Seria a minha quarta expedição pela via do comércio. Embora colada à rua de baixo, resistia, entre choramingos, a ideia de sair de casa. Não é que fosse preguiçoso. Apenas me entristecia constatar que, sendo, ainda, onze da manhã, retornaria tantíssimas vezes naquele emaranhado de lojas fedidas e becos nojentos. Temia, sobretudo, aquela gente cheia de olhos e bocas.
Sabia, de certo, que regressaria, pelo menos, três vezes para buscar arroz a granel no mercado do Nêgo ou qualquer coisa que o valha na padaria do João. É que desde que firmei as pernas, minha mãe trabalhava à prestação, numa insistência medonha de me fazer desfilar pela rua de lojas, comprometida em pronunciar o meu nome, como se uma jaculatória fosse.
“Acabou o açúcar; o escuro é mais barato”; “Pegue um tabletinho de manteiga e com o resto, um maço de couve. Quanto mais escura a folha, melhor. Ah! Sobrando uma moeda, traga meia banda de abóbora. Menino! não é a italiana, mas a japonesa pra cozinhar no feijão carioquinha. Aperte a casca; veja se está durinha”. E franzindo a testa condoída, antecipava a sentença, sem direito a apelação “Se trouxer coisa podre, vai devolver”.
Sob o céu pardo, subi a esquina da quadra, apertando os cruzeiros entre os dedos e repetindo baixinho, como uma benzedeira novata, o nome dos secos e molhados. No breve percurso entre meu quarto e o triste destino, um saco de nomes próprios e comuns povoava a minha cabeça, transformando a lista num mantra esquizofrênico: “No Pireneus, um coco seco, barato e com água (balançar com força); farmácia: tablete de permanganato; no boteco de João, uma dose dupla de cachaça para a massa das rosinhas de Santa Teresinha.” Dessa vez, e, finalmente, o escorredor de macarrão.
A raiva fluía aos borbotões: “Por que não pedia tudo num único tiro?” De todo modo, conseguia, quase sempre, apaziguar a fúria. Sob a presença da foice, sumia o desejo de me enraizar no quarto. Desde que passei a temer a morte da mãe, contive, bravamente, boa parte das sombras de malcriação, me dispondo a reduzir a sua aflição. Virei-me em mil: sob o sol a pino, limpava o jardinzinho de rosas.
A cada erva daninha arrancada, uma mirada pro alto: “Câncer tem cura?” Silêncio. Na escuridão da madrugada, varria a sala gatunamente, evitando ruídos. E já no ônibus, rumo à escola, me alucinava: “É quase certo que uma dormida de oito horas reduz as dores”. Apaziguado, levantei os pés, decidido a encontrar na lojinha de R$ 1,99 o bendito escorredor de macarrão. Acamada, ela me aguardaria, com a panela de água no fogo.
O duplo corredor do mercadinho estava vazio. Das estantes de madeira, polvilhadas de terra fina, pululavam quinquilharias dispostas de forma desordenada. Logo à frente, patos de louça e quadros de Iemanjá compartilhavam o mesmo nicho; ao centro, escumadeiras de plástico repousavam sobre porta-sabonetes florescentes. Também vi conchas e martelos, mas nenhum sinal de escorredor. Bem ao fundo, virado para uma escadinha estreita e espiralada, uma ruma de guirlandas douradas dispostas sobre livros. A cada guirlanda lançada no chão, as mãos se enchiam de glíter.
Alguns personagens daquelas brochuras eram velhos conhecidos. Em minhas visitas à bibliotecazinha da escola, tinha sido apresentado a todas as fadas e princesas da Condessa de Ségur. Audacioso, passei para o nicho superior da estante. Encantei-me com a destreza de Iracema e, aos suspiros, decorei a Canção do Exílio. Descobri, na mesma pilha, dúzias de tomos dos Irmãos Grimm.
Sabia que nenhum daqueles 53 contos caberia na minha alma musgada, gerada por um corpo desgraçadamente doente. Prendi no sovaco o livro de fábulas e esfreguei energicamente as mãos. A purpurina voou, livremente, cambaleando por sobre o assoalho queimado. Retirei a última guirlanda. Ao fundo, um livrinho acanhado. A encadernação era das mais ordinárias. “Publicar algo tão curto?”.
Folheando as preliminares, imprimi um ar de desdém ao punhado de folhas com título mórbido. Autoria de Tolstói. Russo, talvez, como Dostoievski. “Quanto custaria?” Sem mexer-se do caixa, a mocinha sonolenta sussurrou: “R$ 1,99”. Levei pra casa. Temi o castigo materno ao me deparar com a forma de macarrão fumegante. Minha proeza lhe arrancou um sorriso demorado. Aliviado, guardei o livrinho com saco, ao lado da caixa de morfina. Comi e, de pronto, deitei-me, lendo, num fôlego só, a vida de Ivan. No quarto ao lado, ela sofria. Chovia.
De sobrenome Ilitch, o rapaz não era tão sábio quanto o irmão mais velho, nem tão burro quanto o caçula. Esforçado, se torna juiz e desposa uma jovem de beleza sem encanto. Ivan era um medíocre clássico, um tipo que parou no meio do caminho rumo ao topo da montanha. Ao decorar o apartamento falsamente requintado, fere o próprio rim. Moribundo, permanece em casa, sofrendo com as mentiras familiares.
Aspira à morte para se livrar da dor moral, mas o instinto de sobrevivência insiste em fazê-lo lutar pela vida. Adormeci, reverberando o desfecho final protagonizado por um novo Ivan, maturado pela dor, decidido a levantar acampamento e a explorar a outra metade da montanha. “Que tipo de vida quero ter?” Lá fora, a chuva amiudava.
Despertei com os gemidos de dor advindos da copa. Arrastei-me como um bichano, crente de que qualquer barulho intensificaria o seu tormento. Ao lado do bule de café fresco, duas xicarazinhas de louça. “Mãe?”. Ao me ouvir, elevou a cabeça, debruçada sobre a mesa escura. O lamento de lágrimas secas cessou. Ela estava linda. De banho tomado, exibia sua roupa de festa. Os sapatinhos delicados abrigavam os pés machucados. Abracei-a, evitando tocar o catéter. Seu pescoço exalava um perfume de campo. As mãos chupadas e lívidas exibiam unhas carmins, impecáveis. Creditei a ela uma luminosidade oculta.
Recordei-me de Ivan e m indaguei: “Que tipo de vida posso ter?” Flagrado, enrubesci. Ela me chamou para bem perto e me segredou algo. Em seguida, subiu, corajosamente, na ambulância. Sob o cheiro de vida deixado, subi, venturoso, pela rua ensolarada do comércio, decidido a trilhar em suas vielas e becos, olhos, bocas e livros cobertos de brilho e de pó. Na pior das hipóteses, encontraria o escorredor de macarrão.