Segundo um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgado em janeiro deste ano, o Brasil é o 8° país com mais analfabetos absolutos no mundo: 16 milhões. Os números decerto serão maiores se contarmos com os analfabetos funcionais. E esse poderia ser mais um texto sobre como resolver o problema do analfabetismo, se eu não lutasse tanto para desaprender coisas que aprendi, a ponto de almejar me tornar um analfabeto existencial.
Fiz uma lista rápida de cinco coisas em que sou analfabeto funcional e me incomodam profundamente: 1) falar outras línguas, 2) consertar coisas, 3) dirigir veículos (qualquer um), 4) conjugar verbos no infinitivo e 5) praticar jogos coletivos com rivalidade tribal. Eu poderia realmente me dedicar para aprender essas coisas, ampliar meus horizontes e navegar com mais pericia nesse mar de gente, chamado sociedade.
Contudo, como muitos analfabetos, não consigo dedicar tempo suficiente para aprender essas novas linguagens, decifrar seus códigos e aumentar minha proficiência. Fico desmotivado assistindo essa luta insana por aprovação, para ganhar mais um título, bater a meta e ganhar a promoção.
Não sei vocês, mas eu ando meio cansando de aprender. Talvez “de aprender” não seja a definição certa, mais da quantidade absurda de títulos para tudo. Estou cansando de todos os gerentes juniores, CEOs e semideuses. Como escreveu Fernandinho: “Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”.
Já li uma definição tão precisa sobre a importância dos termos nobiliárquicos no Brasil, do ser Doutor. Essa empáfia dos bem-nascidos, a quem sempre se destinou o ensino superior no país e, por outro, a ânsia de ascensão social dos humilhados e ofendidos. Lima Barreto, em Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), quando o personagem Isaías prepara sua ida para o Rio de Janeiro, onde pensa ter garantido um emprego e a possibilidade de custear seus estudos, diz (capítulo 1): “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor… Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro. (…) Ah! Doutor! Doutor!… Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos… (…) De posse dele, as gotas de chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor?”
O analfabeto existencial precisa aprender a ver beleza no dia a dia, a ler as folhas caídas de uma árvore, as ondas do mar, as casas em suas fachadas e mobília, a ler animais (está bravo, ou faminto, é amigável?), a ler fumaça, vento, cavalo, nuvens, estrelas, frutas, cheiros naturais e o bater do coração.
É difícil porque precisamos desaprender coisas que sabemos, para relembrar o que já sabíamos, mas estão esquecidas no nosso mar de aprendizagem.