Muitas histórias de amor nascem no epicentro do caos cotidiano. Imagine o poder que uma fila quilométrica de atendimento no banco é capaz de exercer em determinados corações – excluindo os justificáveis desatinos provocados pela impaciência, é claro. Ou ainda, o que horas de engarrafamento, ossos fraturados no hospital, ligações para números errados ou esbarrões na rua são capazes de instigar. Agora, tente sair do caos e permanecer no cotidiano. Tome a liberdade de imaginar mais uma cena, tendo como ambiente um lugar onde o silêncio pode ser tumular: duas pessoas começam a deixar rastros uma para outra em livros de biblioteca. Sem maiores pretensões, apenas por apego à brincadeira. As mensagens vão ganhando força, ocupando os dias, criando necessidades e importâncias. Os protagonistas desse exemplo não se conhecem, mas começam a sentir saudades um do outro; com a ausência sentida, vem o desejo. O desejo carrega nos braços a ação.

Cenas do curta-metragem O Nosso Livro (2005). Foto: reprodução.

Cenas do curta-metragem O Nosso Livro (2005). Foto: reprodução.

Esse é o mote do curta-metragem O Nosso Livro (2005), das diretoras Cláudia Rabelo Lopes e Luciana Alcaraz. Protagonizado pelos veteranos Vera Holtz e Marcos Caruso, o filme de quinze minutos apresenta o romance quase epistolar de Isabel e Roberto, frequentadores rotineiros de biblioteca. O encontro de amor acontece quando a professora Isabel escolhe uma das obras de Platão para ler.

Dentro do livro, um pedaço de papel solto revela uma anotação. Esboçado de caneta, um poema encanta os olhos de Isabel, que decide presentear o autor daquelas observações com rastros de sua passagem. Ela deixa um bilhete dentro do livro lido, indicando outra obra. Quando Roberto retorna à biblioteca para consultar Platão, esbarra em um bilhete de Isabel traçando uma rota. Nela, o leitor curioso encontra uma mensagem na página onde repousa a ilustração de uma pintura de Klee, artista suíço. A partir desse momento, o coração nublado de Roberto começa a perceber traços de luz, beleza e mistério.

A troca de mensagens passa a ser assídua e, através das citações, é possível navegar no universo de Carlos Drummond de Andrade (“Procura da Poesia”), Pablo Neruda (“Poema 10 de Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”) e Florbela Espanca (com o belíssimo homônimo “O Nosso Livro”). Além das referências literárias diretas, o desabrochar do amor entre Isabel e Roberto remete a clássicos como “Nunca te vi sempre te amei”, da escritora norte-americana Helene Hanff, e a trilogia “Griffin e Sabine – uma correspondência extraordinária”, obra do artista e autor britânico Nick Bantock.

Encantando pela proposta interdisciplinar, em que une a linguagem literária e a linguagem audiovisual, o curta recebeu o prêmio Porta Curtas no Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro – Curta Cinema 2006, participando também de festivais dentro e fora do país.  O Nosso Livro é uma história de amor contada no silêncio de emoções subterrâneas, perdidas ou esquecidas em páginas de livros. Para achá-las, é preciso ter a ousadia de mergulhar.

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