Virou moda nos últimos anos. Um jornalista, esse sujeito que sabe um pouco de tudo e não se apega teoricamente a nada, faz uma série de pesquisas, revira o baú da velha e oficiosa História, descobre picuinhas que foram deixadas de lado pelos historiadores que buscavam pretensiosamente a imparcialidade sobre o fato… É só pegar uma pitadinha de intrigas, outra de fofocas, outra de opiniões contrárias e pronto: teremos um fato antigo vestido numa roupa nova, como se o passado estivesse sempre original diante de nossos olhos.

Virou moda recolher os destroços do passado e, com eles, montar um novo objeto, bem palatável ao gosto do presente. Walter Benjamin, Michel Foucault e, atualmente, Giorgio Agamben, discutem o valor histórico do passado como um não-valor, ou seja, no âmbito do discurso do que é pretérito, a verdadeira imagem desse passado é um relâmpago: “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência”, diz Benjamin, no artigo “Sobre o conceito da História”. É dele ainda a famosa expressão de que é preciso “escovar a história a contrapelo”.  Resistir contra a palavra que reprime e que foi usada para enaltecer o repressor constitui essa escovação. Foucault, por sua vez, mostra a necessidade de percebermos outros espaços que estão inseridos em nossos espaços, uma heterotopia; esse espaço fora de nós é que promove “a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história…” (no artigo “Outros espaços, 1967). Um espaço heterogêneo. Em Infância e História (2008), Agamben traça uma arqueologia da linguagem cuja experiência pura só pode ocorrer na dimensão da infância, ou seja, o homem é sempre um infante para a linguagem. Desse modo, todo discurso, toda linguagem e toda concepção do tempo vêm nos dizer que o passado é uma tênue presença, e qualquer discurso sobre ele é apenas discurso no presente de um tempo indicativo; não é passado, mas recriação. Daí que o discurso historiográfico está a um passo do discurso ficcional, se é que ambos não andaram sempre lado a lado, de mãos dadas ou não. Os historiadores que me perdoem, mas a fronteira entre Literatura e História já foi quebrada há muito tempo. Aliás, o posto alfandegário nunca esteve cerrado, e as trocas e inspeções sempre ocorreram de um lado e do outro da fronteira.

Horror e cartase

Sabemos que a literatura, o cinema e a TV sempre tomaram eventos históricos como suporte para suas produções. Basta pensar um pouco e uma lista de produções baseadas em “fatos reais” enchem qualquer folha. Temas como guerras, revoltas populares, pestes, mudanças políticas, catástrofes naturais enchem qualquer sala de cinema e dão um bom enredo para um romance. A História vira diversão facilmente, ainda que sua narrativa seja do horror (o que é, quase sempre). O horror vira prazer, numa espécie de catarse. Parece que a arte funciona como uma válvula de escape semelhante às apresentações das tragédias gregas, no passado. Suscitando o terror e a piedade na plateia, essas apresentações promovem uma cura.

Enquanto isso, nas escolas, públicas ou particulares, o velho método historiográfico continua prevalecendo, e os alunos precisam pensar nos fatos históricos seguindo à risca a linha cronológica, como se estivessem num picadeiro, precisamente se equilibrando na corda bamba do tempo, prestes a cair. Aulas monótonas cujos assuntos ainda permeiam a veracidade dos fatos, as datas, os heróis, os conflitos, as sucessões. Quem é que vai dizer que minha descrição está ultrapassada? Que o ensino de História mudou? Abra qualquer livro atual e verá a sucessão de eventos, os mesmos de antes, contados do mesmo modo. Só de falar nisso, já estou quase bocejando e admito que sinto prazer em estar longe de qualquer dessas aulas.

Mas devo retomar meu raciocínio e dizer que, nos últimos anos, uma moda tem revirado o discurso da História. É verdade que essa moda não chegou à escola, ainda. Estava falando de livros que fazem questão de tratar a História como um caso jornalístico (ou seria caso de polícia?). Não sei o que pensam os historiadores sobre autores como Eduardo Bueno, Laurentino Gomes e, mais recentemente, Leandro Narloch, todos best-selers com temas sobre a História do Brasil. Livros como A viagem do descobrimento (1998), 1808 (2006) e Guia politicamente incorreto da História do Brasil (2011), respectivamente dos autores mencionados, representam esse novo jeito de resgatar o passado: com ironia, humor e uma linguagem própria do jornalismo.

