“Assim, nus sem o saber, os animais não estariam, em verdade, nus.
Eles não estariam nus porque eles são nus.”(Jacques Derrida)
A liturgia católica celebra a vida e morte do Cristo, aquele que morrendo, redimiu os homens, segundo a história salvífica. Assim, a cada culto, os homens são convidados a narrar (para não esquecer) o que os evangelhos, cada qual a seu modo, contaram. Corpo e sangue são duas palavras significativas nessa liturgia. Transubstanciados no pão e no vinho, ou melhor, transfiguração de substâncias (a metamorfose que só a crença é capaz de operar) pão não é mais pão e vinho não é mais vinho, mas é um Deus humanado que se reparte pelo sacrifício para saciar a fome e a sede dos homens, num banquete. Todos comungam da morte do outro quando simbolicamente se nutrem desse alimento antropofágico (ou seria Teofágico justamente porque significa alimentar-se do deus?) “Tomai e comei, isto é meu corpo; tomai e bebei, isto é meu sangue. Fazei isto em memória de mim”. A doxologia repete as palavras da última ceia, quando Cristo se reúne com os seus seguidores e institui a primeira eucaristia, palavra de origem grega que significa “sacrifício de ação de graças”.
Seriam então os cristãos aqueles mais aptos entre os humanos a sentir a potência do sacrifício, da entrega, do sentido de morrer pelo outro, de morrer com o outro. Seriam os cristãos os mais aptos a entender a abnegação, como uma renúncia às próprias vontades em consideração ao outro, uma vez que celebram isso cotidianamente. Eis o significado da liturgia do narrar um desprendimento, de dar a vida. Não à toa o ponto alto do calendário litúrgico é a Semana Santa, e a celebração máxima a Vigília Pascal quando se questiona a morte: “Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória?” (1Coríntios, cap. 15, vers. 55). Seriam os cristãos aqueles que, quando a humanidade se sentisse ferida e ameaçada, se dispusessem a defender a vida acima de qualquer dogmatismo. “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenha plenamente”, disse o Deus humanado, oferecido como cordeiro a ser imolado.
Se é a salvação que se celebra nas religiões cristãs, por que o foco de muitos fiéis se volta para a punição dos iguais? Se alguém já morreu para que a humanidade fosse libertada de uma condenação, por que insistem em punir e condenar em nome do seu Deus? Por que insistem em ser justiceiros desconhecendo a dor do outro? Por que insistem em ser algozes dos homens tomados para cristo e cotidianamente flagelados? Por que insistem no erro de escolher Barrabás nas suas atitudes, enquanto suas palavras louvam o seu Cristo?
Estou tentando dar conta de uma reflexão sabendo que ela será apenas um recorte do que sinto ao ver o monólogo “Histórias compartilhadas”, do Outro Grupo de Teatro, interpretado, de modo contido, pelo ator Ari Areia. No palco, caixas e mais caixas de imagens expõem a transexualidade masculina em toda sua dor pungente. É uma paixão que é narrada, com direito a corpo e sangue. É uma liturgia do corpo do homem que é exposta em toda a sua fratura diante de uma plateia que vê o nu do palco, o nu das imagens em vídeo projetadas sobre o corpo do ator e se vê, em imagens colhidas numa filmadora ao vivo. É a história da criação do homem, e de uma recriação, que é narrada em pouco mais de uma hora. Será que Deus pode errar? Se não se crê em Deus, será que a natureza pode errar? A criação, a criatura e o criador, seja ele quem for, é discutida no monólogo sob o ponto de vista daqueles que nasceram num corpo estranho e, desde que se entenderam por gente, tentam fugir do paradigma aceito e reprimido incessantemente pela sociedade. Sou homem num corpo de mulher. Sou mulher num corpo de homem. Sou homem e não me reconheço no meu corpo. Sou mulher e meu corpo me escraviza. Essas dores encenadas ali, dores reais, de pessoas reais, levadas para o palco, o ator que perfura sua veia ao vivo e banha um crucifixo com seu sangue (o ponto alto do monólogo) enquanto uma Cássia Eller entoa o “Blues da piedade”, do Cazuza, um ato de contrição de um miserável para outros miseráveis: “Vamos pedir piedade/ Senhor, piedade/ Pra essa gente careta e covarde/Vamos pedir piedade/ Senhor, piedade/Lhes dê grandeza e um pouco de coragem”. Se o sangue do crucificado lavou a terra e redimiu os homens, segundo a liturgia cristã afirma, agora é o sangue do homem que lava o corpo do crucificado enquanto pede piedade. Que ato de reprovação pode haver aí, senão a ideia mesma defendida pelo pensador Giorgio Agamben, em “Elogio da Profanação”, quando afirma que o homem evoca o deus para, numa horizontalidade, discutir a relação?! Ou, ainda, de outro modo, afirma que, se o ato de consagrar é tornar as coisas próprias à esfera do alto, e por isso, intocáveis, profanar seria restituir ao homem o que fora consagrado. É nesse mesmo texto que Agamben discute a etimologia do termo religio, que não derivaria de religare, mas de relegare, nesse caso, significando especificamente o cuidado de tornar distinto o que é dos deuses e o que é dos homens.
