“O sol é para todos” (Editora José Olympio, 2006) é um livro que eu teria parado a leitura, se não tivesse sido indicado – e emprestado – por uma amiga que queria debater sobre ele. Apesar da narrativa ser a partir do relato feito por uma criança, uma menina muito inteligente e incomum, o livro parecia não ter nada de novo pra mim.
Um “retrato” de uma sociedade americana pós-escravagista do sul, escrito por uma mulher branca na década de 60 já me revela as piores expectativas quanto ao que viria. E não me enganei. Toda a ordem de preconceitos e crueldades típicas da sociedade americana se revelam durante o livro.
Nada de novo sob o sol, pensei. A história é boa e de fácil leitura, perpassando o cotidiano ingênuo de brincadeiras infantis e esses olhares sobre os adultos e dos adultos sobre eles. São os adultos, obviamente, que revelam a pior faceta desta comunidade.
A amiga insistiu que eu continuasse até pelo menos a metade, embora tenha admitido que o fato dela ser uma mulher branca tenha dado a ela uma experiência diferente da que eu poderia ter. Continuei. Quase pelo meio é que o texto começou realmente a ficar interessante pra mim.
O olhar infantil sobressalta-se a todo o modo de vida adulto. Questiona. Incomoda. Não compreende. A relação do pai com os filhos se mostra belíssima, de um respeito que nenhum outro adulto tem por eles. Que os adultos em geral não têm pelas crianças. Um respeito que deveria existir entre todas as pessoas.
Ele encara as crianças como seres com capacidade de raciocínio e de compreensão, dotadas de individualidade, sentimentos, percepção do mundo, opiniões próprias, escolhas sobre si. Pessoas que estão moldando sua subjetividade e têm direito a isso. Quando a filha enfrenta a tia conservadora, eis a passagem que mais me chamou a atenção
“(…) Além disso, eu deveria ser um raio de sol na vida solitária do meu pai. Respondi que qualquer pessoa podia ser um raio de sol, mesmo usando calças compridas, mas minha tia disse que tinha de me comportar como um raio de sol também, que eu tinha nascido uma boa menina, mas ia piorando a cada ano. Ela me ofendeu e me deixou muito irritada, mas, quando contei a Atticus, ele disse que na família já tinha muito raio de sol e que eu podia continuar do jeito que era, que estava bom pra ele.”
As crianças lêem o jornal com o pai, debatem sobre questões da cidade, argumentam e pedem explicações de tudo o que é necessário, ao que o pai atende pacientemente sempre que possível. A imagem que esse pai tem dos próprios filhos é muito cativante, respeitando-as como pessoas complexas.
“- Atticus, você nunca bateu nela – lembrou tio Jack
– É verdade. Até agora, só precisei ameaçar. Mas Scout me obedece como pode. Não faz exatamente o que deveria, mas tenta.
– Essa não é a questão – disse tio Jack
– Não, a questão é que ela sabe que eu sei que ela tenta. E é isso que importa”
Muitas vezes os adultos se comportam como se crianças fossem coisas. “Gostar de criança”, “não gostar de criança”, “crianças são todas iguais”… Como se crianças não fossem pequenos seres humanos, em processo, em crescimento, tentando e aprendendo todos os dias, como todos os adultos, só que com menos tempo de vida e de experiências – embora algumas com mais experiência que muito adulto.
Alguns trechos trazem uma reflexão filosófica, por vezes em tom de autoajuda, ou lições de vida dadas às crianças durante a trama, mas que tem o objetivo de tocar também os adultos. Algumas muito profundas, outras mais simplórias.
“Queria que você a conhecesse um pouco, soubesse o que é a verdadeira coragem, em vez de pensar que coragem é um homem com uma arma na mão. Coragem é fazer uma coisa mesmo estando derrotado antes de começar – prosseguiu Atticus. – E mesmo assim ir até o fim, apesar de tudo. Você raramente vai vencer, mas às vezes vai conseguir.”
Gosto particularmente da transição do tempo demonstrada pelo que as crianças vão aprendendo a cada estação e de como as relações vão se modificando entre elas e os adultos. Em especial do descortinamento de preconceitos ou suas quebras ao longo da narrativa.
A relação de Scoutt com a tia tem muitas nuances, a maioria delas bem feminista, e embora crítica, muitas vezes reprodutora de imagens estereotipadas.
“Olhei. Altiva, séria, inflexível, tia Alexandra estava sentada na cadeira de balanço, exatamente como se tivesse sentado ali todos os dias de sua vida.”
Essas imagens vão sendo desconstruídas ao longo da narrativa e a relação difícil vai se modificando aos poucos, à medida que tia e sobrinha vão se conhecendo e aprendendo a se respeitar.
O livro se desenrola sobre o cotidiano das crianças, em especial sobre um acontecimento que começa a revirar a cidade e afetar suas vidas. Seu pai, advogado, foi designado para defender um homem negro de um crime contra uma família branca, embora das menos prestigiadas na cidade.
Entre fofocas, provocações e acontecimentos inusitados, aventuras infantis, deboches e segredos, as crianças amadurecem vendo o pior da sociedade: seus racismos, suas maledicências, oportunismos, jogos interesses, crueldades.
A autora nos lembra que o preconceito e a maldade são doenças da sociedade, das quais os olhares inocentes das crianças estão quase sempre livres, até que sejam ensinadas.
“(…) Mas por que ele tinha nos contado seu grande segredo? Perguntei isso a ele.
– Porque vocês são crianças e entendem. E também porque ouvi o que aquele ali disse
(…) – Os sentimentos dele ainda não foram corrompidos. Quando crescer mais um pouco, não vai mais ficar mal e chorar ao ouvir certas coisas”
O mais doloroso é saber que apesar de tudo o livro continua tão atual, embora nem sempre de forma literal ou nem sempre de modo tão óbvio…
“Existem coisas no nosso mundo que fazem os homens perderem a cabeça; não conseguiriam ser justos nem se quisessem. Nos nossos tribunais, quando se trata da palavra de um branco contra a de um negro, o branco sempre vence. É horrível, mas é a vida.”
“O tribunal é o único lugar onde todas as pessoas deveriam ser tratadas como iguais, não importa de qual cor do arco-íris elas sejam, mas as pessoas sempre acabam levando seus ressentimentos para o banco do júri.”
A tradução deixou um buraco incômodo na história, pra mim. O título original é “Killing a Mockinbird”, que é algo próximo a matar um passarinho. “Mockinbird” é um tipo de passarinho específico, parecido com um rouxinol. Entretanto, as palavras juntas “killing a mockingbird” compõem uma expressão, que em português seria próximo a “matar a esperança”.
No meio do livro, há uma situação em que dizem que fazer algo é como “você não iria ‘matar um rouxinol’” (na tradução do livro). A mesma expressão é retomada no final, de modo poético, o que justifica a escolha no título do livro. É uma pena que não tenhamos um bom paralelo para recuperar esse delicioso jogo de palavras, texto, título.
Apesar de algumas questões e incômodos, acho que é um livro que vale a pena ser lido, e por isso escrevo sobre ele. Talvez tenha sido o momento, afinal, além de “a cada leitor o seu livro” e “a cada livro o seu leitor”, temos que considerar também o momento de cada e de cada livro. Reflexões para outro momento.
Ficha técnica
Título: O Sol é para todos
Autora: Harper Lee
Editora: José Olympio
Edição: 25
Ano: 2006
Páginas: 349