Escritor, ator, jornalista e apresentador, mestre em antropologia pela UFF (Universidade Federal Fluminense), Ernesto Xavier está atualmente em cartaz no espetáculo Oboró – Masculinidades negras, apresenta o programa Rede Escola, na TV Escola, faz a gestão de conteúdo da página do projeto antirracista “Senti na pele”, criado por ele, no Facebook, com mais de  43.000 seguidores, e prepara um romance para ser publicado em 2020.

Em 2017, organizou e lançou o livro “Senti na pele: relatos” (Editora Malê), com uma seleção de histórias reais que documentam a cotidianidade das situações de racismo no país que vê, gradualmente, a ampliação da consciência racial de sua população, fato que se comprova no aumento das denúncias de racismo, como também, nas autodeclarações ao IBGE e que fazem com que, segundo o censo de 2018, negros representem 56,8% da população brasileira.

Sabemos ser bem mais, no entanto o “tornar-se negro” é um processo que depende de muitos fatores culturais, sociais e emocionais. Um dos muitos caminhos possíveis e complementares para a tomada da consciência racial passa pela identificação positiva com representantes, pelo estabelecimento de uma autoestima forte e positiva, muitas vezes estimulada pelos exemplos que se articulam na sociedade em prol da equidade racial.

Neto da atriz Chica Xavier e do ator Clementino Kelé, modelos positivos para tantas gerações, Ernesto Xavier segue o exemplo de seus avós, e vem, passo a passo, rompendo algumas das tantas barreiras que o racismo institucional impõe a população negra brasileira. Inicio esta pequena série de entrevistas, #NovembroNegro, com o Ernesto Xavier. Nesta entrevista conversamos sobre seus projetos, literatura e o racismo no Brasil. Confira!

A Página “Senti na Pele” foi criada em novembro de 2015.  O que o motivou criar a página?

Ernesto Xavier: Duas coisas foram essenciais: as pessoas que começaram a me relatar pelo Facebook suas histórias com o racismo, a partir de uma postagem minha que viralizou em setembro de 2015 e os diversos casos de racismo que explodiram naquele ano, como os ataques à Taís Araújo, ao goleiro Aranha, a morte dos meninos de Costa Barros com 111 tiros. Foi a forma que encontrei para protestar.

Capa do livro “Senti na pele”, de Ernesto Xavier. Divulgação

De 2015 pra cá o país passou por grandes mudanças no cenário político, você vê alguma correlação com o cenário político e as relações raciais?

Tudo está atrelado. Não é à toa que o golpe da proclamação da República (sim, foi um golpe de Estado) ocorreu um ano após a abolição da escravatura. Sempre que acontece um avanço (mesmo que controverso e tímido) da população negra, há um movimento contrário que tenta impedir esse avanço. A chegada de negros às universidades públicas, o aumento da renda, empregadas domésticas com direitos trabalhistas, a presença maior de negros em aeroportos, por exemplo, faz com que uma elite racista que comanda uma classe média conservadora e igualmente racista, se sinta ameaçada. A reação dessa elite não tem mais vergonha de expor o seu racismo. A internet fez com que as máscaras caíssem. A parte positiva disso é que agora sabemos com quem estamos lidando. Não existe mais dissimulação. O jogo está às claras.

Você organizou e publicou em 2017 o livro Senti na pele: relatos.  Poderia comentar como foi o processo de organização destes textos, o impacto emocional e a repercussão do livro? Ele serviu para sua dissertação de mestrado?

Ernesto Xavier: A maior parte dos relatos que estão no livro foram inicialmente publicados na página Senti Na Pele, no Facebook, onde reuni cerca de 112 relatos. Tive que selecionar 40 depoimentos que expressassem com mais clareza os diferentes aspectos do racismo no Brasil. Entrar em contato com cada história foi como reviver os episódios de racismo da minha vida. No começo eu me envolvia demais com as histórias e isso me fazia mal. Depois passei a tentar me distanciar um pouco e agir de maneira profissional. Como sou jornalista, tentei usar essa experiência para ser imparcial ao máximo. É quase impossível. Chorei muito. Passei noites em claro. Quando entrei no mestrado em Antropologia na UFF compreendi que realmente precisava de algum distanciamento para analisar aqueles relatos profundamente. Dessa forma pude descobrir o que estava por trás daquelas histórias, quem eram aquelas pessoas, por que escolheram a página Senti na Pele pra falar, por que escolheram exatamente aquelas histórias, etc. Foi libertador.

Luana Xavier, Ernesto Xavier, Clementino Kelé e Chica Xavier. Foto: Arquivo pessoal

Como é ser neto da Chica Xavier e do Clementino Kelé, quais aprendizados você traz da sua relação com seus avós?

Ernesto Xavier: Desde pequeno meus avós falavam de forma contundente sobre como era ser ator no Brasil, especialmente atores negros. Eles diziam que era mais difícil, que tínhamos que ter outra profissão mais estável. Esse ensinamento serviu para os filhos e netos. Todos possuem outras profissões e se formaram na faculdade. Temos então uma engenheira, uma publicitária, um designer, um jornalista e uma assistente social. De alguma forma todos também se expressam através da arte. Eu e minha irmã somos atores, por exemplo. Temos a consciência de que a vida artística é muito complicada, mas está no sangue, não tem como fugir, porém, temos também trabalhos paralelos para que nosso futuro seja um pouco mais estável.

“308 anos de escravidão e outros 130 de segregação ‘velada’ não se resolvem da noite para o dia, mas se não acreditarmos que é possível melhorar a vida dos nossos irmãos, então nem adianta sair da cama.” – Ernesto Xavier

Atualmente você está em cena no espetáculo Oboró. Como tem sido essa experiência? E, vem preparando um romance, o que você poderia contar sobre ele?

Ernesto Xavier: Oboró está sendo um ponto de virada na minha vida. É a primeira vez que trabalho com um elenco e produção negros. Trabalhar com os meus, falando sobre nós, é impagável. Ver a plateia lotada praticamente todos os dias e com maioria negra é outra alegria. A cena negra está crescendo cada vez mais e fico feliz de fazer parte. Imagina o que significa ser dirigido pelo Rodrigo França, encenar com atores incríveis como o Reinaldo Junior, Orlando Caldeira, Drayson Menezzes, Luciano Vidigal, Sidney Santiago, Cridemar Aquino, Marcelo Dias, Danrley Ferreira, Jonathan Fontella…é um Dream Team!

O romance ainda está no início, mas é fruto dessas transformações que vem acontecendo comigo. É um livro bem pessoal, autobiográfico em alguns pontos, é como uma explosão de tudo que guardei a vida inteira e que eu não tinha coragem de acessar.

Ernesto Xavier. Foto: Divulgação

Você acredita que o Brasil possa um dia superar os efeitos da escravidão e das ideologias do pós-abolição e se torar um país menos racista?

Eu acordo motivado todos os dias para que isso seja possível. Apesar de saber que provavelmente não presenciarei a igualdade racial nesta encarnação, eu tento ao menos colaborar para o avanço do povo negro. O Brasil tem muitas feridas expostas e que ainda relutamos em mexer. 308 anos de escravidão e outros 130 de segregação velada não se resolvem da noite para o dia, mas se não acreditarmos que é possível melhorar a vida dos nossos irmãos, então nem adianta sair da cama. Eu tomo isso como a grande missão da minha vida.

Comentários

Comentários