Monólogo Histórias Compartilhadas. Foto: internet.
O que vi no palco foi a narrativa respeitosa de um humano pedindo para ser compreendido, expondo suas angústias diante da criação, desnudando-se para dizer que não pode ser mais um cristo crucificado pelos homens, que é preciso viver e deixar viver. É um monólogo de paixão e morte, não do deus, mas do homem. E se isso não for cristão, se isso não representar a verdadeira comunhão, ainda que não tenha apelo algum religioso, se isso não se coadunar e coagular com o sangue derramado, sinceramente a ideia do viver a vida cristãmente perde todo o sentido, assim como perde o sentido do falar preconcebido, que é o falar sem conhecimento de causa, que é o falar mesmo tomado por uma revolta e não por uma reflexão, o que tem se tornado comum nas redes sociais, quando uma foto, uma imagem, um texto se desgarra do seu contexto e é atacado por quem não teve a mínima vontade de ir um pouco além como bípede que somos para ver as coisas antes de comentar sobre elas. O que me vem agora é um trecho de Judith Batler, do livro “Relatar a si mesmo: crítica da violência ética”: “Antes de julgar o outro, devemos ter algum tipo de relação com ele. Tal relação vai fundar e fundamentar os juízos éticos que finalmente fizermos. De alguma maneira, teremos de fazer a pergunta ‘Quem és?’”. Não seria preciso ir a uma pensadora da contemporaneidade para constatar que os livros sagrados (de qualquer religião) colocam como reprovável a questão do pré-julgamento. Eu acrescentaria ao que Batler afirma a seguinte questão: quando condenamos o outro sem que o conheçamos, sem que dermos abertura para ele, é a nós mesmos que estamos condenando. Karen Armstrong, uma estudiosa das religiões, ex-freira, em seu livro “Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo” fala das “teologias da fúria” atreladas a ressentimentos e vingança que fizeram os homens abdicarem da tolerância e da compaixão, o que tem levado a uma perversão da religião.
Todos os símbolos que aparecem no palco evocam o jogo em que estamos mergulhados ao nascermos. O aparelho de TV que mostram a plateia e o palco, na câmera manipulada pelo ator, o livro “Viagem Solitária”, biografia de João Nery, primeiro transhomem brasileiro a ser operado, que é folheado logo no início, a massa de modelar que é manipulada pelo ator e, enquanto a TV exibe depoimentos de transexuais, vai modelando um boneco-humano até virar novamente uma bola, o que reporta ao mito hebreu da criação ao mesmo tempo em que ressoa sobre a questão “que corpo é esse em que não me reconheço?”. E aí que caberia certamente a reflexão de Emil Cioran, em “O livro das ilusões”: “Há estados que nem sequer o próprio Deus pode suspeitar, porque os estados verdadeiramente grandes só podem surgir da imperfeição. Meus desesperos me tornam superior a qualquer divindade. É um prazer pensar que só da imperfeição ainda se pode aprender alguma coisa”.
