Com formato pouco comum no mercado editorial brasileiro, Na minha pele é um livro testemunho em que Lázaro Ramos se utiliza de linguagem simples e discurso franco para criar uma espécie de plataforma em que expõe suas memórias em relação a sua formação como homem negro, aliando-as ao pensamento de importantes intelectuais que vêm contribuindo para o entendimento deste vir a ser, que é tornar-se negro, em uma sociedade que ainda resiste em concluir o processo de emancipação de parte significativa da sua população. Este processo de formação de uma consciência racial é explicitado por Neusa Santos Sousa, em Tornar-se negro; para Sousa (1990) ser negro não é uma condição dada a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro.
Em Na minha pele, temos o privilégio de acompanhar o processo de formação da consciência negra de um dos atores mais populares da televisão brasileira, e mesmo que entendamos, a princípio, que este processo de formação nunca se encerra, o que está exposto no livro já nos possibilita tecer alguns comentários e instigar algumas reflexões. Na minha pele, além de memória e testemunho de um tempo em que as possibilidades de negras e negros ascenderem socialmente foram parcialmente expandidas, também pode ser lido como um livro de perguntas. São muitas as que aparecem no decorrer dos textos e são elas que, sendo respondidas ou não, guiam o leitor para as possibilidades de reflexões sobre os temas apresentados.
Os temas não estão muito distantes dos que vêm sendo debatidos com euforia nas redes sociais, em textões, blogs e sites independentes e que, com frequência, se tornam virais, demostrando que há interesse nos diálogos para as questões atuais sobre ser negro no Brasil. Nas 152 páginas do livro, aparecem temas como empoderamento negro, a solidão da mulher negra, palmitagem, colorismo, intelectualidade negra, mídia e racismo, representação nos livros infantis e outras diversas temáticas que envolvem a representatividade negra. Estes temas são comentados na voz do autor, mas também de diversas personalidades, que, anteriormente, participaram como convidados do programa de televisão Espelho, que o autor comanda. São apresentadas citações de artistas e intelectuais como Ubiratan Castro, Giovana Xavier, Vanda Machado, Márcio Meireles, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Joel Zito Araújo e Emicida.
Das perguntas que vão sendo apresentadas durante o livro, nesta conversa que Lázaro se propõe a ter com o leitor, destaco a que demonstra a inquietação de nunca estar fora das tensões que o racismo cria, pois, até mesmo no seu enfrentamento, revela-se a perversidade de uma sociedade em que o racismo é estrutural, em que nunca se está de fato livre do racismo, seja enfrentando ou negando a sua existência: “Muitas vezes o racismo faz com que a gente não trilhe nosso caminho e comece a pautar nossas ações pela demanda do preconceito. Às vezes não seguimos adiante porque paramos nos limites impostos pela sociedade, e nós temos que caminhar mais, temos que entender a complexidade das coisas, das pessoas, temos que ter a liberdade. Até onde isso é uma ação ou uma resposta ao preconceito? Estou buscando a liberdade ou respondendo aos limites que o racismo me impõe? ” (p. 102). Neste ponto, cabe refletir sobre os efeitos nocivos de uma sociedade em constante negação do racismo, impondo a urgência de se desconstruir o mito da democracia racial e seus efeitos práticos em ações do Estado e de corporações, para que possamos iniciar um avanço necessário de luta por uma democracia racial no Brasil.
Para Joel Rufino dos Santos, “a consciência racial do brasileiro parece, com efeito, transitar permanentemente entre duas pistas: a da realidade preconceituosa e discriminatória contra o negro, fato de todas as horas; e a do desejo de relações fraternas e naturais, aspirações patriarcais de todos. As denúncias públicas de racismo, mesmo que comprovadas e notórias, esbarram, por isso, geralmente em um muro de pedra: denunciar o fato equivale, no senso comum, a renegar a aspiração; e assim, por curioso artifício, o antirracista, entre nós, se transmuda frequentemente em racista. Para o autor, não se deve esquecer, igualmente, que num país visceralmente autoritário como o nosso a simples expressão democracia racial (ainda que a desmintam os fatos de toda hora) evocará, no homem comum, qualquer coisa justa e possível, cuja excepcionalidade mesma lhe garante a força.”
Mídia e afeto
“Que tipo de sociedade é essa que forma pessoas que têm de criar dentro de si uma espécie de amor embrutecido, para que o objeto do seu amor não sucumba, sofra menos, resista? ” – Lázaro Ramos
Palavra muito utilizada nos movimentos sociais, quando estes requerem maior presença de negros nas mais diversas esferas da sociedade brasileira, assim como quando lutam por uma representação pela mídia mais coerente com suas subjetividades e diversidades, a representatividade é um tema que aparece em todo o livro, do qual destaco o relato em que o autor lembra da sua infância e o impacto positivo que lhe causava ver a figura de Carlos Alberto Oliveira dos Santos, autor da Lei Caó, quando visitava a sua casa, e em como a existência daquele senhor negro, de terno, enriquecia seu imaginário infantil.
Neste sentido, o livro ganha outro caráter representativo justamente por Lázaro Ramos encarar esta figura para os seus pares, que se veem representados nele e em suas atitudes positivas. A figura do ator, sua trajetória profissional e agora o livro Na minha pele acordam os entorpecidos pelas amarras sociais da invisibilidade do negro e alimentam os que, já acordados, lutam por igualdade racial.
