Nós, seres humanos, temos grande fascínio por números. Já reparou? Tudo medimos. Temperatura, preços, pressão, inflação, páginas, litros, índices financeiros e pluviométricos, desigualdade, violência, nascimentos, mortes. E muito, muito mais. Eu tenho mais intimidade com palavras do que propriamente com números. Talvez por isso a frase de Einstein ecoe tanto em mim: “nem tudo que conta é contável e nem tudo que é contável conta”.
Sempre que vejo números e percentuais imediatamente penso na vida que pulsa atrás deles e suspeito na boca do estômago se há sabedoria, senso de urgência e focalização para usar aquele recurso disponível em computadores quando a gente trabalha com imagem, sabe? A gente pode escolher entre “enviar para a frente” e “enviar para trás”. Abaixo tem uma imagem para exemplificar:
Bora lá com o lugar onde quero chegar: quando li os dados recém divulgados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2019, realizada pelo Instituto Pro Livro em parceria com o Instituto Itaú Social, olhei, olhei e encasquetei com alguns. Eu acredito que vai interessar a você, tanto quanto interessou a mim, porque trazem pistas, instigantes pistas para pensar as vidas pulsantes por trás dos números sobre os quais tanto lamentamos. No caso, estou convicta de que temos que trazer para a frente dos dados frios as vidas que pulsam no miudinho dos dias, sobrevivendo de acasos e desassistidas de recursos básicos e essenciais para que possam de fato serem sujeitos de suas vidas. Assim faço minha leitura de números, e não é nada diferente do que ocorre quando lemos as palavras, fazendo uso de recortes mentais a partir de nossas experiências, percepções, interesses, inquietudes. E eu, eu sou bastante inquieta .
E oferecem, acredito eu, um sabor extra além do amargo dos dados gerais sobre a queda do número de leituras e mesmo de leitores. Números estes que nem poderiam ser diferentes, afinal. Tudo bem coerente levando em conta que não vimos fazendo o dever de casa para modificá-los em escala nacional, ou seja: realizando política pública atendendo a legislação vigente – como o PNLL, PNLE e PNE – e além. Assim, de retrato em retrato, está tudo como dantes no quartel d’Abrantes.
Eu não quero falar aqui sobre o que não estamos fazendo mas ….vai aqui uma palhinha sobre o fim do prazo de uma lei que pretendia a universalização de bibliotecas em escolas. E o faço em boa parte porque direito não tem prazo de validade. Esta é minha causa há mais de 20 anos e a de muita gente muito antes de mim e muita gente no aqui e no agora. E vamos seguir teimando bibliotecas em todas as escolas do País, preferencialmente abertas às comunidades do entorno, em rede com bibliotecas públicas e comunitárias. Sobre isso tratei no artigo De que livro seu coração precisa hoje?.
A sentença que mais escutamos é que por aqui não se gosta de ler, como se: primeiro, gosto fosse algo inato e, segundo, como se houvesse a opção não ler. Numa sociedade pautada na escrita, saber e gostar de ler não é uma opção, é condição para existir e participar ativamente da vida em sociedade. Vida esta que cada vez mais pede de nós capacidade para superar desafios de todas as ordens, partindo do existencial. Sim, somos uma espécie que naturalmente indaga a vida. Precisa encontrar propósito, porque somos, até onde a Ciência revelou, a única espécie que tem consciência de sua finitude.
Assim escreveu Bartolomeu Campos de Queirós[1]: “Jamais podemos nos outorgar – mesmo apoiados pelas mais avançadas teorias das ciências humanas – a capacidade de mensurar a extensão das emoções vivenciadas e o tamanho dos desejos que pulsam na carne do outro. Podemos, no entanto, afirmar que a necessidade de saber e o espírito criador são inerentes a todos”.
Aqui, neste ponto, evoco dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, edição 2019, para a pergunta O QUE SIGNIFICA LER SEGUNDO NÃO LEITORES: para 47% traz conhecimento, para 24% ensina a viver melhor, para 17% é atividade interessante, para 9% é atividade prazerosa, para 18% traz atualização e crescimento profissional… Ou seja, respondendo à pergunta título deste artigo Em que creem os que não leem: maioria crê que a leitura tem, sim, grande valor. Então por que não estão lendo?
Bartolomeu está certíssimo e nós, como sociedade, estamos falhando miseravelmente em oferecer as condições necessárias para a plena formação leitora de crianças, jovens e adultos. O que podemos e devemos fazer com estes dados? Cruzar com outros para entender como mobilizar conhecimento e forças para colocar ação na massa para superar os desafios. E parar de enxugar gelo!
Vou começar por: temos professoras e professores que não leem e não gostam de ler, que é o equivalente a existirem professores e professoras que não sabem e não gostam de suas profissões, ou não gostam e/ou desconhecem o conteúdo da disciplina que devem lecionar. Ou seja, é imprescindível – e para ontem – atuar fortemente na formação leitora de professoras e professores na graduação, na formação inicial e continuada, uma vez que foram igualmente alijadas e alijados desde a primeira infância do contato com narrativas literárias e históricas.
