Do Brasil247
Em entrevista ao Brasil247, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, afirmou que irá enfrentar as grandes corporações de tecnologia, como o Google, na luta para preservar os direitos autorais dos artistas. O ministro afirmou ainda que a Lei Rouanet, “ovo da serpente do neoliberalismo”, tem que acabar, para que os departamentos de marketing das empresas param de ditar a política cultural com dinheiro público. Confira a parte da entrevista em que ele trata desses temas.
Na área cultural, o sr. tem demonstrado muita preocupação com o direito autoral, diante das novas tecnologias. O que o Minc pode fazer a respeito disso?
Nós estamos preparando novas políticas para as artes. Vamos falar sobre a música, onde houve uma desorganização da indústria fonográfica, pelo desenvolvimento das novas tecnologias e facilidade de reprodução. A internet praticamente detonou a economia da música. Hoje, há uma aparência de que a música popular brasileira está em crise, mas essa imagem é falsa. Nunca se produziu tanto música de qualidade no Brasil – e no Brasil inteiro.
Mas os artistas se mantêm?
Esse é o problema. Alguns só. E que são poucos. Os artistas estão sendo lesados pelas grandes corporações que atuam na internet, como o Google e YouTube, que não pagam direito autoral no Brasil.
E por que não pagam?
Dizem que não existe legislação. Essas empresas ganham trilhões e não pagam nada. Nunca foi tão fácil medir a audiência, como na era da internet. Então é perfeitamente possível criar mecanismos para obrigá-las a remunerar os artistas. O problema é que essas empresas pairam nas nuvens, acima dos estados nacionais.
O que pode ser feito?
O Marco Civil da Internet foi o primeiro passo. Agora, o Ministério da Cultura vai liderar um esforço, debatido com artistas e produtores culturais, para formatar uma legislação que obrigue o pagamento. Tem que ser assim: tocou, pagou.
O órgão arrecadador será o Ecad?
Não, a lei não protege o Ecad e os artistas não querem o mesmo modelo na internet. Deve ser criada uma nova instituição arrecadadora. Hoje, os artistas não ganham porque essas empresas, como Google, Facebook e Youtube, se relacionam apenas com o tribunal da Califórnia. Isso precisa mudar. E às vezes acontecem coisas inacreditáveis, como quando o Facebook censurou uma foto de uma índia, de 1904, que havia sido retirada da página do Minc. Foi aí que eu soube que eles só se relacionam com a justiça americana.
Como obrigar as empresas supranacionais a seguir uma lei nacional do direito autoral?
Nós iremos aos foros internacionais, porque essa ação necessita de uma articulação global para que dê certo. Todos os países europeus já estão enfrentando o Google. Ou seja: há uma reação.
Mas os europeus se movem mais na defesa do direito autoral dos jornais, e não dos artistas.
Os jornais são mais fortes que os artistas, têm mais advogados, mas já há uma reação em defesa dos artistas. Não se pode permitir que essas empresas vampirizem os conteúdos e ganhem bilhões. Hoje, o maior desequilíbrio da balança comercial brasileira, em termos proporcionais, diz respeito ao direito autoral. Nós pagamos todos os direitos autorais em relação ao que vem de fora e não recebemos quase nada. Não há possibilidade de mover a indústria cultural brasileira se não formos capazes de regular a internet.
A política do vale-cultura começa a pegar entre empresas e trabalhadores?
Está funcionando. No início, o vale-refeição teve dificuldade para ser implantado e hoje está disseminado. O vale-cultura está naquela fase inicial, pela qual o vale-refeição passou também. As centrais sindicais já estão propondo colocá-lo nos dissídios, muitos empresários já aceitam, mas nesse período de certa dificuldade econômica, é natural que haja um pouco de cautela. A primeira pesquisa feita sobre a nova classe média revelou que eles não se sentem classe média porque não têm o mesmo acesso à cultura.
Como diriam os Titãs, “a gente não quer só comida, quer comida, diversão e arte”?
Exatamente. Todos querem acesso a bens culturais de qualidade. As pessoas querem crescer e se tornar cidadãos mais complexos. Quem não quer um bônus que dê possibilidade de comprar CDs, livros, entrar no teatro, no cinema? Esse é um benefício facilmente compreensível.
Por que o Ministério da Cultura pretende acabar com a Lei Rouanet?