Acordar para a condição de negro no Brasil é um processo lento, irremediavelmente sofrido e de grande poder de crescimento humano. Neusa Santos Sousa, em Tornar-se negro, nos informa que “saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em sua perspectiva, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas, mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades. Para a autora, ser negro é, além disso, é tomar consciência do processo ideológico, que, por meio de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento, que o aprisiona em uma imagem alienada, na qual se reconhece.” Desta forma, para a autora, ser negro é tomar posse dessa consciência e criar uma nova consciência, que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia de qualquer a nível de exploração.
Ao abordar sua relação com seus amigos (negros e brancos) e com sua família negra (esposa e filhos), um tema que aparece como transversal é a potência do afeto, o afeto e o cuidado com o outro, com os que, feridos pelo racismo, necessitam de socorro e os que na frente de batalha precisam, muitas vezes, de mais e mais afeto, para seguir na luta sem esmorecer, preservando a quota de humanidade que lhes garanta liberdade e felicidade. Neste sentido, cabe resgatar a afirmação de Muniz Sodré, em seu livro Claros e escuros, quando o autor afirma que “o afeto capaz de levar à abolição do racismo é o sentimento (visão e ação) que abole a distância ontológica (psíquica e territorial) entre o Mesmo e o Outro.
Este afeto nasce, portanto, de uma comunidade, de uma parceria (trocas, interações, trabalho conjunto, convivência prolongada) entre singularidades e não de uma cívica e piedosa tolerância democrática. Não se trata apenas de isonomia (igualdade perante o sistema jurídico e social), mas principalmente de isotopia̶ igualdade dos lugares. No trabalho, na vizinhança, no clube, na escola, no hospital, na mídia, no relacionamento dos corpos, é preciso que a alteridade se faça presente de modo prolongado e convival, a efetiva partilha dos territórios, que, entretanto, se choca frequentemente com as estratégias elitistas dos blocos hegemônicos no Estado, sempre tendentes a jogar com as desigualdades de classe e de cor para lidar com as múltiplas formas da movimentação popular. ”
“Afeto é potência”, nos diz Lázaro Ramos, mas alertamos que esta potência é alcançada quando nos garante a efetiva partilha dos territórios, como afirma Muniz Sodré. Ler Na minha pele nos mobiliza a ir em busca deste afeto que é também transformação, pois o livro é um presente para o país, para que se pense, para que se enfrente sua maior questão, o racismo, pois não avançaremos sem reconhecê-lo como marca enraizada na nossa cultura e nas nossas instituições. Um reconhecimento que pode se consolidar, se houver o desejo sincero de distribuição mais justa de oportunidades.
Venho acompanhando pelas redes sociais com bastante alegria e emoção a trajetória de Na minha pele, cujos lançamentos vêm empretecendo as livrarias, assim como sua vitoriosa permanência nas listas dos livros mais vendidos. Alegria e emoção porque, neste livro, lemos uma casa-corpo em que os poros e as portas estão abertos para outros pensadores, que muito nos ensinam. Neste livro-casa, há tristezas e angústias, mas também há festa, crianças, música e teatro.
Entreabertas, as janelas nos deixam espiar um pouco, como um vizinho curioso, do que há dentro deste corpo de pele preta. Vê-se pelas frestas um mundo vasto de inquietações, dúvidas e aprendizados; pulsante, complexo e tão humano como os de tantos outros corpos, assim como o meu, cuja pele também é preta, habitados por espíritos vocacionados para serem livres, mas que absurdamente, ainda lutam para provar sua humanidade, que de tão sentida e exposta – em potência e fragilidades ̶ , jamais deveria ser negada.
Ao se expor de maneira simples, direta e amistosa, Lázaro Ramos traz para uma cena mais ampla questões que há muito pautam os movimentos negros; convida o leitor com um sorriso aberto, um gesto de pode entrar, e, um pouco mais que isso, como ator que soube tantas vezes fazer uso do próprio corpo como instrumento de comunicação e reflexão, novamente o faz, ao despelar-se e mostrar, como um exemplo, a riqueza de subjetividades da qual a personalidade de homens e de mulheres negras é composta, visto que uma das piores consequências do racismo é a tentativa de se criar uma história única para uma população formada por indivíduos tão distintos entre si quanto em relação aos brancos, aprisionando-os em estereótipos que afetam negativamente todas as esferas da vida, das tentativas de conseguir um emprego aos momentos de lazer e de busca por relações afetivas.
Neste sentido, podemos dizer que Na minha pele é um livro poderoso, pois em sua simplicidade comunica e favorece com a construção de novos referenciais sobre o negro no imaginário de brancos e negros, e isto se dá pela projeção e capacidade de repercussão que o ator brilhantemente conquistou. Em um momento de fragilidade, devido ao retrocesso nos avanços conquistados por políticas sociais, este livro se direciona para um horizonte do qual não podemos nos distanciar, pois sob a pele do autor arde o mesmo desejo ancestral por direitos, oportunidades, justiça e igualdade social, valores pelos quais tantos outros negros lutaram e lutam; o mesmo desejo por dias melhores para o povo negro. Além disso, o horizonte que o livro nos vislumbra, resultado de conquistas da geração anterior a nossa, não será mais desfeito do nosso imaginário. Permanecerá sendo pensado, inventado e construído, por todos os que se abrigam comunitariamente sob este mesmo sonho.