Tem sido um círculo vicioso isso no Brasil, que precisa ser tratado com coragem, como afirma a professora Monica Correia Batista, da Faculdade de Educação da UFMG, coordenadora do Grupo de Pesquisa e Escrita da Primeira Infância LEPI/FaE/UFMG e pesquisadora do CEALE. “Com raras e honrosas exceções, estudantes que chegam até nós não leram e ninguém leu para elas na primeira infância, não conhecem autores, editoras, e quando passam pela formação em literatura, que é uma disciplina optativa, é impressionante como isso é forte, como se apropriam da ferramenta para sua profissão, passam a entender os livros, a compreender, a ter repertório. É uma disciplina que dá um retorno imediato, maior do que muitas outras”. E faz um destaque: “As universidades públicas são responsáveis pela formação de menos de 20% do(da) futuro(a) professor(a), a maior parte está na rede privada”.
Ela diz e eu concordo plenamente: a formação inicial de professoras e professores é um problema que deve ser tratado nacionalmente. Deve-se investir todos os esforços no sentido de cobrar das universidades a inclusão da obrigatoriedade de disciplinas focadas na formação leitora, a inclusão das narrativas literárias e históricas nos currículos de pedagogia, formação inicial e continuada.
Este tema não é de hoje e tem sido de muitos, há muito tempo. Ouçam a escritora Ana Maria Machado, direto de 2005, durante um seminário promovido pela Unesco, “Sentidos da Educação”[2]: “…não se deve imaginar que uma palestra ocasional sobre a importância da leitura vá fazer efeito. O que nossos docentes precisam… é desenvolver a capacidade de se situarem como partes de uma história e de uma cultura, percebendo-se como personagens de uma narrativa coletiva ou individual em busca de sentido… para aproximar o professor de bons livros não adianta dizer a ele que deve gostar de literatura. Nem fazê-lo se sentir culpado porque não costuma ler bons livros. O que, sim, pode e deve ser feito é facilitar seu convívio com a arte, das condições que possibilitem essa intimidade, tanto na formação dos futuros docentes quanto mais tarde, em serviço, durante sua vida profissional”.
Uma formação leitora robusta e significativa de professores e professoras impactará positivamente em toda a comunidade escolar, melhorando a jornada de quem já é leitor e leitora e, tenho certeza, da comunidade do entorno, envolvendo mais e melhor as famílias, tão importantes na construção de cultura leitora e escritora de crianças e jovens. Impactará em outros aspectos igualmente preocupantes. Um deles é a qualidade da leitura proposta e realizada, porque tão importante quanto ler é como se lê e o que é feito com a leitura realizada. Ampliou horizontes? Ampliou empatia? Ampliou perspectivas e pontos de vista? Ampliou habilidade de argumentação? Habilidade crítica? Ampliou a razão sensível?
A bibliodiversidade é outro ponto central. Olhando a Retratos da Leitura do Brasil, vai ano vem ano, são praticamente os mesmos títulos, os mesmos autores que são citados por estudantes, como também do público em geral. Garantir qualidade, diversidade, representatividade e proporcionalidade no acervo das bibliotecas e propostas de leitura é resultado de uma sólida formação leitora de docentes. Tornando-se mais protagonistas e melhores ouvintes, saberão realizar escolhas tendo em vista a pluralidade de ofertas significativas, que contemplem, inclusive, as demandas do território. Professores e professoras devem ser emancipados para realizarem as escolhas de leituras, sem terceirizá-las, sem se submeterem às imposições e desmanches de políticas públicas, para citar um aspecto tão gritante em nosso País.
Há outras leituras nas entrelinhas da pesquisa que quero comentar. Mas acho importante ir por partes. Dar tempo para não virar para a próxima página com pressa, porque cada item deste desafiador quebra-cabeça é igualmente vital. Por ora deixo a pergunta: como podemos nos mobilizar para que as universidades, públicas e privadas, principalmente as privadas que formam praticamente 80% das(dos) docentes, se responsabilizem com a reflexão sobre a importância de assegurar em seus currículos disciplina obrigatória focada na oferta de uma formação leitora robusta e significativa, de modo que possam de fato apoiar a formação leitora de crianças e jovens nas escolas, mobilizando a força motriz das bibliotecas, sendo resistência aos desmanches das políticas públicas e atores em rede pela criação de planos municipais e estaduais de leitura e escrita (PNLE) e pelo cumprimento do PNE (Plano Nacional de Educação)? Como orientar e mobilizar jovens que pretendem ser professoras(es) para que exijam e/ou selecionem faculdades que ofereçam no currículo disciplina específica relacionada à sua formação leitora, o contato com narrativas históricas e literárias?
Como dizia Bartolomeu: “ao tomar da palavra o leitor se faz mais sujeito, em vez de apenas sujeitar-se”.
[1] Sobre ler, escrever e outros diálogos. Global editora, pág. 90
[2] Balaio, editora Nova Fronteira, pág. 61, 62