A Lei Rouanet é o ovo da serpente neoliberal no Brasil. O José Sarney, quando foi presidente, criou a Lei Sarney, que era baseada na renúncia fiscal, mas não permitia 100% de dedução. Teve o mérito de iniciar um processo de ampliação dos recursos para a cultura. Com ele, o empresário tinha que pagar pelo menos 20% para associar sua marca. O Fernando Collor veio e encomendou ao eminente diplomata Sergio Paulo Rouanet uma nova lei. Com ele, surgiu essa renúncia de 100%. Ou seja, a lei que pretendia criar um mecenato garantiu isenção total ao empresário. Ele não coloca nada e fortalece a sua marca. Além disso, há um outro subsídio, que é o volume gasto pelo Ministério para acompanhar esses processos da Lei Rouanet.
Qual é o impacto disso?
A gente gasta cerca de R$ 300 milhões do ano na análise dos pedidos e no acompanhamento das contas dos projetos já aprovados. O governo não só renuncia fiscalmente, como gasta. O que acontece é o seguinte: o Minc aprova, e os que conseguem as cartas de crédito saem para captar. Mas só cerca de 20% conseguem captar. E quem são esses? Os que podem dar retorno de imagem para as empresas. E como a lei é muito ampla, você acaba patrocinando peça da Broadway, ou seja, os que menos precisam. Um dia participei de um evento com diretores de bancos franceses no Brasil. Sabe que me disseram? Que país generoso esse de vocês, que patrocina todos os nossos eventos.
Mas por que é o ovo da serpente do neoliberalismo?
Você pega um dinheiro público e permite que os departamentos de marketing das empresas ditem a política cultural. Eles investem no que pode dar retorno de imagem. Artista que pode ter repercussão na pobreza não interessa. Artista de vanguarda, que está inovando e saindo do gosto majoritário, não interessa. Artistas de estados onde o poder aquisitivo é menor também não interessa. Há uma seleção natural, implícita no modelo, que se confirma nas estatísticas.
O que mostram os números?
Dados alarmantes. Cerca de 90% do dinheiro fica no Sudeste. Destes 90%, 10% em Minas e os outros 80% no Rio e em São Paulo. Desses 80%, 60% ficam nas capitais. E nas capitais são sempre os mesmos que captam.
O sr. vai comprar esta briga?
A briga já está comprada. Uma vez fui ao Senado e um senador do PSDB me questionou. Perguntei de que estado ele era e depois mostrei que sua região recebia ‘0,00alguma coisa’ da Lei Rouanet.
O que será colocado no lugar?
O que existe no mundo inteiro. Um fundo cultural, que recebe este dinheiro, e o aplica seguindo critérios públicos. Ou seja: o Ministério vai aprovar os projetos e também os patrocínios. É preciso lembrar que os recursos da Lei Rouanet representam 80% dos gastos em cultura. Estamos falando de um dinheiro público, aplicado com critérios privados. E isso, obviamente, tem que mudar.
Qual é o volume anual?
Estamos falando de R$ 1,3 bilhão em renúncia fiscal.
Quem é que sustenta politicamente a Lei Rouanet?
Os poucos que têm acesso, assim como os institutos de grandes empresas. Vale lembrar, também, que, graças à Rouanet, as empresas também reduzem seus investimentos próprios em marketing. Porque já fazem marketing com dinheiro público, associando-se aos artistas. Lá atrás, quando falamos pela primeira vez em mudar, o Gil falou uma coisa importante. Disse que, como artista, se sentia privilegiado, porque nunca teve qualquer projeto que enfrentasse dificuldade para captar. Mas afirmou que, como homem público, não poderia defender a continuidade da lei.
Qual é a sua proposta?
A criação de um fundo nacional, com fundos setoriais, e que tenha esses recursos garantidos no orçamento. A área econômica não gosta, porque entra no cálculo do superávit. Mas estamos falando de recursos ínfimos, e que geram negócios. O que eles fazem é uma hipocrisa contábil.
E as empresas? Como participam do financiamento cultural?
Se quiserem associar suas marcas, terão que investir, com recursos próprios, 20% do total do projeto. Acaba a renúncia fiscal. Vamos supor que isso crie uma má vontade e os empresários não invistam. Nesse caso, não perderão nada. Como hoje não investem nada, vão continuar não investindo nada. Zero menos zero é igual a zero. Se quiser ter exposição de marca, paga. É uma lógica capitalista, clara e transparente.
Já passou pela Câmara, colocaram ali umas jabuticabas, mas a minha expectativa é que o Senado as retire. Daqui pro fim do ano, a gente consegue resolver essa questão.