Por Nani Rubim de O Globo

Anunciado na semana passada como novo diretor cultural do Museu de Arte do Rio (MAR), substituindo Paulo Herkenhoff no cargo, o artista e curador Evandro Salles, de 61 anos, pôde ser visto, nos últimos dias, circulando na feira ArtRio ao lado de seu antecessor. Os dois punham etiquetas “wish list” (lista de desejos) em obras da feira que preenchem lacunas do acervo, para estimular sua doação por galeristas e colecionadores, num sinal de transição tranquila na instituição que Herkenhoff ajudou a moldar nos últimos quatro anos e que Salles assume a partir de agora. Ele diz que pretende mexer na programação de 2017, mas as grandes exposições previstas serão mantidas: em fevereiro serão inauguradas “O nome do medo”, de Rivane Neuenschwander, com curadoria de Lisette Lagnado, diretora da EAV Parque Lage, e “Lugares do delírio”, curadoria da psicanalista e professora Tania Rivera, sua mulher, em parceria com Herkenhoff. O MAR também recebe a elogiada retrospectiva de Roberto Burle Marx organizada pelo Jewish Museum de Nova York, e “A Guanabara antes dos cariocas”, sobre o período pré-colonização. Há ainda uma coletiva organizada pelo próprio Salles, “A beleza possível”, prevista para novembro.

Idealizador de exposições como “Casa cidade mundo”, no Centro de Arte Hélio Oiticica, em 2015, e mais recentemente, “O poema infinito de Wlademir Dias-Pino”, em cartaz de março a junho deste ano no museu que passa agora a dirigir, Salles tem certa experiência em gestão: foi secretário-adjunto de Cultura no governo de Cristovam Buarque no Distrito Federal, onde também criou a Fundação Athos Bulcão. Na noite da última sexta-feira, ainda se inteirando da rotina do museu depois de ter levado cerca de dez minutos para conseguir entrar pela porta de serviço, exclusiva de funcionários (seu rosto ainda é desconhecido da segurança da casa), ele falou sobre suas primeiras ideias.

Como é assumir um museu tão associado à figura de seu antecessor?

O MAR é, realmente, um projeto absolutamente desenhado pelo Paulo. Tem uma marca muito forte do pensamento dele sobre a arte brasileira e do papel do museu na cidade. Em menos de quatro anos ganhou uma personalidade muito particular, e um acervo de 5.600 obras. É impressionante ele ter conseguido estabelecer isso em tão pouco tempo. Neste primeiro momento, vou manter as exposições programadas para 2017, mas dando umas mexidas. Não posso adiantar quais, estou chegando. Mas acho que o museu deve ser cada vez mais experimental, corajoso e arrojado, e dar lugar ao inesperado. Quero trabalhar, por exemplo, com a música e o teatro de vanguarda.

Quais são as diferenças entre ele e você? O que pretende imprimir na sua direção?

O Paulo é um grande conhecedor da história da arte brasileira e da história da arte no Rio de Janeiro. Ele trata as exposições a partir de uma abordagem simultânea: fortemente historiográfica e dentro de uma estratégia de representação dos artistas, de compreensão da obra dentro de uma problemática da arte brasileira. A minha curadoria parte de princípios às vezes diferentes. Ela se dá muito mais a partir da relação do espectador com a obra; a relação única, específica, estabelecida entre aquela pessoa e aquela obra. A questão historiográfica, para mim, vem num segundo momento. Num primeiro momento eu privilegio o encontro da obra com a pessoa — e é com a pessoa, não com um grupo, uma comunidade. Porque acho que não existe uma leitura coletiva de obras de arte. Existem leituras particulares, e cada experimentação da obra gera um universo diferente. Nesse sentido, eu acho que penso muito a questão da obra em relação ao espaço, a obra em relação à arquitetura.

De que forma essa diferença de abordagem entre você e o Paulo teve consequências na forma como o museu será dirigido?

