O primeiro álbum da banda, O Rappa, que escutei foi o intitulado: “Lado B, Lado A”. Sempre achei esse disco completo, uma vez que todas as músicas são boas e de algum modo elas falam muito a respeito da minha realidade durante a transição da adolescência para a juventude. É o tipo de CD que você coloca para ouvir e não sente vontade de pular nenhuma faixa. Desse álbum, a música que mais me impactou por boa parte da minha juventude foi a canção, “Tribunal de Rua”.

Desde pequeno convivi com a dura realidade de muitos jovens do Rio de Janeiro que vivem em áreas consideradas periféricas. Como fui criado no município de São Gonçalo, no bairro do Jardim Catarina, na Região Metropolitana do Rio, senti na pele os versos dessa canção e a primeira vez que a ouvi foi como se alguém escancarasse em forma de música a minha realidade cotidiana.

Uma das distrações da minha turma em um local com poucas opções culturais acessíveis era ouvir a então extinta Rádio Cidade na rua de casa no fim de tarde. Como não tínhamos dinheiro fazíamos vaquinha para comprar CDs e revistas de rock. Quando um dos meus amigos, Wando Tomaz, apareceu com um cd com uma capa laranja e colocou no rádio para ouvirmos foi como uma onda de indignação atingisse minha mente e a voz de Marcelo Yuka abriu minha mente para compreender a realidade que me cercava.

A viatura foi chegando devagar
E de repente, de repente resolveu me parar
Um dos caras saiu de lá de dentro
Já dizendo, aí compadre, você perdeu
Se eu tiver que procurar você tá fudido
Acho melhor você ir deixando esse flagrante comigo
No início eram três, depois vieram mais quatro
Agora eram sete samurais da extorção
Vasculhando meu carro
Metendo a mão no meu bolso
Cheirando a minha mão

De geração em geração
Todos no bairro já conhecem essa lição
Eu ainda tentei argumentar
Mas tapa na cara para me desmoralizar…

(Tribunal de Rua – O Rappa).

Por muitas vezes eu e meus amigos fomos vítimas da truculência policial, como também chegamos a ver muitos amigos e conhecidos partirem nos “tribunais de rua”, afinal de contas como muito bem coloca Yuka “de geração em geração todos nos bairro já conhecem essa lição”. Depois disso, sempre acompanhamos a obra de Yuka e ouvimos muito canções como: “Todo camburrão tem um pouco de navio negreiro”; “Minha alma (a paz que eu não quero)”; “Pescador de Ilusões”; “Me deixa”, entre outras.

Quando recebi a notícia da morte de Marcelo Yuka a primeira coisa que me veio a mente foi o dia (10/07/2011) em que o conheci pessoalmente no Cine Odeon, na Cinelândia, durante uma programação do Domingo é dia de cinema, um projeto social voltado para atender alunos de pré-vestibulares comunitários. Durante a apresentação Yuka falou de sonhos, lutas, utopias e revelou o caminho que resolveu seguir após o atentado que o deixou em uma cadeira de rodas. No final, pedi para tirar uma foto com ele e o agradeci pelas palavras proferidas, ele me olhou e disse: “eu que agradeço a todos vocês por estarem aqui”.

Foto registrada em 10/07/2011 durante evento no Cine Odeon

Ao contrário de muitos, Yuka não transformou sua dor em ódio, continuou usando sua palavra, seu verbo e suas letras como uma forma de mudar o mundo. Nas eleições de 2012 para a prefeitura do Rio, ao lado de Marcelo Freixo, Yuka foi um dos responsáveis na criação de uma primavera carioca que resgatou a juventude de volta para se atentar e pensar questões relacionadas a política. Compareci em um dos comícios da campanha na Lapa e assim como o meu, muitos olhos de jovens brilharam de esperanças e utopias com a fala de Yuka.

Em tempos de ódio, de armas e de extremismos, o legado de Marcelo Fontes do Nascimento Viana de Santa Ana ou simplesmente Yuka vai permanecer entre nós. Hoje, eu que agradeço por você ter existido e por compartilhar em forma de música suas lutas e convicções.

“O que nós queremos de fato é que as ideias voltem a ser perigosas” (Marcelo Yuka – 31/12/1965 – 18/01/2019).

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