O jogo de ser humano é também evidenciado pelo som do Tetris, aquele joguinho de encaixar peças que vão caindo umas sobre as outras? Que peças sou eu nesse jogar da criação? Que escolhas me foram possíveis nessa que, ainda que nos digam o contrário, é a única vida possível? Por que as patrulhas do mundo insistem em vigiar e punir aqueles que já são punidos pela natureza enquanto se valoriza a beleza dos corpos que insistem em envelhecer e apelam para cirurgias e mais cirurgias para corrigir lábios, queixos, orelhas, narizes, face, barrigas, peitos e bundas? Por que o olhar de punição é seletivo? Por que se coloca sobre gays, lésbicas e trans o pejorativo “aberração da natureza”. Segurando um galão de água, o personagem questiona os pais sobre sua condição, reiteradamente, o texto diz da recusa de si e do outro. Reiteradamente, o depoimento é lançado à plateia até que o galão estoura no chão e a água, feito um líquido amniótico, espalha-se, vida que renasce, outro nascimento, morte e ressurreição de um corpo dilacerado pela dor. Mas a paixão não se encerra, permanece num continuum, como é a vida. Enquanto houver vida, haverá a dor lancinante de uma paixão, haverá que se levar uma cruz até um calvário construído pelos homens mesmo, via-crucis.
A cruz ensaguentada no palco, com direito a close, na TV ao vivo, diz muito. Diz que o sangue que lavou as culpas dos homens não parece que foi suficiente para redimir os próprios homens, que continuam a pré-julgar, a punir, a condenar bradando ferozmente em nome do que acreditam. Diz que diariamente as calçadas desse país amanhecem lavadas com o sangue de transexuais e gays que perderam sua vida pelo prazer e o ódio de outros. Diz que enquanto nos enfurecermos com o que julgamos ser uma afronta aos símbolos sagrados e esquecermos de valorizar e defender a vida estaremos indo contra tudo o que pregamos. Ver o teatro do Dragão do Mar cheio e silenciosamente (ou seria religiosamente?) atenta à via-crucis ali encenada só me diz que a arte desembrutece o humano, tirando-nos do nosso conforto, impõe que sejamos melhores, que nos despojemos do nosso tosco papel de justiceiros da moral e dos bons costumes. Acaso Deus precisaria de defensores? E se precisasse, seriam assim tão rancorosos, tão castradores da vida? Basta de cordeiros imolados, não? Se a arte se faz verbo toma corpo para nos projetar ao íntimo de nós mesmos, não é a ideia aristotélica de purgação que devemos recorrer ao nos depararmos com um drama, senão com a concepção de que não há cura que arte opera para as dores humanas. É preciso que saiamos do teatro, plateia que somos, adoecidos e vivamos com essa dor pulsando em nosso corpo as lanhaduras representadas, seja no palco, seja na rua, como a performance da atriz transexual Viviany Beleboni que se crucificou durante a 19a Parada Gay de São Paulo no ano passado e foi rechaçada tanto nas ruas quantos nas redes sociais por representar o flagelo do corpo dos que, como ela, são cotidianamente açoitados por aqueles que, em nome do seu Deus, deveriam defendê-las. Se adoecemos com e pela dor do outro, talvez sejamos homens e reconheçamos a fragilidade que nos habita. Em “O animal que logo sou”, Derrida afirma que a tristeza da natureza humana não se dá pela falta de linguagem, ou seja, o mutismo, mas justamente pelo verbo que nos invade, pelo nome que nos é dado. Talvez aprendêssemos com os animais irracionais uma lição: a de que é preciso não falar, é preciso não vomitar palavras de anulação do outro, é preciso grunir o silêncio da linguagem.
“Histórias Compartilhadas”
A apresentação do monólogo “Histórias Compartilhadas”, durante o seminário sobre sexualidade e gênero na Universidade Federal do Ceará (UFC), causou polêmica após fotos terem sido publicadas em uma página no Facebook. Dias depois, a página “Fortaleza Sem Prefeito” publicou, sem autorização, algumas imagens da apresentação e deu margem para ataques à arte, ao público LGBT e até ao Ministério da Cultura. O monólogo, com direção de Eduardo Bruno, traz depoimentos reais e representa a angústia dos transexuais, que são muitas vezes vítimas de preconceito e violência.