O MAR tem três braços principais: a Escola do Olhar, que estabelece pontes de reflexão com diversas áreas da sociedade; o universo das exposições; e o acervo. Esses três braços estão articulados, se conectam. Por exemplo, quando o Paulo fez uma exposição sobra a arte amazônica, ela foi praticamente toda incorporada ao acervo, através de doações de todo tipo. O acervo é um fator permanente de ação cultural, que vai ter consequências históricas dentro do circuito de arte, da leitura de arte. Nesse sentido, o museu tem uma responsabilidade séria de pensar a arte brasileira. Por exemplo, a exposição do Dias-Pino que fiz aqui (“O poema infinito de Wlademir Dias-Pino”, de março a junho deste ano), ela tem esse caráter de pensar um artista fundamental que não é conhecido, apesar de muitas coisas dele terem sido incorporadas pelas pessoas. Esse acervo tem de estar vivo, tem que dialogar com as outras duas áreas. Não vou romper nem criar outra estrutura diferente. Mas pretendo aprofundar certas questões.

Que questões são essas?

Tenho um trabalho inteiro em torno da questão de arte e educação, que é uma visão bem crítica sobre o sistema de arte e educação que existe hoje no Brasil. Fiz algumas exposições, como “Arte para crianças” (em cartaz no MAM-Rio, em 2008, e em mais cinco instituições do país). No fundo, trata-se de uma pergunta fundamental: o que é a arte, e como a gente lida com isso. É preciso colocar essa pergunta acessível à experiência. Porque ela só pode ser respondida pela pessoa. Não há uma resposta que se possa generalizar, que se possa traduzir ou mediar.

Como pretende trabalhar isso no museu?

O MAR já tem um programa educativo, que é muito bom, em muitos aspectos. Não posso adiantar novos procedimentos, estou chegando, mas acho que há um campo enorme para se trabalhar. Quero, por exemplo, pensar o espaço do museu, a arquitetura cenográfica e a arquitetura geral do museu, como um espaço de linguagem, de significação. A partir do momento em que a pessoa cruza a porta do museu, é passível de ter encantamentos, descobrimentos. A educação tem de ser um processo feito através da beleza e do deslumbramento. O museu é um espaço de educação pela beleza, e beleza, aqui, não é coisa bonita. É o que não foi codificado pelo olhar, o que o olhar não alcança. O espaço do museu pode ser um espaço ritualizado, muito mais do que um espaço de explicações, de mediação. Porque os ritos são mais fáceis de conduzir a um encontro do que uma explicação, do que uma mediação, no sentido de uma tradução. A ideia de mediação implica na ideia de uma dificuldade, na impossibilidade de uma relação direta. E não há nenhuma impossibilidade de relação direta entre uma obra e um espectador. Não se pode partir do princípio de que uma pessoa não tem todo o potencial pra experimentar aquela obra, viver a experiência estética. São questões muito delicadas que podem ser trabalhadas.

Há algo que você acha que falta no MAR como instituição e que pode ser implementado?

O MAR tem personalidade, e acho que pode aprofundar suas trocas, seus laços com outras instituições, tanto a nível da cidade, como nacional e internacional. O MAR (e o Rio de Janeiro, de uma forma muito particular), tem potencialidade de pensar o Brasil inteiro e se relacionar de dentro pra fora, de fora para dentro. O MAR pode ampliar as suas pontes. Se isso não foi feito até agora é porque nesses primeiros anos era preciso, e ainda é, estabelecer o desenho do museu.

Você tem um interesse particular por arquitetura e urbanismo. Isso era visível na exposição “Casa cidade mundo” e também na que fará este ano no MAR, “A beleza possível”. Este será um ponto importante de sua administração?