Interesse pela história

É justamente o Guia politicamente incorreto da História do Brasil o objeto desta resenha. A fórmula pode não ser tão nova, mas funciona que é uma beleza. Na lista dos livros de não-ficção mais vendidos em 2011, segundo o site www.publishnews.com.br, os 1º, 2º e 4º lugares são para os livros 1822, 1808 (do André Laurentino) e o Guia politicamente incorreto. Isso mostra, entre outras coisas, que as pessoas têm interesse, sim, pela História; ela só precisa ser contada sem subterfúgios e com linguagem dita séria. Pois foi isso o que fez o autor do guia. Selecionou temas caros e quase tabus da nossa História, pesquisou artigos recentes, teses, dissertações, matérias jornalísticas, livros. Foi juntando uma curiosidade aqui, uma contradição ali, um mentira acolá e nasceu o guia, numa espécie de almanaque de personalidades históricas, vinte e quatro na nova versão ampliada do livro. Índios, bandeirantes, escravos, imperadores, cangaceiros, escritores, líderes políticos, entre outros, desfilam na passarela barroco-tropical do livro. A própria capa já nos diz que uma banda vai passar nessa avenida, uma banda verde-amarelo que poderia se chamar de “Unidos do Pau-Brasil”. Com direito a papagaio, banana, feijoada, os personagens parecem posar para uma foto oficial em plena selva brasileira. E é a orelha do livro que nos grita em letras garrafais: “Zumbi tinha escravos. Santos Dumont não inventou o avião. João Goulart favorecia empreiteiras. A origem da feijoada é européia. Aleijadinho é um personagem literário. Quem mais matou os índios foram os índios”. Os capítulos são introduzidos em páginas pretas, com ilustrações das personalidades e com o título invertido ou quebrado, aliás, muito sugestiva esse projeto gráfico. Ao final de cada capítulo, o autor apresenta referências, como um texto acadêmico. Quer dizer: uma linguagem nada acadêmica é embasada academicamente.

A pesquisa em tempos de Google

É claro que ao nos depararmos com tanta informação e trivialidades nos perguntamos: “como um autor tão jovem escreve uma obra com tantos dados catalogados?” Em tempos de Google, fica mais fácil fazer pesquisa, juntar dados e depois buscar as fontes. Isso não quer dizer, absolutamente, que o autor não é rigoroso na sua pesquisa. Estou apenas dizendo que a internet facilita a descoberta de textos antes restritos a uma biblioteca ou universidade.

O livro destrona do pedestal da História inúmeros fatos tidos como incontestáveis. Além disso, conduz o leitor a pensar nas intenções do discurso histórico, nas construções com finalidade outra, menos a de expor o fato tal acontecido. É como se alguém chegasse para você e dissesse: “Escuta, a História é outra. Enganaram você, mas tudo tinha um porquê e agora eu quero te abrir os olhos para isso. Não foi bem assim que a banda tocou. A música também é outra”. Logo no início do livro, o autor apresenta um texto cheio de lacunas e propõe que o leitor preencha com nomes entre parênteses ou outros de sua preferência. O resultado é que teremos um texto pré-moldado que serve como esquema para se contar qualquer história. Bingo. O autor toca a ferida do ensino de História. E convida o leitor a ler os demais capítulos com outros olhos. Concordando ou não com esse jeito jornalístico de apresentar o passado, o importante é discutir, é não se fixar no texto como verdade única. Mais importante é o debate que isso suscita. A deliciosa leitura propõe o tempo todo um destronamento da verdade histórica. Que história é essa de que os índios já desmatavam a floresta antes da chegada dos portugueses? Que história é essa de que os portugueses aprenderam a comprar escravos com os próprios africanos? Que história é essa de José de Alencar ter sido contra o fim da escravidão? Que história é essa de que os desfiles das escolas de samba têm um apelo fascista? Que história é essa de que Santos Dumont não inventou o avião e muito menos o relógio de pulso? Que história é essa? Uma leitura que dá prazer justamente passando na cara que nós não sabemos muito de nós mesmos, e o que a escola nos ensinou não tem valor crítico algum. Ensinaram-nos a receber tudo passivamente e a acreditar piamente no discurso histórico.

Para encerrar meu texto, lembro de uma frase de minha mãe, quando ela ainda estava estudando supletivo, já adulta: “Meu filho, não seja bobo: papel recebe tudo o que se escreve nele sem reclamar.” É assim que a História foi escrita em inúmeros compêndios. Nenhum deles reclamou verdade verdadeira. Nenhum deles esbravejou porque estavam cobrindo-o com mentiras. Nenhum deles se recusou a receber os discursos tão parciais da História.

Nosso tempo fragmentado é também tempo de mostrar que o rei (aquele da História) está nu; está nu e caminha ao nosso lado com toda pose. É assim que a banda toca. Viva a Unidos do Pau-Brasil!

Livro: Guia politicamente incorreto da História do Brasil

Autor: Leandro Narloch

Editora: LeYa

Ano da edição: 2011, edição ampliada

páginas: 367

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