Com o falecimento do cineasta Nelson Pereira dos Santos, ocorrido há duas semanas, abriu-se uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). Em função disso, iniciou-se uma mobilização na internet, com dois abaixo-assinados virtuais (ver aqui e aqui), para que a escritora Conceição Evaristo, reconhecida pela sua militância em favor da causa negra, seja conduzida ao posto vago.

“Uma das principais expoentes da literatura brasileira, Conceição Evaristo expõe um Brasil ao Brasil de modo cativante, em palavras e narrativa que articulam, como poucos conseguem, simplicidade e refinamento literário. […] Esta é a hora para uma indicação de pessoas negras de grande relevância, produção e contribuição literárias”, diz uma das petições que já havia alcançado quase 10 mil assinaturas até o fechamento dessa reportagem.

Nas redes sociais, diversas personalidades tem se manifestado em favor da escolha de Conceição para ocupar a cedeira cujo o patrono é Castro Alves. “Que fantástica a oportunidade dos membros da Academia Brasileira de Letras terão de enriquecer a literatura brasileira com a eleição da escritora negra Conceição Evaristo para ocupar a cadeira 7, que está vaga”, disse o ex-senador e atual vereador de São Paulo, Eduardo Suplicy na sua conta no Facebook.

O ex-senador e atual vereador de São Paulo Eduardo Suplicy defendende a condução de Conceição Evaristo à ABL. Imagem: reprodução do Facebook

No Instagran a atriz Taís Araújo postou uma foto na qual aparece aparece abraçada à escritora e fez um apelo para que as pessoas assinem uma das petições. “Ela é uma das minhas escritoras favoritas, sou apaixonada pelos seus livros e sua história. Quem não a conhece ainda, tá ai uma ótima oportunidade. Sua vivência e sua obra merecem ser reconhecidas, precisam inspirar tantas outras mulheres a seguir na literatura. Sei que não temos poder de voto, mas podemos manifestar nosso desejo”, disse a atriz.

A atriz Taís Araújo também defendeu a situação de Conceição Evaristo à ABL. Imagem: reprodução do Instagram

Com diversas obras publicadas, entre romances, contos e poemas, Conceição Evaristo é mineira de Belo Horizonte, nascida na Favela do Pendura Saia. Nos estudos só concluiria o Normal aos 25, indo depois para a graduação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-RIO) e doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF).

A escritora lançou em junho de 2016 o livro de contos “Histórias de leves enganos e parecenças” (Editora Malê) e em 2017 teve reeditados todos os seus títulos que estavam fora de catálogo (Ponciá Vicêncio, Becos da Memória, Insubmissas lágrimas de mulheres e Poemas da recordação e outros movimentos), além de ter sido tema da Ocupação do Itaú Cultural (SP) e participado na programação principal da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty. Conceição Evaristo foi agraciada no ano passado com o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura pelo conjunto da sua obra. Também em 2017 ela venceu o Prêmio Faz Diferença na categoria prosa. Já em 2018, a escritora faturou o Prêmio Bravo.

Para Vagner Amaro, bibliotecário e um dos editores de Conceição Evaristo, a trajetória literária da escritora a habilita à ABL. Segundo ele, isso se deve em função da contribuição dada à literatura por ela, seja como escritora, seja como pesquisadora, “principalmente, por trazer com apuro técnico para o seu texto literário as vozes tradicionalmente silenciadas e marginalizadas, a cultura afro-brasileira, a situação das mulheres na nossa sociedade e a atenção que ela dedica a oralidade e a ancestralidade.”

Em entrevista à Biblioo, Amaro explica que a eleição de Conceição Evaristo pode representar um aceno da Academia, indicando que a instituição se importa com este envolvimento popular, possível com as petições online, na sua dinâmica de composição de quadros, com este envolvimento popular com a literatura que ela cultua. Leia a entrevista.

