Por Rennan Setti, d’O Globo

Sem incentivo. O designer Gustavo Peres usa o leitor digital, mas não está entusiasmado com o novo serviço: “Não terei interesse, não gasto nem US$ 10 por mês com livro eletrônico” - Gustavo Stephan / Gustavo Stephan

Sem incentivo. O designer Gustavo Peres usa o leitor digital, mas não está entusiasmado com o novo serviço: “Não terei interesse, não gasto nem US$ 10 por mês com livro eletrônico” – Gustavo Stephan / Gustavo Stephan

A Amazon está habituada a lançar serviços destinados a destruir seu próprio negócio, e o Kindle é exemplo disso. Quando apresentou seu leitor de livros digitais, em 2007, a empresa de Jeff Bezos já faturava bilhões vendendo cópias em brochura e capa dura e sabia que os e-books iriam canibalizar parte considerável da receita. Porém, a companhia julgava que era melhor aniquilar seu modelo do que permitir que outra o fizesse. Sete anos após se estabelecer como força hegemônica dos e-books, a Amazon volta a recorrer à destruição criativa nesse mercado, lançando um produto que pode tornar obsoleta a venda avulsa de livros digitais — mas não sem antes aprofundar a já tensa relação com editoras, inclusive no Brasil.

O Kindle Unlimited estreou no fim de semana passado e é uma espécie de Netflix dos livros. O usuário paga US$ 9,99 por mês e pode acessar quantos livros quiser. O preço chamou atenção, já que é comum um único exemplar de e-book custar mais que isso no site. Por enquanto, o serviço só está disponível nos Estados Unidos, mas qualquer cliente que se registre no site como americano pode assiná-lo.

Grandes editoras não aderem

O catálogo tem 600 mil livros, incluindo dois mil em áudio, mas os consumidores sentirão falta de vários best sellers: as cinco maiores editoras dos EUA — que travam uma guerra contra a Amazon e já foram acusadas de formar cartel com a Apple para combater a empresa — não aceitaram participar. Embora não tenham se posicionado oficialmente, elas temem que o modelo dê ainda mais poder à Amazon sobre o preço das obras. A paciência dos investidores pode atrapalhar: as ações caíram 9,6% na sexta-feira, depois de a empresa divulgar prejuízo de US$ 126 milhões por causa do volume de investimentos.

— Será bom para as editoras se serviços de assinatura de e-books vingarem em todo o mundo. Mas será péssimo se a Amazon atingir uma posição quase monopolista, como já tem na venda de e-books nos EUA e no Reino Unido — afirma Dougal Thomson, diretor de comunicação da Associação Internacional dos Editores (IPA, sigla em inglês). — A relação da Amazon com as editoras é cada vez mais tensa, com algumas disputas públicas sobre remuneração, como com a Hachette nos EUA e a Bonnier na Alemanha. Mas, se as assinaturas derem certo, e eu acho que vão dar, as editoras perceberão que se trata de uma fonte importante de receitas.

Nesta seara, porém, a Amazon não é pioneira. Algumas start-ups já oferecem acesso ilimitado a milhares de e-books. A principal é a americana Oyster, fundada em 2012, que cobra US$ 9,95 por mês e dá acesso a 500 mil obras, inclusive da gigante HarperCollins. A Scribd abrange 400 mil livros por US$ 8,99 ao mês. Mas, com a Amazon entrando na disputa, a coisa ganha outra proporção, avalia Carlo Carrenho, fundador do site PublishNews. A questão é se as editoras verão vantagem financeira em colaborar com a companhia.

A Amazon mantém segredo sobre o modelo de remuneração do Unlimited, mas Thomson diz que ele é semelhante ao do Oyster. Editores receberão valor equivalente à venda de uma cópia no atacado sempre que um leitor ultrapassar certo percentual de páginas de um de seus livros. No Oyster, especula-se que pelo menos 10% da obra devem ser consumidos. Um quarto da receita será repassada aos autores. Títulos independentes devem receber valor fixo, como US$ 2 por livro lido. Para Carrenho, o formato traz mudança importante na economia do setor:

— Hoje, remunera-se o livro comprado, lido ou não. No novo modelo, só gerarão receita aqueles efetivamente lidos. Isso traz grande eficiência ao processo, mas pode provocar perda absurda às editoras.

Indagada sobre quando o Unlimited chegará ao Brasil, a empresa se limita a dizer que o serviço está disponível nos EUA e que não especula sobre planos futuros. No Brasil, as editoras estão cautelosas. Procuradas, várias preferiram não se pronunciar alegando desconhecer detalhes do modelo. Para a presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Sônia Machado Jardim, a Amazon terá que discutir com elas novos contratos para inclusão dos e-books no novo serviço.

— Os contratos assinados em 2012, quando a empresa entrou no Brasil, não contemplam esse formato de assinatura. Não sabemos como será a remuneração. Se o leitor não ler nenhum livro no mês, o valor da assinatura fica todo com a Amazon? A empresa não conversou com o setor sobre isso — observa Sônia, que também é vice-presidente do grupo Record.

Convencer consumidor é desafio

Segundo ela, o maior receio é que a Amazon negocie maiores descontos no valor dos livros para viabilizar o novo modelo. Foram discussões sobre a precificação dos e-books que atrasaram a chegada da loja virtual ao país. Para impedir que a companhia vendesse obras por valor muito inferior ao das cópias em papel, as editoras brigaram e conseguiram ter controle sobre o preço do e-book, com a Amazon recebendo comissão pelas vendas. A Amazon preferia comprar títulos no atacado e vender por quanto quisesse.

Embora não tenha conversado com as editoras brasileiras, o Unlimited já possui 8.402 livros em português. Segundo a Amazon, isso acontece porque obras cadastradas no KDP Select — programa de exclusividade da plataforma de autopublicação da empresa — entram automaticamente no serviço. Entre os títulos disponíveis está o best seller “Assassinato de Reputações”, de Romeu Tuma Junior. Procurada, a editora Topbooks disse que não sabia que o livro estava no Unlimited.

Questões comerciais à parte, especialistas afirmam que o formato de assinatura pode se tornar o futuro dos livros. Conseguindo atrair o catálogo de grandes editoras com um modelo atraente, esses serviços elevam a média de leitura dos usuários, afirma Galeno Amorim, diretor-executivo da Árvore de Livros. Criada em abril, a empresa vende acesso ilimitado de e-books a escolas e bibliotecas de 25 cidades, com catálogo de 14 mil obras.

Como poucas pessoas leem mais de um livro por mês, o desafio de serviços como o Unlimited é convencer o consumidor a comprometer um valor mensal com leitura. Na média, o brasileiro lê quatro livros por ano, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil de 2012. Lorena Piñeiro, de 24 anos, está testando o Unlimited e, mesmo acostumada a devorar três obras por mês, teme não ser capaz de dar conta da oferta:

— É ótimo para conhecer novos autores, já baixei sete livros, mas só continuarei usando se conseguir absorver o que baixo.

Mesmo apaixonado pelo Kindle, o designer Guilherme Peres é menos otimista:

— Não terei interesse nem se chegar ao Brasil porque não gasto US$ 10 por mês com livros eletrônicos.

Para Susanna Florissi, diretora da Câmara Brasileira do Livro (CBL), a evolução para o modelo de assinatura vai tirar o mercado editorial da zona de conforto:

— Mas é apenas um dos modelos que, no futuro, coexistirão. A experiência será cada vez mais fragmentada — avalia.

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