“Contos Transantropológicos” (Editora Taverna, 2018) é um livro esgotado, que me foi emprestado e me encantou completamente. Começo por aqui, para não criar uma expectativa que será frustrada a quem procurar pelo livro. Por que, então, escrever sobre um livro esgotado?

Há mais coisas entre um pênis e uma vagina,

entre o masculino e o feminino,

entre o homem e a mulher,

do que supões a nossa vã filosofia

Esse trecho de epígrafe da própria autora, que abre o livro, já nos dá um indicativo. Há histórias que precisam ser contadas e comentadas; textos atemporais que precisam ser debatidos e, sinceramente, re-imprimidos (Por favor, Taverna!). Eu não conhecia a editora Taverna, mas o pouco que vi me agradou muito.

Igualmente, não conhecia Atena Beauvoir, autora do livro. É um prazer inenarrável tê-la conhecido por esses textos, ou seja, ter conhecido sua literatura. Apesar de muitas entrevistas e alguns livros, há pouco sobre ela e o verbete a seu respeito na wikipedia, por exemplo, ainda não foi autorizado. No livro consta uma seção “sobre” de uma página.

Eis um extrato:

“Atena Beauvoir Roveda nasceu em 20 de abril de 1991, em Porto Alegre, RS. É escritora, poeta, professora e filósofa (…). Recebeu, no ano de 2016, menção honrosa pela sua atuação em defesa e promoção da dignidade humana de pessoas gays, lésbicas, bissexuais, travestis e trans na cidade de Canoas/RS (…). Participa da Rede Trans Brasil – Rede Nacional de Pessoas Tranas e Redlactrans – Red Latinoamericana y del Caribe de Personas Trans. É autora do livro de poemas Libertê (2018): poesia, filosofia e transantropologia (Nemesis Editora, 2018) e Contos Transantropológicos (Editora Taverna, 2018).”

Os contos ficcionais presentes no livro trazem os personagens de modo tão real, que são quase palpáveis e retratam suas existências de uma forma que eu nunca tinha visto na literatura. Exceto, talvez, pelo livro da Amara Moira, sobre o qual já falei aqui na Biblioo. No entanto, tanto em forma como em conteúdo os livros são profundamente diversos.  

Com referências a deusas gregas e mitologias, espaços urbanos públicos e privados, Atena passeia por cenários ficcionais que bem podiam ser reais e nos desvela um mundo sob um olhar transformador, uma lente necessária às diversas existências, sem acordos escusos com a negociação política da falsa diversidade, que enfia personagens trans sem falas e existências no meio de textos.  

Suas e seus personagens são vivos, pulsam, numa existência que grita…

“Ela era livre dentro de si mesma, mas presa no mundo.

Ele era livre no mundo, mas preso em si mesmo”. (pag. 46)

… Que reivindica seu lugar real no mundo…

“Percebeu que ela, no senso comum, seria taxada como a doente, louca, psicopata, a fora do padrão, a não mulher, mas que ali era mais real que ele.” (pag. 50)

… Que demonstra as fragilidades que caminham tão coladas na força necessária pra existir…

“Sua postura viril e seu vigor juvenil denotavam como a expressão e o símbolo da sua hombridade, mas sua autoconfiança era frágil como uma flor no campo.” (pag. 46)

… Que não se permite sufocar…

Olga respira, não com os pulmões, mas com a existência. “Você não entendeu, amada”, ela responde (…)

– Eu não sou traveco, isso é ofensivo. E não sou uma mulher, isso é indiscutível. Eu sou uma travesti, mesmo que fizesse a racha no meio das pernas, eu diria que sou travesti, pelo simples fato de lutar todos os dias para existir! (pag.33)

Enfim, personagens complexos que se refletem amplamente sobre o existir.

Uma mãe cis pensa nas possibilidades de existência de sua criança:

“Sabia que, se quisesse romper com os paradigmas sociais deveria, junto dessa nova existência que está em seus braços, ajudá-la a criar um existir que ela mesma nunca possuiu. Ela, como mãe, gestou o corpo de um ser humano. Agora esse ser humano deverá, na infância, gestar uma existência toda sua e de ninguém mais. Não será mais um corpo no teatro da inexistência” (pag.37).

Em diversos momentos eu quis ser essas personagens. Quis abraçar o livro e suas personagens. Em outros eu só desejava que vivêssemos num mundo com mais respeito. Eu viajei e vivenciei cada situação, cada experiência de conquista ou dor, e esse é um dos maiores prazeres da literatura para mim: poder viajar com seus personagens e vivenciar suas existências.

“Ser invisível é não ser visto. E o que não é visto não é tocado, não se sente. Não é percebido. Não impressiona. Não tem marca, registro ou história.

A partir do momento em que seres humanos cisgêneros existem, pois são vistos, possuem a possibilidade de produzirem a sua própria história através da arte, da filosofia e da ciência. E nós? Aquelas e aqueles que não querem carregar a história da humanidade que aceita o corpo, a forma, o gênero, o nome, enfim, a vida. O que faremos nós, humanidade transgênera?

Escreveremos.”

A vontade que eu tive, foi a de parar de escrever esse texto e apenas compilar trechos dessa obra incrível, que fala por si.

“Quando a sociedade cisgênera percebe que escrevemos, sem poder matar os nossos livros, eles fecham os olhos e os invisibilizam. São mestres da invisibilidade.

(…)

A produção literária brasileira de autoria trans, segundo o estudo dedicado de Amara Moira, carrega 35 anos de publicações de livros que até o presente ano somam mais de 50 títulos. Perguntemos à humanidade cis: quantas obras escritas por nós eles leram?”

Deixo aqui, então, minha pequena contribuição, um facilitador em forma de listinha que vocês amam, para que acabem as desculpas do desconhecimento ou ausência de acesso.

Três títulos que li e recomendo muitíssimo:

E se eu fosse puta, de Amara Moira, editora Hoo.

Antes que seja tarde pra falar de poesia, publicado sobre o cis-heteronômio Leticia Brito (Tom Grito), editora Malê.

Periférica, de Kika Sena (Sereia Vulcânica), Padê.

Três Perfis para seguir nas redes:

Bioncinha do Brasil, Transmutadora Textilinguistica

Bicha Poética poete, escritore e youtuber

TransPoetas Coletiva, Movimento Artístico Poético Nacional de Transvestigeneres

Você pode acompanhar as publicações da Padê editorial e da Nemesis Editora e a Coluna Transpoetas na Mídia Ninja.  

Aqui, duas listas interessantes de indicações de livros de autoria trans:
Uma do blog Desfalk e outra da Revista Trip.

Ficha técnica

Título: Contos Transantropológicos

Autora: Atena de Beauvoir

Editora: Taverna

ISBN: 978-85-94265-05-0

Ano: 2018

Páginas: 170

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