Uma petição virtual pede indicação da Conceição Evaristo para a ABL. O que a eleição dela pode significar para a literatura?

Talvez antes, seja interessante pensarmos o que significa a ABL para a literatura brasileira. A Academia foi fundada em 1897 e no seu discurso de fundação, Machado de Assis afirmou que o objetivo da ABL é garantir a unidade literária. Vale lembrar que do grupo inicial de fundadores muitos eram abolicionistas, mas em toda a história da instituição poucos escritores pretos fizeram parte da ABL. Atualmente a ABL faz um trabalho importante de preservação da língua portuguesa e da literatura brasileira. Mas isso está claro para quem?

É interessante pensarmos que o papel da Academia Brasileira de Letras não é muito perceptível por boa parte dos brasileiros. Então, a existência de duas petições virtuais, uma já com mais de 15 mil assinaturas, para que a Academia considere a candidatura e eleja a escritora Conceição Evaristo já é algo positivo, pois abre um diálogo, mesmo muitos não sabendo exatamente a função da ABL, entendem que ali é, ou ao menos, traz a vocação de ser, um espaço formal de reconhecimento e de destaque para quem faz literatura brasileira. A petição faz também com que muitos passem a se interessar em entender o que é, e para que serve a Academia Brasileira de Letras. Então é muito positivo para ABL.

A eleição da Conceição Evaristo pode representar um aceno da Academia, indicando que a instituição se importa com este envolvimento popular na sua dinâmica de composição de quadros, com este envolvimento popular com a literatura que ela cultua.

Mas o significado principal da eleição para a literatura brasileira é que a trajetória literária da Conceição Evaristo a habilita estar neste espaço de destaque, por sua contribuição para a literatura, como escritora e como pesquisadora, principalmente, por trazer com apuro técnico para o seu texto literário as vozes tradicionalmente silenciadas e marginalizadas, a cultura afro-brasileira, a situação das mulheres na nossa sociedade e a atenção que ela dedica a oralidade e a ancestralidade.

Além disso, Conceição Evaristo é uma pesquisadora, doutora em literatura, com importantes trabalhos publicados. E se não bastante, já existe uma fortuna crítica sobre a sua obra que cresce a cada ano (dissertações, teses, artigos e até livro sobre a obra da autora.)

A ABL é uma instituição bastante fechada. Como iniciativas como essas das podem soar aos imortais?

Torço para que soe com a mesma beleza que o movimento tem. Um movimento espontâneo para que uma escritora faça parte da Academia Brasileira de Letras tem muita beleza, é um arejamento em tempos tão duros e difíceis. São centenas de compartilhamentos no Facebook, postagens de artistas de diversas áreas no Instaram, apoio de celebridades, políticos, professores, escritores, leitores…

É algo muito novo, bonito e merecido, um gesto que vejo motivado por questões que são estéticas (a obra justifica a candidatura), políticas (a representatividade feminina, negra, dos que vieram e/ou estão nas classes populares) e afetivas (da junção da elevada qualidade estético-literária, com a importância das representatividades e a personalidade da autora). Acredito que nenhum outro escritor viveu essa experiência, mas é sempre bom lembrar que a Academia tem seu estatuto e seus rituais.

Vagner Amaro: bibliotecário, jornalista e gestor cultural. Foto: arquivo pessoal.

Vagner Amaro: bibliotecário, jornalista e gestor cultural. Foto: arquivo pessoal.

Sobre a obra da Conceição Evaristo, o que ela representa no cenário literário nacional ainda bastante dominado por homens brancos?

Recebi recentemente a informação que em toda a história do Brasil, tivemos apenas 10 romancistas negras publicadas, o que não quer dizer que apenas 10 escritoras negras escreveram romances. Muitas escreveram, e outras continuam escrevendo, mas não são publicadas. Então, por Conceição Evaristo, além de poeta e contista, ser uma dessas romancistas esta obra já tem alguma importância. Mas é bom destacar que a grande importância de Conceição Evaristo para o cenário da literatura nacional está nos textos que ela nos entrega.

