O trabalho é sempre antes. No final de 2015, o projeto de lei 5069, de autoria do então deputado Eduardo Cunha, que dificultava o acesso legal de mulheres ao aborto em caso de estupro, entre outros retrocessos, foi para votação no plenário da Câmera, e dali iria para o Senado.

Nessa ocasião houve um levante de mulheres por todo o Brasil, “mexeu com uma, mexeu com todas”. Era setembro e primavera, como hoje. Eu, daqui de Fortaleza, chamei um ato com sotaque, “buliu com uma, buliu com todas”, pelas redes sociais, e lembro que a primeira imagem que escolhi foi a de Maria Bonita de espingarda em riste, o que já me causou várias “tretas virtuais”, com as quais aprendi muitíssimo.

Em pouco tempo havia mais de mil confirmações. Eu – fluxo – canal – via de energia e desejos. Parece arrogante, não é? Aquela ideia embolorada do Ezra Pound que diz que “o artista é a antena da raça”… Mas não, foi apenas um chamamento atendido. Os atos já rolavam Brasil afora, foi só dizer, bora? E fomos muitas. Eu não tinha vínculo direto com o movimento feminista organizado e à medida que a adesão foi crescendo nas redes, meninas de alguns coletivos de Fortaleza me chamaram para uma reunião.

O projeto de lei 5069, de autoria do então deputado Eduardo Cunha, que dificultava o acesso legal de mulheres ao aborto em caso de estupro, foi o mote inicial para as intervenções. Foto: Aline Albuquerque / Arquivo pessoal

Cheguei, me apresentei: hetero, família mononuclear, dois filhos, classe média, estudante de pós-graduação, senti uma certa hostilidade, que foi se dissolvendo, talvez. Nenhuma experiência em organizar atos, elas sim, agilizaram tudo, carro de som, parcerias, panfletos e faixas. Teve repressão, policiais mandando beijinhos para manifestantes e chamando de gostosas, teve também gás lacrimogêneo, um clássico.

Nos dias anteriores, e como deliberação da reunião com os coletivos, fizemos um panfleto pra distribuir pela cidade, a esta ação juntei sessões de confecção de cartazes, experiência que identifico como embrionária para o que tem se tornado AGITPROP (trabalho que está na exposição – arte, democracia, utopia – quem não luta tá morto).

Eu estava terminando o mestrado em artes na Universidade Federal do Ceará (UFC), meu objeto de pesquisa – o ornamento como um dispositivo com o qual me colocar no mundo, especialmente no bairro onde moro – propunha pensar a potência política desse gesto como uma arte menor, uma arte de bairro, exercício de profanação, compreensão helioiticiquiana de que o museu é o mundo, domesticidade expandia, arte = vida.

Na circunstância do protesto, com os cartazes, passei a pensar também a tipografia/letra/palavra como ornamento, outras estratégias de guerrilha sensível. E, como o trabalho é sempre antes, é preciso dizer que os ornamentos surgem com as jornadas de junho de 2013, quando meu filho mais novo tinha quatro anos, primeira infância, maternidade total, não tinha condições de participar dos atos propriamente, era o começo da Mídia Ninja, das transmissões em tempo real, me sentia também chamada a ocupar as ruas, e comecei a pensar o entorno de minha residência como “A aventura possível”.

Intervenção urbana do AGITPROP. Foto: Aline Albuquerque / Arquivo pessoal

Me formei em artes plásticas na UNICAMP em 2002, trabalhei em diversos setores de diversos museus. Ingressei no Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Cultura e Arte da UFC, em fevereiro de 2014, quando completei 40 anos, mesma semana da morte do meu pai. Muitas emoções pra dizer da importância da academia, dos protestos, e da morte, nesse caminho que me leva ao MAR.

A defesa da minha dissertação foi em fevereiro de 2016, e aconteceu no prédio inconcluso/abandonado que passei a ocupar durante o processo da pesquisa. Na minha banca/ruína, além de minha querida (des)orientadora Deisimer Gorczevski, estavam Moacir dos Anjos, curador da exposição arte, democracia, utopia – quem não luta tá morto, e Jorge Menna Barreto, artista que admiro. Todos contribuíram imensamente para a compreensão do que seria essa arte menor, no fluxo dos dias, nas brechas, margens e fendas, casa/rua, universidade/cidade, mundo/museu.

Já se desenhava o golpe branco que levou ao impeachment da presidenta Dilma Roussef e à prisão arbitrária de Lula. A experiência com o ornamento e os cartazes se desdobrou no uso cotidiano das plaquinhas como dispositivo da guerrilha sensível. De 2016 para cá, usei diariamente basicamente três plaquinhas: TEMER JAMAIS, LULA LIVRE e ELENÃO. A potência e simplicidade desse gesto ganha cada vez mais relevância à medida que golpinhos e golpões seguem seus cursos.

Exposição de plaquinhas do AGITPROP em quatro momentos. Foto: montagem Biblioo

Assim como na ocasião do PL 5069, tenho feito sessões públicas de confecção das plaquinhas, e o conjunto delas ganha dimensão instalativa quando sobrepostas. A experiência no Rio de Janeiro é para mim especialíssima, a vivência da montagem, o convívio com montadores, artistas e curadores, a possibilidade de viver com intensidade aquela região da cidade, marcada pela história da escravidão do povo negro, fortalecem as estratégias de criação e resistência para atravessar os aterrorizantes momentos que vivemos com essa eleição.

Eu, artista nesse momento, assim como em outros que me moveram, sou multidão e  “estoy norteada por todas las voces que me hablan simultaneamente” como diz Gloria Anzaldua, em frase que compõe a instalação AGITPROP.MAR. Criar é resistir e todo gesto é política. Boa sorte para todxs nós.

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