O MAR já tinha aberto essa vocação de pensar a cidade. A cidade é o grande objeto de experimentação do museu. Por isso o interesse do Paulo sobre o projeto “A beleza possível”, que dá continuidade à mostra “Casa cidade mundo”. O museu tem o acervo do Carlos Nelson Ferreira dos Santos, responsável pela primeira urbanização de favela no Rio, a de Brás de Pina, nos anos 1960. A relação entre arte e arquitetura é um instrumento fundamental para se pensar a cidade. Se você pensa a cidade de um ponto de vista estritamente econômico, está correndo um risco absoluto de destruir uma parte significativa dos próprios valores que geram a questão econômica. Acho que no Brasil houve, a partir do golpe de 1964, um distanciamento, inclusive dentro das universidades, do universo da arte e da arquitetura. Porque arquitetura é arte. Reduzir a arquitetura às suas necessidades técnicas é destruir uma função fundamental da arquitetura,, que é a criação de identidade e de sentido de vida.

Como o MAR se insere nesse projeto?

A nossa cidade hoje tende a segregar as diversas classes. Não só espacialmente, mas também através da negação de informação. O museu pode ser um espaço de convergência das várias áreas da cidade, e nesse sentido desencadear uma reflexão sobre essas áreas do ponto de vista da cultura delas, da significação da construção espacial dessas diferenças. O museu pode estabelecer, provocar, propor um retorno, uma reflexão, em torno da convergência de arte e arquitetura/urbanismo, no sentido objetivo: por que os programas habitacionais sociais, hoje no Brasil (porque não é algo que houve sempre; no Rio há exemplos clássicos), porque os prédios são de uma arquitetura monstruosa, sem nenhuma identidade com as pessoas que habitam aquelas construções? Quem impõe isso? É simplesmente uma necessidade econômica? Não. É uma questão de outra ordem. Você pode convidar um grande arquiteto para fazer um a casa com meios econômicos muito simples e pensar o espaço, inverter essa lógica. Talvez caiba ao circuito de arte recolocar isso para o universo da política, da economia. A ideia da exposição “A beleza possível” é essa: convidar artistas e grandes arquitetos nacionais e internacionais para pensar e projetar a habitação social para o Brasil.

Como fica a situação do Paulo Herkenhoff no museu?

O meu desejo é que, além de produzir algumas curadorias, ele continue, em primeiro lugar, a colaborar dentro da perspectiva do acervo. Está se buscando uma forma de como objetivamente isso vai funcionar. Ele é uma pessoa insubstituível no sentido de articular esse grande esforço de gerar doações, de fazer com que as pessoas entendam que a sociedade tem que ser colaborativa para que uma obra dessa importância seja construída.

Herkenhoff tocava projetos como a consolidação de uma coleção Judaica no MAR, à qual se seguiria uma coleção Islâmica. Como ficam esses projetos?

Continuam. Na verdade, é muito amplo o projeto dele, tem muitos núcleos, e eu ainda não tenho conhecimento de tudo. Há o núcleo de arte amazônica, também tem o projeto de fazer um núcleo da arte do Centro-oeste. A ideia é manter, não interromper nenhum processo. Um outro núcleo, por exemplo, é o de arte e arquitetura/urbanismo, que se iniciou com a doação do acervo do Carlos Nelson Ferreira dos Santos, e deve ser ampliado. Mas ao mesmo tempo que vou trabalhar desse desenho já estabelecido, pretendo também colaborar dentro da minha perspectiva, que seguramente vai trazer coisas diferentes, ideias diferentes. Por exemplo, o espaço total do MAR, a partir do momento em que você entra, pode ser mais bem trabalhado, tanto simbolicamente, como espaço de vivência estética. No instante em que você cruza essa porta tem que haver uma diferencial, como se você entrasse num outra dimensão, que abrisse uma outra perspectiva de percepção. É isso. Quero trabalhar as relações da arte com o espaço. Prezo muito a ideia de rito em relação à experiência da arte, no sentido de tirar o olho mecânico que a gente tem sobre as coisas. De te proporcionar situações em que você muda a relação com as coisas. O trabalho “Desvio para o vermelho”, do Cildo Meireles, provoca isso: o equilíbrio do olhar sobre o mundo, a leitura do mundo, é balançada. Quero trabalhar muito nesse sentido. Pensar o espaço, a obra, a partir da entrada do museu.

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