Breves indícios da origem do Sarau
“Finalmente, no sarau não é essencial ter cabeça nem boca, porque para alguns é regra, durante ele, pensar pelos pés e falar pelos olhos. E o mais é que nós estamos num sarau. Inúmeros batéis conduziram da Corte para a ilha de… senhoras e senhores, recomendáveis por caráter e qualidades; alegre, numerosa e escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda a parte borbulhar o prazer e o bom gosto” (MACEDO, 2002, p. 93).
Este excerto ilustra um conceito de sarau formulado por Joaquim Manuel de Macedo no romance “A moreninha”. No capítulo “O Sarau”, o escritor apresenta uma ideia de como era organizado esse tipo de evento na sociedade burguesa em meados do século XIX.
O texto demonstra a organização de vários grupos dentro do mesmo espaço, os quais vão conversando e “curtindo” o que lhe convém. Alguns limitam-se a reparar no que as pessoas comem, outros apreciam as roupas das moças, há aqueles que se limitam a discussões políticas, tudo isso dentro de um espaço festivo. Destacam-se os momentos em que todos e todas se voltam para as moças que tocam piano. Talvez esse seja o momento áureo do encontro, segundo o escritor.
Ao ler o texto, percebe-se que se trata de um evento onde pessoas “nobres” comem, dançam, conversam, tocam músicas, paqueram e exibem luxúrias. Tudo ocorre simultaneamente, numa espécie de confraternização entre os iguais. Aparentemente, além da confraternização, não há uma intencionalidade coletiva.
Em linhas gerais, há pelo menos duas versões sobre a origem do sarau na sociedade. Segundo os estudos de Tennina (2013), a palavra sarau deriva do latim sérum. Esse termo significa “tarde” (período em que aconteciam esses encontros). Para a autora, a dança, a música e a literatura eram as artes apresentadas nos encontros. Outro ponto que dialoga também com a descrição de Joaquim Manuel de Macedo era atenção dos presentes nas comidas que eram servidas, na vestimenta dos convidados e nos modos de recepção. Além de tudo, havia um interesse em exibir a posição de classe dos/das participantes.
A outra perspectiva histórica sobre o sarau está presente nos estudos de Oliveira (2020). O autor discorre sobre as duas abordagens, aquela mencionada acima e a que será apresentada na sequência.
Para ele, há indícios históricos de que os “salões” literários (termo empregado pelo autor) nasceram na corte francesa do século XVII. Demonstra que o significado das palavras remetia à sala e salotto, de origem italiana. Desta forma, a referência se dava aos encontros nas salas de visitas da aristocracia parisiense. E eram organizados, em geral, por mulheres que tinham o interesse em atrair poetas e artistas. Esses salões, “[…] seriam admirados e frequentados por membros da elite brasileira que circulavam pela Europa, funcionaram como “templos do bom-gosto” no século XVII e XVIII (LILTI, 2002 apud OLIVEIRA, 2020, p. 12).
Nota-se que a divergência se dá em torno do termo de origem. Enquanto para Tennina, a palavra sarau tem seu significado ligado à palavra tarde. Para Oliveira, está ligado à sala. De qualquer forma, ambas as descrições se assemelham com as características presentes no romance “A moreninha”.
Em outra perspectiva, estudos demonstram que no início dos anos 2000 a organização dos saraus foi retomada nos bairros periféricos. Em cada cidade do país é possível localizar esse tipo de evento. Esses encontros, se diferenciam em tudo dos eventos realizados nas casas das nobrezas. Pode-se elencar muitas particularidades, porém duas são suficientes como caráter ilustrativo.
Em geral, quem organiza os saraus são coletivos que se reúnem em torno de um objetivo comum. Esses grupos providenciam os espaços, as atividades, convidam artistas locais e periféricos. Embora as programações contemplem linguagens variadas, o texto literário aparece com referência central, na maioria das vezes.
Outro aspecto interessante nesse tipo de evento é a presença da literatura marginal ou periférica. Aqui, escritores e escritoras que não são estudados e lidas no rol acadêmico são agentes importantes. Além da presença física, os diversos livros estão expostos, lidos e compartilhados nos espaços. Soma-se a tudo isso, a visibilidade que se dá aos chamados espaços abertos, microfone aberto, recital livre etc. Os encontros, com algumas exceções, possibilitam que qualquer participante compartilhe uma leitura, música, dança, entre outras.
Assim, por mais que estejam impregnados de um certo “ritual”, os saraus periféricos se diferenciam pela sua intencionalidade política e social, fato que corrobora para que o evento não seja uma mera confraternização e sim um ato com pautas e reflexões coletivas sobre as diversas questões sociais. Desta forma, a única semelhança com os conceitos apresentados acima é o nome, que foi ressignificado a partir de objetivos comuns dos coletivos que os organizam.
Toca o som do berimbau
é Angola.
Bate o peso do Rap Politizado.
Seguem os poemas rimados
são Versos Revolucionários.
Saem os contos do Beco
Vem os cantos da Viela
É Literatura de Protesto
Poesias da Favela.
