Por Fred Coelho de O Globo
Como acabar com uma cidade? Cariocas estão recebendo uma lição bem didática sobre o tema. E antes que venham aqueles que pedem solidariedade ao grande evento que ocorrerá muito em breve, aviso que não se trata de menosprezar a Olimpíada, mas sim de ver o óbvio: enquanto ela é passageira (e cara), o que fica por aqui e o que já estava pioram a olhos vistos. Assim, cabem a pergunta inicial e outras: que omissões são cometidas de forma sistemática? Que opções equivocadas e deliberadamente prejudiciais ao cidadão são postas nas mesas? Certamente, a lista é imensa. Uma delas, porém, é suicida. Falo da atual situação da UERJ e de sua agonia em praça pública.
Quando jovens morrem diariamente por conta da violência endêmica, estamos acabando diariamente com o nosso presente e o nosso futuro. Os números alarmantes da mortalidade por conflito com a Polícia Militar provam isso. Quando se permitem a falência e o abandono de uma universidade como a Uerj, incorremos na mesma tragédia. São presentes e futuros que estão sendo ceifados do cidadão carioca — e de todas as partes do mundo. A Uerj é uma universidade pública, democrática, cuja localização na Zona Norte faz dela polo decisivo para a expansão de um saber mais transversal e plural nas formações profissional, intelectual, estética e política da cidade. A imprensa, este jornal, deveria falar disso todos os dias.
A trajetória da calamidade pública, todos sabem: nos endividamos brutalmente ao ampliar gastos em época de bonança petrolífera, não renovamos nossa matriz financeira, quebramos com a queda do preço do barril, demos isenções fiscais abusivas para montadoras e fabricantes de cerveja. Somos governados pelo mesmo partido há mais de dez anos. Os mesmos que foram parte ativa da aliança federal com o PT e, rapidamente, tornaram-se a ala decisiva a abandonar o governo deposto em prol do também incriminado PMDB federal. Os mesmos que aparecem em delações de empreiteiras em atitudes criminosas e bilionárias contra o erário público. Aqueles que instalaram com sucesso as UPPs enquanto aparelho repressor do estado nas comunidades, mas nunca investiram as prometidas contrapartidas sociais na qualificação das ocupações. Que tentaram implementar novos modelos de gestão no campo da cultura, porém reduziram drasticamente financiamentos para as bibliotecas-parques ou o Parque Lage.
E por que um texto sobre a Uerj nesse caos completo? Porque uma universidade ainda é um dos espaços fundamentais para que uma cidade possa crescer e gerar qualidade de vida. Ao contrário do que pensam (?) entusiastas de leis temerárias como a “escola sem partido” (desde o ano passado, já comentava aqui seu intento destruidor da autonomia intelectual e do peso excessivo que uma sala de aula ganha na formação da cidadania), a universidade e as escolas são as únicas formas de produzirmos inovação e expandirmos melhorias coletivas em uma comunidade complexa como a nossa.
Lembremos que, comparativamente, somos um país quase sem tradição no que diz respeito a grandes universidades. Segundo alguns estudos, a primeira instituição carioca feita no âmbito do governo federal republicano foi a Universidade do Rio de Janeiro (URJ), criada no período de Epitácio Pessoa, ainda em 1920. Mesmo assim, suas bases eram antigas faculdades de Medicina, Direito e Engenharia. Aos poucos, surgem outras universidades no país e, após a ascensão de Getúlio Vargas, a USP (1934) e a UDF (1935).
A Universidade do Distrito Federal, projeto de Anísio Teixeira encampado pelo prefeito Pedro Ernesto (nome do hospital universitário da Uerj, também em estado crítico), causou tensões na administração Capanema, além de problemas com a ala católica da educação brasileira, oposição permanente às ideias do educador baiano. Fundada pela municipalidade do Rio, então capital federal, ela chegou a contar em seu corpo docente com nomes como Mário de Andrade, Candido Portinari, Sérgio Buarque de Hollanda, Álvaro Vieira Pinto, Cecília Meireles, Carlos Leão, Gilberto Freyre, Lúcio Costa e muitos outros. Já no início da década de 1940 seu projeto original foi abandonado.
Ao ser fundada em 1950, a Uerj herdou o nome da experiência de Anísio Teixeira: UDF. Em 1958, ela se tornou a URJ, retomando o nome da experiência de 1920. Já em 1961, após a perda do status de capital federal, torna-se UEG, ostentando o nome do Estado da Guanabara. Só em 1975 ela se torna a universidade de todo o Estado do Rio. Assim, a instituição tem ligações profundas com as etapas decisivas da cidade e do estado na implementação do ensino, da pesquisa e do serviço público voltado para a população em seus hospitais, escolas, laboratórios e consultorias. Somos todos Uerj porque não podemos nos dar o luxo de tê-la sucateada — muito menos, de vê-la desaparecer. O verdadeiro legado do Rio é uma universidade estadual pulsante, plena e de todos.