Por Paulo Victor Chagas da Agência Brasil

Foi pisando “devagarinho” no chão do samba que ela se tornou rainha de um mundo quase que integralmente masculino. Yvonne da Silva Lara, conhecida como Dona Ivone Lara, desde pequena sabia o dom que carregava, a ancestralidade que representa e já tinha pistas da pioneira que viria a se tornar. Mas não foi sem dificuldades e resistência que ela construiu uma carreira de sucesso e que, aos 95 anos, é reverenciada por onde passa.

Nesta segunda-feira (7), às 17h, no Palácio do Planalto, a sambista vai receber mais uma honraria. A cerimônia da Ordem do Mérito Cultural, principal condecoração anual do governo brasileiro à área da cultura, desta vez vai celebrar o centenário do samba e tem o nome de dona Ivone Lara como a grande homenageada.

Aos 12 anos, órfã de pai e mãe, a criança que já começava a se apaixonar pelo choro e samba compôs Tiê, Tiê, uma música simples que repete a expressão que ouvia de sua avó, filha da escravidão: “Oialá-oxa”. Apesar de ter crescido próxima a músicos e se casado com o filho do dono de sua primeira escola de samba, Prazer da Serrinha, não foram estes os únicos motivos que levaram a jovem Ivone Lara a ganhar projeção.

Obrigada a lidar com o preconceito por ser mulher, ela abriu mão da autoria de suas primeiras composições para que fossem aceitas. Um primo, Mestre Fuleiro, assinava as letras e Ivone Lara, de perto, acompanhava a reação do público. “Ela sabia que se apresentasse as músicas como dela seria rejeitada. Vai pisando nesse chão devagarinho, como ela mesma cantou. Só quando percebe que já tem lugar cativo naquele meio é que se revela compositora”, conta a jornalista Mila Burns, autora do livro Nasci Pra Sonhar e Cantar (2009), sobre a sambista.

E a tática deu certo. Primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba e a criar um samba-enredo, em 1965 ela foi convidada para compor, ao lado de outros dois parceiros, o samba-enredo com a qual a Império Serrano desfilaria no carnaval em homenagem aos 400 anos do Rio de Janeiro.

O samba Os Cinco Bailes da História do Rio, composto por Silas De Oliveira, Dona Ivone Lara e Bacalhau, no Carnaval de 1965, é reconhecido até hoje como um “clássico e um dos mais importantes sambas-enredos”, segundo o professor Edson Farias, doutor em Ciências Sociais e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). De acordo com ele, o próprio fato de fazer parte do grupo de compositores de uma escola de samba que logo cedo ganhou muitos títulos já significava o “prestígio” e a visibilidade que dona Ivone Lara passou a desempenhar no cenário carioca e nacional.

“Na música, e mais especificamente no mundo do samba, os compositores são majoritariamente homens. E esse é um papel importante porque, no Brasil, o compositor goza de um papel de intelectual. Quando Dona Ivone Lara se consagra, e suas músicas de sucesso são cantadas por grandes nomes não só do mundo samba, ela extrapola para um espaço que a princípio era negado às mulheres pelas relações sociais de gênero”, relata.

Nos anos seguintes, a sambista continuou fazendo o que mais gosta, embora não tenha deixado de trabalhar como enfermeira até se aposentar e, enfim, dedicar-se exclusivamente à música. Délcio Carvalho foi seu mais constante parceiro. Ao lado dele e de outros compositores, dona Ivone criou canções que fazem sucesso até hoje e que foram gravadas por diversos intérpretes, como Acreditar (1976), Alguém Me Avisou (1980), Tendência (1981), Nasci para sonhar e cantar (1982), além da clássica Sonho Meu (1978).

“Ela é uma mulher negra, de origem humilde, que foi moradora de favela e, ao se esforçar para ter uma formação escolar e se tornar enfermeira, vai penetrar um espaço também pouco afim para pessoas de origens como ela. Então, Dona Ivone Lara tanto se afirma como um baluarte do samba, como é um personagem importante de identificação para segmentos populares”, explica.

Integrante do Renascença Clube, instituição de resistência cultural que homenageou a sambista com o Troféu Dandara em 2003, Nanci Rosa, 72, destacou a admiração do movimento negro por Dona Ivone Lara. “Ela é, para nós, uma das maiores referências em termos de música de escola de samba, e permanece até os dias atuais. Como mulher, me sinto contemplada em ela ser essa desbravadora da música. O trabalho artístico dela foi muito importante para a gente naquela época”, relembra.

A compositora, cantora, sambista e enfermeira, que registrou experiências de vida e sentimentos em suas criações, também foi imortalizada com o mesmo instrumento: o samba. Canto de Rainha foi uma homenagem preparada por Arlindo Cruz e Sombrinha, Nei Lopes e Cláudio Jorge fizeram a música Senhora da Canção, e Martinho da Vila, não satisfeito, compôs logo duas: Lara e Ivone Lara. No carnaval de 2012, a primeira-dama do samba foi tema do enredo de sua escola, a Império Serrano.

Maria Betânia, Clara Nunes, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Diogo Nogueira, Elba Ramalho, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Vanessa da Mara, Teresa Cristina, Leci Brandão, Paulinho da Viola e Alcione estão entre alguns dos músicos que gravaram canções compostas pela também chamada de “Diva do Samba”.

Apesar das homenagens, condecorações e participações em vários festivais internacionais, o legado de autonomia e pioneirismo que tem deixado ainda não gerou grandes transformações. “Infelizmente não posso dizer que as conquistas dela trouxeram consequências para a sociedade ou o mundo do samba como um todo. Ainda há um caminho muito longo a ser percorrido em ambos”, diz a jornalista Mila Burns.

O professor Edson Farias reconhece que depois de dona Ivone Lara mais mulheres passaram a ser reconhecidas por seus trabalhos na música, mas avalia que a proporção ainda é “discrepante”. “No samba, essa desproporção é muito mais acintosa. No panorama das disputas de sambas-enredos das escolas de samba do Rio de Janeiro, os concursos internos em que se define qual vai ser a música do desfile de Carnaval, você nota que a presença das mulheres nas parceiras é muito insignificante, inclusive diante da presença majoritária das mulheres na escola de samba [em outras posições]. Essa ainda é uma função pouco generosa com a presença das mulheres”, ressalta.

Para Mila Burns, as mulheres que seguiram o exemplo de Dona Ivone Lara na música conquistaram espaço muitas vezes apenas como cantoras e não em composições autorais.

Das 30 personalidades que serão condecoradas na Ordem do Mérito Cultural, apenas oito são mulheres, dentre elas a cantora de samba Clementina de Jesus, que será homenageada em memória. Em comemoração ao Dia Nacional da Cultura, celebrado no último sábado (5), a cerimônia desta noite também vai agraciar representantes de diferentes artes como o artista plástico Vik Muniz e o cineasta Fernando Meireles, além de instituições como o Maracatu Feminino Coração Nazareno e a Fundação Darcy Ribeiro.

“Há muito chão pela frente. O exemplo de Dona Ivone sem dúvida abriu caminho para muitas mulheres talentosas perceberem essas armadilhas e escaparem delas. Mas ainda é preciso que apareçam muitas Donas Ivones para que haja um equilíbrio”, defende a autora do livro sobre a sambista.

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