Durante uma aula de redação, há poucos dias, comecei a esboçar essa crônica. A proposição apresentava uma tirinha e um artigo cujo tema era bajulação. O artigo da revista Época Negócios (março de 2010, p. 71) apresentava uma pesquisa da Hong Kong University of Science and Technology, demonstrando as reações do cérebro à lisonja insincera. Segundo as autoras da pesquisa, quanto mais descaradamente você bajular, mais êxito terá com essa atitude. Ou melhor, se for pra bajular, que seja com intensidade.

Eu gostaria de me deter, a partir do que li, no que chamo de artes da bajulação. Meu propósito consiste apenas em problematizar a questão. Lá vai: numa sociedade onde todos adoram viver mergulhados no embuste, as pessoas sinceras são rotuladas de rancorosas, inescrupulosas até. Pessoas que não suportam ter que mentir para agradar o outro, viram alvo fácil da insegurança desse outro. Por isso, minta, mas não minta pequeno. Eleve o outro – necessitado de elogios – ao Everest. Não, melhor é carregá-lo em suas costas ao monte Olimpo, morada dos deuses. De lá, da altura do ego inflado, ele lhe dará guarida. Você será “para sempre” capacho do bajulado. Para sempre, desde que você continue alimentando-o com insinceridades.

Embora a bajulação esteja presente em toda a história humana (o homem das cavernas provavelmente bajulava tanto quanto o homem da Antiguidade Clássica, ou os homens com cara de santo da Idade Média) nosso tempo tem instituído mecanismos que facilitam a propagação dessa arte. Com suas inúmeras redes sociais, a web tem sido o lugar perfeito para se lançar as redes do puxa-saquismo, anzóis de todo tamanho. Diga verdades no mundo virtual e você será solapado, sentenciado, crucificado e, talvez, deportado do metier. Então internet não é lugar para verdades? Em ambiente virtual, seja homo virtualis. Quantas pessoas, imprudentemente, não foram demitidas do seu emprego justamente por não exercerem esse ato humano?! Logo, preste atenção: não basta bajular in praesentia; faça-o virtualmente, para que não só o alvo de sua adulação veja, mas toda sua rede de amigos não tão amigos assim. Sua pesca será farta.

Do mesmo modo, nas instituições onde se deveria promover o exercício da crítica séria e destemida, a arte de elogiar falsamente só tem aumentado. Dificilmente você verá uma resenha crítica que aponte problemas de uma obra, seja musical, teatral ou literária (refiro-me aqui especificamente ao mundo editorial e jornalístico). Costuma-se pagar o resenhista para que ele seja um bajulador e, cegando-se para as deficiências da obra, ajude a vendê-la. Escolhe-se, inclusive, o crítico pela afinidade com o autor. Papo de irmão, brother, coleguismo institucional. E é claro que os bons críticos, aqueles que chamamos de pesquisadores, geralmente professores universitários, amedrontados com a repercussão de suas palavras, acabam por fazer uma crítica mediana, de conchavo, quase um conclave. Tudo a portas fechadas. Ninguém quer incomodar para não ser incomodado.

Daí, cria-se um círculo vicioso onde AUTOR > EDITORA > CRÍTICA (acadêmica ou jornalística) dançam o balé da bajulação, embalados pela música cujo refrão sinaliza: “Tu és grande, se me chamares de grande. Eu te elevarei ao monte supremo, se me adorares”. A própria tentação de Cristo no deserto do real. Crie um deus, alimente-o e ele te protegerá. Mas cuidado! Jamais mude sua postura jaculatória. Jamais abandone sua posição de acólito. Senão, um dia você clamará: “deus, meu deus, por que me abandonastes?”. E ele, insensível a seu clamor, responderá: “Porque você deixou de me bajular”.

E agora penso que não deveria usar paródias de textos bíblicos para falar de algo tão reprovável. Que fazer, se não tenho vocação para santidade?! É preciso rezar o credo da bajulação para se dar bem na vida. Parece que sim. Ou você correrá o risco de ser banido para o limbo, onde estarão todos os que não suportam adulação e lisonja.

O problema maior são as instituições.

Muitas instituições, quando deveriam manter-se na isenção e aceitar humildemente críticas, por mais duras que elas possam parecer, aproveitando o momento para um exame de consciência sobre suas atitudes, acabam por blindarem-se contra qualquer ato ou palavra que mostrem suas falhas: “não aponte minhas feridas abertas. Deixe que eu continue a cultivá-las”. Não é assim? Ouse dizer verdades e você será colocado na cadeira da santa inquisição, tendo que, como Galileu Galilei, contentar-se com a ideia de um mundo quadrado e imóvel. Mova-se na direção da crítica e será punido por ter aberto a caixa onde Pandora guardava todos os males. Acho que nem a esperança ficará na caixa.

Eu, de minha parte, quero morar lá no limbo, onde não precisarei conviver com pessoas que fazem questão de ter uma imagem desfocada e irreal de si mesmas.

Mas o problema maior, repito, são as instituições.

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