O compositor Aldir Blanc teve seus motivos para criar uma máxima: “O Brasil não conhece o Brasil”. Foi na canção “Querelas do Brasil”, de 1978, que Aldir saiu com essa pérola do nosso desconhecimento. Mais adiante, lá no meio da letra, é que a contundência se torna mais explícita: “o Brasil tá matando o Brasil”. É nessa segunda assertiva que cabe melhor o momento atual.
No pacote de destruição da política, da tentativa de sepultamento da Constituição Cidadã de 1988, do desprezo aos direitos sociais, da erupção de todos nossos fantasmas escravocratas e plutocratas que vêm nos acossando nos últimos anos, se encaixa perfeitamente a desvalorização e o linchamento das nossas expressões culturais e artísticas.
Não tem a ver com gosto, com preferências estéticas. Tem a ver com negação. Antes da obra do artista, vêm a detratação, a desqualificação e o julgamento. É preciso destruir antes de aceitar algo. É a ampliação do recorrente complexo de vira-lata e, na carona desse velho raciocínio, vem como adendo o peso ideológico e a negação de tudo que não caiba nesse mundo limitado.
Chico Buarque é um artista de esquerda (e isso rende quilômetros de discussão). Claro que ele é muito mais que isso, mas como estamos falando de uma guerra ideológica, esse dado é fundamental. Ele nunca negou seu caminho e sempre pagou o preço por assumir seus posicionamentos, que carregam vantagens e desvantagens, amantes e desafetos.
Não é possível dizer que os posicionamentos políticos de Chico Buarque não estejam presentes na sua obra. Essa separação entre estético e político serve apenas para um apaziguamento que só reforça a negação da política como parte de um todo. Mas cabe odiar Chico por ele ser de esquerda?
Chico, nos últimos anos, vem se dedicando muito mais à carreira de escritor do que a de compositor, que o tornou famoso e prestigiado. Não abandonou as letras, apenas mudou de veículo. Foi como escritor que Chico Buarque foi agraciado com o Prêmio Camões de Literatura, na última terça-feira, 21 de maio.
Na rabeira desse anúncio veio uma velha ladainha: “Chico Buarque nunca escreveu suas composições, elas foram todas compradas”. O ódio, esporte nacional preferido por diversos segmentos da nossa sociedade, produziu mais essa remela da viralatice.
No entanto, pensando bem e olhando para o lado resistente e poderoso de nossas tradições, esse ruído do ódio tem um fundo de verdade. É vero, Chico comprou sua obra toda. Sim, ele comprou toda a sua inspiração, seu olhar, suas impressões, seus vaticínios, suas assertivas, metáforas, imagens. Sua lírica. O rapaz, que nasceu no Pacaembu paulistano, em algum momento deu um rolê e achou a biqueira onde era vendido o tesouro dos bambas.
Então, ele comprou de vários e juntou tudo que pôde com sua bagagem de moço rico e letrado. Os fornecedores foram João da Baiana, Sinhô, Wilson Baptista, Noel Rosa, Geraldo Pereira, Ismael Silva, Assis Valente, Aracy de Almeida, Geraldo Babão, Candeia, Clementina de Jesus, e de tantos outros e outras.
Foi da obra aberta do samba, da música brasileira, que Chico “comprou” sua obra. Quem não olha para o Brasil a fundo acaba comprando gato por lebre e ignora tanto a tradição, como as possibilidades de fazer que ela nos traz. Chico bebeu na tradição de muitos para criar a sua própria.
Só faz isso quem não odeia os que circulam por outras classes e lugares e admite que o Brasil é possível. O ódio e a excludência limitam o rolê da vida e jogam uma sombra excessiva na luz nessa luz possível.
Essas compras (do Chico e de tantos outros), justas e profícuas, só acontecem no estouro de bolhas, na admissão dos outros brasis. Se satisfaz aos abutres que ele tenha comprado algo, eis aqui uma boa teoria para o tipo de compra que ele teria feito. A música do Brasil agradece. A porção do Brasil que tenta ao menos descobrir o próprio Brasil, também agradece.