Na década de 1980, quem quisesse ver um bom filme em casa ia até a videolocadora. Sim, era chato ter que fazer uma parada antes de chegar em casa quando a gente estava cansada e às vezes sair de mãos vazias, porque não havia nada de interessante nas prateleiras. Mas também era muito bom descobrir que aquele velho melodrama inglês com James Mason no auge da juventude que a gente viu quando era criança estava disponível em vídeo, e que a prateleira de filmes brasileiros estava cheia de produções que a gente nem sabia que existia – e que ninguém alugava.
Com a popularização da internet, chegaram os “navios piratas” com porões cheios de filmes para baixar, e depois as plataformas de streaming. Enquanto as videolocadoras entravam em processo de extinção, disseminava-se a ideia de que “tem tudo na internet”. Mas não tem. As plataformas de streaming, fáceis de usar e relativamente baratas, praticamente só se interessam por filmes novos ou grandes sucessos, ou seja, de interesse comercial. Quanto aos navios piratas, não são para todos, visto que exigem um mínimo de intimidade com tecnologia. E também não têm tudo, ao contrário do que se apregoa por aí. Acreditem, já testei alguns desses jovens que dizem conseguir baixar qualquer coisa da internet e descobri que não é bem assim. E só para não esquecer de mencionar o detalhe, são ilegais.
Em matéria publicada na Folha de São Paulo, intitulada Filmes clássicos se perdem por mudança de formato e descaso de estúdios, Ieda Marcondes afirma, citando Jan-Christopher Horak, diretor do Arquivo de Filme e Televisão da Universidade da Califórnia, que a atualização dos suportes sempre tira de circulação de 15 a 20% dos filmes, o que é preocupante. Obras obscuras, consideradas “difíceis” ou sem apelo comercial, e mesmo aquele filme de 1985 que levou o público a encarar horas de fila na Mostra Internacional de Cinema para assistir, e que por isso mesmo chegou a ter distribuição em vídeo no ano seguinte, provavelmente não estão mais acessíveis ao público brasileiro.
Além dos problemas para o desenvolvimento de pesquisas sobre cinema, essa lacuna tem efeitos culturais negativos para a população em geral. Quantos filmes, cineastas, atores e correntes estéticas deixarão de ser conhecidos(as) por gerações de espectadores? Quantos pais vão deixar de apresentar a seus filhos aquele ótimo filme que um dia assistiram no cinema ou na televisão e nunca mais conseguiram rever?
A solução para esse problema já existe há muito tempo, mas não é amplamente utilizada para filmes: chama-se biblioteca. Em qualquer boa biblioteca sempre existem livros esgotados no mercado, que nunca foram reeditados pelos mais diversos motivos, inclusive falta de interesse comercial. Mas, se forem obras de interesse para o público da biblioteca, estarão sempre no acervo, catalogados, indexados e disponíveis para quem precisar. Mas o mesmo nem sempre ocorre quando se trata de filmes, porque as bibliotecas brasileiras, em geral, não têm acervos de filmes tão bons quanto os de livros.
Temos também as cinematecas, instituições de memória responsáveis pela preservação e difusão da produção audiovisual de um país, como a nossa Cinemateca Brasileira, hoje abandonada por um governo que, aparentemente, não se importa em ver a cultura brasileira arder em chamas. Mas as cinematecas, mesmo quando estão abertas e não estão queimando, têm funções diferentes das bibliotecas.
Demandas que envolvam produções internacionais e acervos não necessariamente raros, criados para atender a pesquisas em geral sobre filmes ou lazer são (ou deveriam ser) atendidas por bibliotecas. São questões como “preciso de filmes franceses da década de 1950 que abordem o tema do trabalho feminino”, “quero ver filmes musicais que tenham cenas de dança ao ar livre” ou “qual é aquele filme noir que tem uma mulher assassinada e um marido culpado que se finge de deficiente físico? ” e várias outras, que atendi (ou tentei atender) inúmeras vezes. Contei um pouco dessas histórias no texto Filmes fantasmas, de um dos meus blogs.
Na falta de pesquisas que me forneçam dados objetivos sobre as causas dessa ausência de acervos de filmes em nossas bibliotecas, fico com minhas impressões mesmo, recolhidas ao longo de muitos anos de experiência na formação, tratamento e difusão da coleção de filmes da Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP).
Os acervos de filmes
Até certo ponto, é compreensível que os acervos de filmes não sejam tão disseminados quanto os de livros. Afinal, apenas com o advento do videocassete na década de 1970 a formação dessas coleções tornou-se viável para a maioria das bibliotecas. Antes disso, além de praticamente não existir oferta de filmes para uso doméstico no país, os custos da manutenção das películas em 16 ou 35 milímetros eram proibitivos. Mesmo a formação de coleções em vídeo e DVD nunca foi muito fácil, devido à escassez de fornecedores no mercado, em especial de empresas que conseguissem atender às exigências do processo de compra em instituições públicas. Difícil, mas não impossível, sei por experiência própria.
A demanda, entretanto, sempre existiu. Pesquisadores sempre buscaram, na Biblioteca da ECA/USP, por filmes que não correspondiam ao perfil do nosso acervo, e que não conseguiam encontrar em outras bibliotecas. E mesmo na época em que havia grandes locadoras com acervos maiores do que o da nossa biblioteca, fãs de cinema mostravam valorizar as qualidades típicas da organização de bibliotecas: permanência dos títulos, qualidade da seleção, catalogação bem cuidada e indexação pelo assunto das obras. Nenhuma locadora tinha tudo isso. Nenhuma plataforma de streaming tem tudo isso.
