o uso de clássicos. “As histórias mais tradicionais perduram porque são muito ricas e vão se adaptando aos tempos.”
Ana Paula Filipouski acrescenta o aumento nas possibilidades de escolha dos professores por causa do recente fortalecimento de programas nacionais de distribuição de livros. “O educador pode ter muitas limitações em seu trabalho, mas esse é um instrumento riquíssimo e que está cada vez mais disponível.” Mais uma razão para aproveitá-lo.
Bem usada, a literatura é, nas palavras de Fernanda “alimento espiritual que fortalece a personalidade do humano e o faz ver além do óbvio”. Características que ajudarão as crianças a tornar mais ricas suas próprias histórias e a do mundo em que vivem.
Publicado originalmente na Carta Fundamental 

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