Cantam a vida das Trincheiras
Descem as crônicas do Morro.
Bate o tambor a Tiazinha
Panelaço na cara da sinhazinha.
É de luta a métrica da nossa letra
Vermelha.
Resistência quebrando as correntes
da Mente.
É sarau da Resistência do povo que é Preto
e Preta.
(Góes)
Quando se resiste é porque existe algo que o oprime. Essa opressão pode se manifestar de diversos modos e dimensões: esconder a história; abordar de forma pejorativa a população preta; desconsiderar a identidade de outros povos; criar espaços para “notáveis”, entre outros.
Nesse sentido, o Sarau da Resistência Preta se caracteriza pelo enfrentamento a uma cultura que tenta propagar todas essas formas de opressão. Essa cultura, presente no sarau narrado pelo autor de “A moreninha”, faz parte de uma parcela da sociedade que se beneficia da exploração de outras. Desta forma, a dominação cultural e a desigualdade se estabelecem como ferramentas fundamentais para ideologia dominante de forma que, planejam para as periferias um território onde vivem as pessoas que servem, na melhor das hipóteses, como mão de obra.
Organizado pelo Coletivo Força Ativa e pela Biblioteca Comunitária Solano Trindade, da Cidade Tiradentes, Zona Leste da cidade de São Paulo, o evento se caracterizou pelas ações de atividades culturais com apresentações de diversas linguagens artísticas.
O Sarau da Resistência Preta se constituiu numa atividade periódica desenvolvida em formato de encontros artísticos literários de multilinguagem, cujo eixo predominante foi a literatura e temas relacionados aos direitos humanos, principalmente o Racismo e a Doutrina de Proteção Integral.¹
Organizado em encontros que reuniu diversas linguagens e gêneros literários que dialogam com a cultura afro-brasileira e africana, os encontros foram marcados por trocas artísticas, roda literária com escritores e escritoras de literatura periférica e marginal, poesia, dança, música relacionada ao Hip Hop, Batalha Poética e Recital.
Frente a tudo isso, a periferia se organiza, cria seus espaços de contracultura e resistência com linguagem e produções próprias. A resistência, então, se dá em todos os aspectos. Na medida em que a pessoa tem a possibilidade de escrever, ler, cantar, dançar, manifestando sua arte, ela está fazendo resistência. Mas, a resistência preta vem impregnada da criatividade, da coletividade e, sobretudo, da denúncia ao racismo e todas as formas de opressões.
O Sarau da Resistência Preta ocorreu no Bairro de Cidade Tiradentes, zona leste da cidade de São Paulo. Surgiu na Biblioteca Comunitária Solano Trindade no ano de 2014. A partir de então, várias edições foram realizadas em diferentes espaços.
Os encontros foram temáticos e cada edição homenageou uma escritora ou escritor preto. Além disso, participaram escritoras e escritores das periferias, cujas produções retratam o cotidiano do povo preto. Outra característica do sarau é a roda de conversa com destaques para temas do cotidiano e com personalidades dos bairros periféricos, além da diversidade de linguagens artísticas como música, dança, leitura literária, entre outros.
Pode-se afirmar que o evento tem um caráter periférico em formato horizontal, onde qualquer pessoa pode participar, pois, além das convidadas e convidados, a programação previa espaços abertos para recital livre, momento em que os/as participantes apresentavam suas expressões artísticas.
O objetivo do Sarau da Resistência Preta é fomentar a leitura literária por meio do compartilhamento de diversas linguagens artísticas. Além disso, pretendia-se divulgar a literatura produzida por escritoras e escritores pretos e pretas, além de trabalhar com a disseminação de textos que retratam o cotidiano da população preta como protagonista de sua história. Por isso, as edições retrataram autores que de alguma forma contribuíram e ainda contribuem com a luta de combate ao racismo e a discriminação em sua totalidade.
Castro Alves, Lima Barreto, Solano Trindade, Carolina Maria de Jesus, entre outros, dedicaram seus escritos ao povo periférico, sobretudo aos pretos e pretas. Além da beleza literária, presente nos poemas, contos e romances, a temática racial é muito presente. Desta forma, entende-se que esta abordagem contribui para o incentivo da leitura literária de autores que romperam com estigmas presentes ainda em grande parte da literatura brasileira.
Referências
MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha. São Paulo, Ática, 2002.
OLIVEIRA, Lucas Amaral. Sociogênese possível dos saraus: uma história de rupturas na cultura brasileira. Revista Sociedade e Cultura. 2020, v. 23: e62830
TENNINA, Lucía. Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos. Estud. Lit. Bras. Contemp. [online]. 2013, n.42, pp.11-28. ISSN 2316-4018. http://dx.doi.org/10.1590/S2316-40182013000200001.
Blog Letra Preta – http://goesletrapreta.blogspot.com/
Arquivos da Biblioteca Comunitária Solano Trindade.
¹ Parágrafo extraído do relatório de atividades da biblioteca comunitária Solano Trindade em 2016.