Nos Estados Unidos, um estudo de 1977, época em que começaram a se formar acervos audiovisuais naquele país, constatou que os bibliotecários consideravam o receio de que a aquisição de documentos e equipamentos audiovisuais provocassem o declínio dos acervos de documentos impressos como um dos obstáculos para o desenvolvimento dessas coleções nas bibliotecas (ASSOCIATION OF RESEARCH LIBRARIES, 1977 citada por BRANCOLINI, 1994). No Brasil não observei esse tipo de pensamento, embora exista, entre os bibliotecários de universidades, certa tendência a associar cinema com lazer, e este com atividades não prioritárias. Essa forma de pensar é reflexo, provavelmente, da posição das áreas de artes visuais e cênicas, das comunicações e outras que trabalham com linguagens audiovisuais no ambiente acadêmico.
Um dos fatores que mais contribui para não termos acervos relevantes de filmes e outros documentos audiovisuais em nossas bibliotecas é a dificuldade dos bibliotecários em trabalhar com esses tipos de documentos, em todas as etapas do processo: incluindo a seleção, conservação, tratamento da informação e difusão. Embora nossas técnicas, em princípio, possam se aplicar a todos os tipos de documentos, os cursos de biblioteconomia dão pouca ênfase às especificidades das linguagens e suportes audiovisuais, o que deixa os profissionais pouco seguros para enfrentar os desafios da organização de coleções audiovisuais.
E por que é assim? Os motivos são variados, mas vou me concentrar em três:
- Usamos instrumentos desenvolvidos para tratamento de documentos textuais
As regras de catalogação, formatos de dados, tesauros, técnicas de indexação mais conhecidos e amplamente usados em nossas bibliotecas foram criados pensando nas características dos livros e outros documentos textuais, mal adaptados aos acervos visuais, audiovisuais e musicais. Por mais que os professores afirmem e reafirmem que “bibliotecários não trabalham só com livros”, o foco principal das disciplinas é o documento textual. Na prática profissional, o bibliotecário não encontra respostas para suas dúvidas nos manuais da área. A literatura disponível em português sobre o assunto é bem menos abundante do que a dedicada aos documentos textuais, o que deixa o profissional um tanto desemparado. A única solução é recorrer aos colegas mais experientes – que não são muitos.
A criação dos Functional Requirements for Bibliographic Records (FRBR), ou Requisitos Funcionais para Registros Bibliográficos, modelo conceitual elaborado pela International Federation of Library Associations (IFLA), trouxe alguma esperança de mudança desse cenário, ao introduzir no mundo da catalogação a ideia de tratar a obra – conceito fundamental para desenvolver formas de tratamento adequadas aos documentos audiovisuais.
Os dados relacionados à obra, definida pelas normas da Federação Internacional dos Arquivos de Filmes (FIAF), como a entidade que compreende o “conteúdo intelectual ou artístico e o processo de realização num meio cinematográfico, ou seja, como é chamado, quando foi feito, quem o fez, quem nele está, sobre o que é, etc.” (THE FIAF, 2016, p. 18) são os que mais interessam aos usuários de filmes. Estamos falando de informações como títulos, data e local de realização, equipe realizadora, intérpretes, assunto, gênero etc. A novidade, entretanto, nem é mais tão nova. Quais serão seus impactos?
- Pouca compreensão das linguagens audiovisuais
As primeiras dúvidas que assolam os bibliotecários que começam a organizar acervos de filmes e outros documentos audiovisuais estão ligadas ao entendimento dessas linguagens, incluindo formas de uso e aspectos de sua produção. Quais funções da equipe realizadora são mais importantes? Devo indexar assuntos de filmes de ficção? Como fazer sinopse de um filme experimental? O diretor é o autor do filme? Posso fazer cópias de circulação para preservar o original? É interessante classificar o acervo com o mesmo sistema usado para os livros? A recuperação pelo gênero é importante?
Saber as respostas a essas perguntas é uma tarefa importante, que depende, essencialmente, do conhecimento da linguagem do cinema, ou das imagens em movimento, para usar um termo genérico. Esse conhecimento é importante não apenas para o bibliotecário realizar um trabalho de qualidade, mas também para conseguir analisar de forma crítica os instrumentos que a profissão oferece e impulsionar os aperfeiçoamentos necessários.
- Excesso de foco nos suportes
Entender o suporte dos documentos audiovisuais é importante, mas não é a questão central. Preocupados com os aspectos técnicos dos filmes, DVDs e Blu-rays, muitos estudantes e profissionais se esquecem de que o campo “descrição física” não é a única informação que devem fornecer.
Mais importante do que o suporte é a linguagem pela qual se expressa o conteúdo registrado naquele suporte. Ou seja, a grande pergunta não é “como organizo DVDs”, mas “como organizo um acervo de filmes em DVD sobre arte brasileira numa biblioteca pública?”. Suportes se tornam obsoletos cada vez mais rapidamente, e são substituídos por outros antes que a biblioteconomia consiga incorporá-los às suas regras. As linguagens, embora também mudem e evoluam, são mais duradouras. O cinema não acabou, embora já esteja sendo produzido e exibido em formatos digitais. A música também não, mas diversos de seus suportes físicos não são mais fabricados e comercializados.
Esses três problemas não são insolúveis. Basta que os cursos de biblioteconomia dediquem mais atenção aos documentos audiovisuais – não é tão difícil assim, considerando que somos pessoas inteligentes e habituadas a trabalhar com informação. Não podemos esquecer de que os acervos audiovisuais são um grande mercado de trabalho que os bibliotecários se arriscam a perder, se continuarmos a ignorá-los (LOPEZ-DE-QUINTANA-SAENZ, 2014). É fundamental, ainda, que os bibliotecários e gestores de instituições entendam o papel decisivo que as bibliotecas podem assumir na manutenção de acervos que, sem elas, talvez estejam condenados ao esquecimento.