Por Jessica Lauritzen de O Globo
É praticamente impossível passar pela Avenida Chrisóstomo Pimentel de Oliveira, em Anchieta, sem observar, perplexo, aquele monumento, digno de um palácio islâmico (mameluco). Apesar de os visitantes virem de toda parte, ouriçados pelo burburinho da divulgação boca a boca, muitos ainda desconhecem a existência e a riqueza histórica guardada no Museu da Humanidade, cuja beleza vai além da fachada. Há mais 90 mil peças variadas em estoque — incluindo objetos pessoais como cachimbos, leques e roupas —, sem contar o acervo documental e uma coleção de moedas gregas, romanas, bizantinas, islâmicas e medievais ainda não catalogada.
Vasos, pratos, esculturas e instrumentos correlatos, entre outros artefatos gregos ligados aos Jogos serão expostos no museu – Analice Paron / Agência O Globo
Um achado no subúrbio carioca, o espaço de 2.500 m² de área construída, vinculado ao Instituto de Pesquisa Histórica e Arqueológica do Rio de Janeiro (Ipharj), uma instituição privada, conquistou até o Comitê Olímpico Rio 2016 durante uma discreta visita realizada há dois anos e, agora, ganhará notoriedade como atração cultural da cidade num calendário paralelo aos Jogos. Peças como o Discóbolo (do escultor grego Míron); esculturas de em bronze e mármore; moedas e cerâmicas relacionadas ao esporte e às cerimônias dos Jogos; maquetes de monumentos gregos; e armamentos e instrumentos correlatos fazem parte da exposição planejada para a ocasião, de 20 de agosto a16 de outubro.
— Quando o Comitê Olímpico veio aqui, liderado pela Carla Camurati (diretora do programa de Cultura da Rio 2016), eles ficaram muito encantados. O Ipharj está antenado com o passado, mas também com a contemporaneidade. Com a exposição que estamos preparando, queremos evocar uma reflexão sobre a importância da Olimpíada no passado, sobre o que representava o esporte e a saúde. Vamos usar muitos artefatos da Grécia e fazer um desdobramento também pelo Mundo Antigo — diz o arqueólogo e historiador Claudio Prado de Mello, responsável pelo local, credenciado como reserva técnica pelo governo federal e já reconhecido pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).
A melhor notícia é que não será preciso esperar até agosto para aproveitar a já intensa programação promovida pelo idealizador e anfitrião. Uma das muitas novidades é que a casa estará aberta às sextas e sábados, das 14h às 20h (mediante reserva), para o Ipharj Open House, encontro que ele chama de happy hour do patrimônio e da arqueologia. Nele, o tour habitual pelas mostras transitórias — a atual compreende a Era Vitoriana — é incrementado por aulas teóricas e práticas, apresentações artísticas e degustação de quitutes. Sábado que vem haverá palestra sobre Arqueologia Urbana e declamação com um intérprete do escritor Fernando Pessoa. O programa custa R$ 5.
Boa parte do público que recebe é de grupos escolares de até 40 crianças.
— Não queremos que o museu seja apenas ilustrativo. O objetivo é ensinar, fazer com que as pessoas entendam a história por trás de cada peça ou fragmento de forma a contextualizá-la. Quando isso acontece, elas passam a gostar do patrimônio histórico. E nós precisamos de preservacionistas. Dependendo do bairro de onde vem o grupo, procuro puxar por monumentos conhecidos em suas regiões, estimulando o sentimento de pertencimento — diz o profissional, que também promove esquetes teatrais em locais onde há monumentos se deteriorando (como foi feito no entorno do Convento do Carmo, no Centro, e no Palacete São Cornélio, na Glória).
Cada peça que o profissional encontra em escavações de sítios arqueológicos é numerada, registrada, medida e carrega uma ficha com a descrição de quem a encontrou, onde e em qual camada do solo. Tudo o que é encontrado, comprado ou guardado tem processos catalogados em pastas, com notas fiscais. O trabalho minucioso tem a colaboração da amiga Alba Laurentino, seu braço direito na organização do acervo.
Uma das peças de maior valor encontradas no espaço é o par de colunas salomônicas portuguesas, adquiridas num antiquário em Petrópolis por R$ 15 mil. Outras foram compradas por valor irrisório, como a dupla de leques de madrepérola e prata pertencentes à Condessa de Araruama, que custou R$ 120 e chegou a entrar num leilão por R$ 70.
Talheres de prata da coleção do Conde de Araruama, do Solar da Mandiqüera: peças francesas, da marca Christofle: adquiridos em leilão – Analice Paron / Agência O Globo
Hoje, quem compra antiguidade quer matéria-prima. Eu disputei os talheres do Conde (de Araruama), no qual paguei R$ 500, com um prateiro. Ele disse que ia derretê-los para fazer bijuteria.