Mesmo lutando contra os efeitos do racismo estrutural, que afeta as oportunidades de inserção no sistema literário, a obra da Conceição Evaristo se sustenta não por ela ser representante de minorias sociais, mas porque ela une talento, estudo, pesquisa, liberdade criativa, consciência crítica, consistência ética e uma atenção com as palavras, com a construção literária, com a oralidade, com a ancestralidade, que lhe garante um estilo próprio, sua assinatura já está gravada na história da literatura brasileira

A escrita de Conceição Evaristo tem se mostrado como um verdadeiro instrumento de militância da questão negra. Como você avalia isso?

Eu não considero a obra da Conceição Evaristo uma obra militante ou panfletária. Ela cria histórias a partir da sua subjetividade de mulher negra na sociedade brasileira. Ocorre que neste universo ficcional que ela cria, há personagens, discursos e temas que geram uma identificação com leitores, que farão uso dos textos como mais lhes fizerem sentido. Então, o leitor se apropria destes textos, vejo muito nas redes sociais: “Nós não escrevemos para adormecer os da casa-grande, pelo contrário, é para acordá-los dos seus sonos injustos”. É lindo! É forte! Mas o convite que eu deixo é: leiam a obra.

São dois romances, três livros de contos e um de poemas, que, na minha impressão de leitor, falam muito das relações de poder e dos seus impactos nas camadas menos favorecidas socialmente, retratam o Brasil com um olhar apurado, mas também falam dos afetos e da ausência deles, e em como tudo isso nos constituiu, compôs nosso modo de viver e faz sermos quem somos.

Como você, um editor dedicado a esse seguimento, enxerga o cenário nacional não só para escritores negros, mas escritores negros que se dedicam à literatura negra?

A maioria dos escritores e das escritoras negras estão editando em editoras pequenas, alguns poucos em médias e outros pagam para publicar as próprias obras. Os livros mais publicados pelo mercado editorial são de homens brancos das regiões Sul e Sudeste, e estes autores abordam realidades muito próximas das que percebem e vivem, seus personagens são brancos, da classe média. Então, a literatura produzida pela maioria dos escritores negros não está no foco de interesse dos grandes investimentos do mercado (distribuidores, livrarias, grandes editoras), embora estejam no foco de interesse dos leitores.

São muitas barreiras. Mesmo quando o autor fura um bloqueio e consegue ser editado, nem todas as livrarias e distribuidoras se interessam em trabalhar com o catálogo de uma “editora negra”. Porém quando se consegue romper estas barreiras, vende-se e bem. A lista de mais vendidos da Flip [Festa Literária Internacional de Paraty] 2017 é um bom indicador disso, a parceria da Malê com a Livraria da Travessa é outro exemplo altamente satisfatório.

Esta literatura ainda vista com certo desinteresse pelo mercado, apresenta personagens negros, estes personagens e narradores protagonizam, refletem, hesitam, tem famílias, conflitos… subjetividades. E embora esta seja uma das características que une esta produção, há uma diversidade imensa, pois cada autor tem sua singularidade, seu estilo, sua trajetória, e faz uma literatura que pode interessar para tipos diversos de leitores.

Se a literatura permite que enriqueçamos nosso ponto de vista a partir de olhares outros para as realidades, quando não lemos a literatura escrita por negros e negras perdemos muito das nossas possibilidades de compreensão e empatia para o meio em que estamos inseridos, um país em que a maioria da população é negra. Então o que há é um empenho de escritores e de editoras como a Malê de trazer as escritas engavetadas, interditadas e torná-las acessíveis, nosso trabalho vem modificando a percepção do mercado sobre a literatura negra. Um mercado que precisa se reinventar, melhorar a produtividade, o cumprimento dos compromissos, o aprimoramento na comunicação e em transparência. Se o mercado melhora, todos ganham.

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