Inquieto com os objetos perdidos com o tempo, dada a desvalorização lançada por herdeiros de famílias nobres, Mello se empenha em fazer barulho entre dirigentes em prol de um foro de política patrimonial dissociado da cultura.
— Os leilões são feitos com acervo privado e as famílias têm o direito de vender o que quiser, mas as pessoas não têm mais a preocupação em preservar coisas velhas, não têm a dimensão do valor histórico, por isso há relíquias tratadas como lixo. Para piorar, as leis que regem o patrimônio público datam de 1925, estão defasadas e a Alerj já atestou isso — diz.
O arqueólogo lamenta a situação de certos museus do Rio.
— Há mais de cem museus abandonados ou fechados. As peças são roubadas constantemente. É comum que sejam fechados com a justificativa de reformas. Itens do acervo do antigo Museu do Gás, por exemplo, foram para o lixo; as peças estavam à venda a preço de banana na Praça Quinze.
MAIS DE 90 MIL RELÍQUIAS PRESERVADAS
O portentoso Museu da Humanidade, em Anchieta, tem quatro andares e 14 metros de altura, apesar de aparentar dois andares para quem o vê de fora. E seu estilo islâmico (mameluco) foi escolhido pela funcionalidade além da estética, visto que favorece a iluminação e a circulação de ar nos ambientes, todos planejados com cozinhas e banheiros independentes. No último andar, há uma área de pesquisa com dois laboratórios para análise de itens que são encontrados em escavações pelo país. Das 21 salas do prédio mantido pelo Ipharj — algumas com até 12 m² —, o idealizador Claudio Prado de Mello ainda planeja abrir ao público outras sete até o fim do ano. Um projeto inusitado, no subsolo, também está nos últimos ajustes e promete causar frisson entre os visitantes: o Human Gate, galeria de arqueologia funerária. Passando por uma escada de caracol bastante estreita, planejada propositalmente, chega-se ao ambiente escuro e soturno criado por Mello, onde há réplicas de catacumba romana, tumba pré-colombiana e tumba egípcia divididas entre paredes talhadas como as que haviam na Síria, com direito a esqueletos, múmias e imagens ritualísticas, visíveis por luzes direcionadas.
Mello construiu o “palácio islâmico” com recursos próprios – Analice Paron / Agência O Globo
— É uma novidade até em termos de América porque ninguém tem cripta como a gente tem. Eu conheci muitos sítios arqueológicos mundo afora, como em Paris e em Nápoles, e quero compartilhar com as pessoas essa vibração e energia que é entrar no Mundo Antigo — diz o arqueólogo, primeiro brasileiro a participar de uma escavação arqueológica no Egito, sobre o qual é especialista desde os 16 anos.
Uma coleção de crânios contando a história do desenvolvimento do ser humano, desde o primeiro marsupial, já faz sucesso em oficinas práticas com o público infantil, conta. A rica biblioteca do local atrai pesquisadores, que podem levar exemplares emprestados.
— Quando viajo, só levo uma muda de roupa porque as malas vêm com peças e livros; temos mais de 35 mil nas áreas de arqueologia e patrimônio.
Menino humilde e com um sonho considerado de elite, Mello precisou superar desconfianças e uma depressão para conquistar a posição profissional que tem hoje, estando à frente de importantes escavações como a que abriu caminho para as obras da Linha 4 do Metrô, no sítio arqueológico da Leopoldina. Foi encarando mais um desafio que ele ergueu o Museu da Humanidade, comprando coisas em ferro-velho, reaproveitando sobras de materiais, restos de mármore doados e intercalando gotas de suor ao cimento prensado.
— Eu não tinha dinheiro, mas tinha um terreno e duas mãos. Escavei os primeiros buracos das sapatas; tracei e sondei todos os estribos dessas colunas que têm até 12 metros de altura; fiz as portas e também o chão. Virei pedreiro, carpinteiro e serralheiro.
Ainda faltam R$ 400 mil para concluir as obras pretendidas para o espaço, frisa Mello, que aguarda aprovação em editais públicos e apoio já solicitado a fundações e personalidades como o Rei da Arábia Saudita. Mas suas aspirações não param por aí: a casa onde ele nasceu, a cerca de 500 metros do Museu, está sendo transformada, também com investimentos próprios, para se tornar o Instituto de Arqueometria e Arqueologia Aplicada, com uma arquitetura de estilo medieval italiano. Esta novidade, segundo Mello, está reservada para o ano que vem.